PENDÊNCIAS RN-Colaboração premiada: o papel do Poder Judiciário, por Rossana Brum Leques
Por Rossana Brum Leques
Do JusBrasil
A lei de combate às organizações criminosas trouxe algumas regras específicas no tocante à atuação do Poder Judiciário na colaboração premiada, sendo expressa ao estabelecer que “é vedado ao juiz participar das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração (art. 4 o, 6 o, da Lei n o. 12.850/2013)” (DE GRANDIS, 2015).
Ao que tudo indica, trata-se de regra que visa a preservação do sistema acusatório, sobre o qual vale repisar:
“Em última análise, é a separação de funções (e, por decorrência, a gestão da prova na mão das partes e não do juiz) que cria as condições de possibilidade para que a imparcialidade se efetive. Somente no processo acusatório-democrático, em que o juiz se mantém afastado da esfera de atividade das partes, é que podemos ter a figura do juiz imparcial, fundante da própria estrutura processual” (LOPES JÚNIOR, 2013, p. 110).
Não por outra razão, antes do advento da lei em análise, Pierpaolo Cruz BOTTINI (2012) criticava a atuação ativa dos juízes nas negociações para a celebração de delação premiada, aduzindo o quanto segue:
“Outra questão controversa é a participação ativa do juiz na celebração do acordo. Há magistrados que intermediam as negociações entre Ministério Público e réu para a delação premiada, e outros que preferem o distanciamento, reservando-se a função de avaliar a extensão da colaboração, sua utilidade e eficácia, para decidir a amplitude do benefício. Também as leis silenciam sobre esse tema. Nos parece que, no sistema acusatório (ou acusatório misto), que se pretende aos poucos implementar no ordenamento pátrio, a participação do magistrado na colheita da prova afeta sua imparcialidade, de forma que seu envolvimento no acordo de delação é desaconselhável”.
A Lei n o. 12.850/2013 melhorou tal quadro, fazendo referência às atribuições do Poder Judiciário. Verifica-se que são funções dos magistrados, de acordo com os parágrafos do artigo 4o da referida lei:
§ 7o Realizado o acordo na forma do § 6o, o respectivo termo, acompanhado das declarações do colaborador e de cópia da investigação, será remetido ao juiz para homologação, o qual deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo para este fim, sigilosamente, ouvir o colaborador, na presença de seu defensor.
§ 8o O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais, ouadequá-la ao caso concreto.
Compete ao Poder Judiciário, portanto, analisar a regularidade e legalidade do acordo, conferindo se presentes os requisitos exigidos pela lei (o que inclui voluntariedade e efetividade).
Quando não verificados os requisitos exigidos, dispõe a lei que se deverá “adequar a proposta ao caso concreto”. Trata-se de expressão dúbia, que parece conferir amplitude de atuação, podendo surgir dúvida quanto ao limite de atuação. Como forma de solução, poder-se-ia pensar na doutrina administrativista, sobre o controle judicial dos atos administrativos:
“O ato administrativo, ou, dito mais largamente, todo e qualquer comportamento da Administração Pública, está sujeito aos controles administrativo e judicial. O primeiro é realizado pela própria Administração Pública no exercício do poder de autotutela, que nesse mister age espontânea ou provocadamente, e tem em vista o exame dos atos e comportamentos da Administração Pública no que concerne ao mérito e à legalidade. O segundo é realizado pelo Poder Judiciário, que somente atua se provocado, visando a legalidade de tais atos e comportamentos” (GASPARINI, 2008, p. 119).
No mesmo sentido, Celso Antonio Bandeira de MELLO (2008, p. 982) ensina sobre discricionariedade administrativa e controle judicial:
“Finalmente, este proceder do Judiciário não elimina a discricionariedade e nem pode fazê-lo, pena de agravo à própria lei. Deveras: à perquirição judicial nunca assistirá ir além dos limites de significação objetivamente desentranháveis da norma legal, conquanto valendo-se desassombradamente das vias mencionadas. O campo de apreciação meramente subjetiva — seja por conter-se no interior das significações efetivamente possíveis de um conceito legal fluido e impreciso, seja por dizer com a simples conveniência ou oportunidade de um ato — permanece exclusivo do administrador e indevassável pelo juiz (…)”.
Propõe-se, assim, a aplicação analógica de tais preceitos ao controle judicial da colaboração premiada, como modo de evitar que os magistrados adentrem em questões que envolvem o mérito da negociação em si (que envolvem a discricionariedade conferida por lei ao Ministério Público e ao colaborador).
Não compete ao juiz a discussão das cláusulas ou a satisfação em relação ao conteúdo informado (a não ser no que tange à efetividade, no sentido de verificar que ao menos um dos resultados exigidos pela lei foi realmente produzido).
Daí porque se entende que não deve o próprio magistrado “adequar a proposta ao caso concreto” quando for necessário tangenciar o mérito da colaboração, devendo devolver o caso ao Ministério Público para que faça as alterações devidas, retomando as negociações, se necessário.
Garante-se, desta forma, que os magistrados não transbordem os limites de sua atuação, ferindo, consequentemente, o sistema acusatório, nos termos expostos acima, à medida que restaria afetada a sua imparcialidade.
Além disso, Frederico Valdez PEREIRA (2013, p. 97) também destaca a importância de reduzir a interferência do Poder Judiciário quando da celebração do acordo de colaboração premiada, com o objetivo de evitar a banalização do instituto:
“Acresça-se a necessária redução das margens de discricionariedade judiciária na aferição dos benefícios aos imputados como condição indispensável a evitar uma transformação na cultura judicial que leve a busca de colaboração de corréus como objetivo primeiro da investigação (FERRAJOLI, 1982, p. 211). A maior completude possível na regulação normativa do instituto, incluindo o procedimento a ser seguido na coleta das informações, a correlação entre as revelações do pentito e a graduação do prêmio, são elementos que não poderiam ser desconsiderados no momento de o legislador inserir o instituto na ordem jurídica.”
Isso não significa de forma alguma uma redução do papel do magistrado. Muito pelo contrário. Busca-se com isso garantir o legítimo e importantíssimo papel de controle que deve exercer o Poder Judiciário, sem contudo violar os limites que asseguram sua imparcialidade diante da causa.
E não há utilitarismo que justifique violação ao princípio da imparcialidade, o que parece reconhecer a própria lei, em seu artigo 4o, parágrafo 6o, da Lei no. 12.850/2013.
REFERÊNCIAS
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