GUAMARÉ RN-Impeachment, eleições e re-pactuação política, por Leonardo Avritzer


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Impeachment, eleições e re-pactuação política

por Leonardo Avritzer

O processo de impeachment, tal como ele vem sendo conduzido, carece de legitimidade política e jurídica. Esta carência se assenta em três fatores principais: o primeiro deles é a tentativa da oposição brasileira de transformar o impeachment em política normal. O impeachment foi introduzido como prática na Inglaterra e consolidado pela constituição Norte Americana. O debate constitucional na Filadélfia se deu em torno da introdução ou não do impeachment na constituição americana, fato este ao qual muito delegados se opunham. A solução de consenso veio por meio da inserção no extrato final do dispositivo constitucional sobre o tema, para incluir apenas os altos crimes e contravenções como razão para o impeachment. Mas o mais importante em relação ao debate constitucional, foi a posição de James Madison que acabou prevalecendo, de acordo com a qual o termo “maladministration” deveria ser retirado do texto constitucional. O impeachmentnada tem a ver com a popularidade ou com a capacidade administrativa dos governantes. Ele tem a ver com o surgimento da tradição de equilíbrio de poderes, entre o presidente e o congresso. A novidade do processo constitucional americano é a retirada do impeachment da política normal, posição aceita por todos os principais participantes da convenção constitucional.

No caso brasileiro, temos uma lei ruim sobre o impeachment, além de um processo completamente enviesado que não consegue se desvincular da política normal. A lei doimpeachment, a 1079 de 1950 elenca crimes de responsabilidade de forma ampla e sem nenhuma proporcionalidade entre eles. Assim, de acordo com a lei do impeachment, a traição nacional, a declaração de guerra ou problema relativos a execução do orçamento são considerados crimes de responsabilidade. O problema evidentemente é que estes crimes tem um peso completamente diferente e apontam para a inadequação da própria lei.

Este é o primeiro ponto relevante para uma discussão do impeachment nesta conjuntura que se articula com dois outros problemas, o mais grave entre eles é a moralidade de um Congresso completamente envolvido em casos de corrupção, chefiado por um presidente da câmara que é não apenas envolvido em corrupção como utilizou procedimentos do poder legislativo para chantagear empresas no setor privado. A maneira como o impeachment está sendo conduzido não encontra solução possível capaz de articular o problema do equilíbrio, central em todos os processos jurídicos. Carece absolutamente de equilíbrio a posição de combater a corrupção contando com a participação de políticos altamente envolvidos em casos de desvios de verbas públicas visando remover a presidente contra quem não existe acusação de corrupção. Como é sabido, a questão fundamental que levou ao pedido de impeachment a ser votado neste domingo, é política e envolve o problema da disjunção entre o governo e a sua base parlamentar. Essa disjunção que vem desde 2011 alcança o seu auge com a eleição de Eduardo Cunha para a presidência da Câmara. A proposta de impeachment é uma proposta de readequação do governo à sua base no Congresso com todas as consequências. Ela utiliza o grande mediador entre executivo e legislativo que é o PMDB para recompor uma base política conservadora e reestabelecer um poder executivo mais permissivo às negociações no interior do Congresso por cargos políticos.

O último problema envolve o argumento de que o impeachment não é político e sim jurídico legal devido às pedaladas fiscais. Duas questões jurídicas se colocam aí: a primeira delas é que evidentemente a boa gestão do orçamento público deve ser incentivada e a má gestão tem que ser punida. Certamente, as práticas que prevaleceram ao final do primeiro mandato da presidente não foram as melhores. No entanto, há um problema jurídico aqui que não é de pequena monta, a saber, se a presidente só fez aquilo que todos os outros presidentes fizeram antes dela e todos os principais governadores fazem, como criminalizar apenas a atitude dela? Esta questão já apareceu quando da votação do parecer do conselheiro Augusto Nardes pelo TCU e ela pode ser colocada nos seguintes termos: algum órgão de justiça ou que faça parte do sistema de justiça ( TCU é órgão auxiliar do Congresso, mas opera obedecendo princípios do sistema jurídico) pode mudar a jurisprudência retroativamente? Vale a pena ressaltar que a questão da retroatividade do direito faz parte da discussão do estado de direito desde a ascensão do nacional socialismo e que, na tradição do pós-guerra, o direito retroativo é considerado contraditório com o estado de direito (vide Neumann, Franz, The democratic and the Authoritarian State). Ou seja, no caso das pedaladas fiscais trata-se de uma jurisprudência que vale apenas para a presidente retroativamente. Não vale para os presidentes anteriores e não vale para os atuais governadores e se Michel Temer se tornar presidente não valerá para ele.

Assim, chegamos ao fulcro da questão jurídico política. A presidente é impopular e cometeu erros no campo administrativo e financeiro. A pergunta, no entanto, é: estes erros justificam o impeachment dentro da tradição política que o inventou e que o pratica em casos excepcionais, que é a tradição anglo-saxã? A resposta é um retumbante não. Na verdade, o que ocorre no Brasil esta semana é uma tentativa de utilizar o termo impeachment e a possibilidade de remoção da presidente, para repactuar por cima a relação entre o executivo e legislativo. Esta repactuação é problemática em primeiro lugar, porque ela se dá por cima com falsos argumentos sobre corrupção e impeachment. A repactuação por cima supõe transformar singularizar o P.T. e transformá-lo em um ponto fora da curva no sistema de financiamento de campanha no Brasil, o que é totalmente falso. Todos os problemas de financiamento político ilegal apontados pela operação Lava Jato, em relação aos quais a população justamente protesta, são similares nos três principais partidos existentes no país. PT, PMDB e PSDB financiam suas campanhas de forma muito similar. Neste sentido, não há como repactuar o sistema político no Brasil, em especial, em relação à opinião pública sem mudar a forma de financiamento de campanha. Diga-se, de passagem, os setores do PMDB que pretendem governar o país a partir da semana que vem são os maiores defensores e os maiores beneficiários do financiamento de empresas e de formas obscuras de financiamento partidário.

Assim, chegamos à conclusão da primeira questão posta neste artigo, o impeachment não está sendo proposto devido a crimes de responsabilidade da presidente. Ele está sendo proposto como forma de repactuação política por cima. Ele é uma resposta do PMDB e de diversos partidos da base aliada, PP, PSD, PSB, entre outros, à enorme disjunção que se constituiu nos últimos anos entre executivo e legislativo. A ideia é retomar o status quo da relação entre executivo e legislativo no varejo. Em posição de associação com a repactuação por cima encontram-se as forças do mercado. Para elas, interessa apenas um ajuste mais forte do estado com cortes de gastos. Qual é o problema: combinar com a opinião pública essa regressão política e de direitos que está ocorrendo no Brasil.

É verdade que a opinião pública ou uma parte dela se afastou do P.T. desde Junho de 2013. Mas ela se afastou por motivos concretos, entre eles a percepção midiaticamente construída de que o partido é mais envolvido na Lava Jato que os demais partidos ou até mesmo o único envolvido. É difícil acreditar que um acordo por cima com salvação de figuras importantes do PMDB, inclusive de Eduardo Cunha, possa contar com o beneplácito desta mesma opinião pública. Caso assuma a presidência, Michel Temer terá de lidar com todos esses problemas e com a Lava Jato. Se não o fizer, estará caracterizada a participação do judiciário na repactuação por cima, assim como estará caracterizada a artificialidade da agenda de corrupção que então sairá da cena política. Resta, então, analisar a segunda alternativa, a re-pactuação eleitoral.

Desde Junho 2013 temos um fenômeno real no Brasil, a rejeição por parte da opinião pública de uma prática de coalizão que torna a sustentação do governo no Congresso por meio da distribuição de cargos ilegítima. O governo Dilma reagiu timidamente a esse problema, propondo uma reforma política com financiamento público de campanha que foi imediatamente descartada pelo PMDB (com apoio de setores do P.T.) ainda em 2013. A eleição de 2014 deveria ter trazido no seu bojo uma re-pactuação no interior da aliança governista com P.T. e PMDB finalizando a sua aliança, pelo menos nas eleições proporcionais. Ali já era evidente o tamanho do desastre que se anunciava na disjunção política entre executivo e legislativo, P.T. e PMDB. A campanha de 2014 foi dominada por um fenômeno relativamente novo, chamado Eduardo Cunha. Tal como é vastamente conhecido hoje, Cunha que não é um peemedebista tradicional e foi ele quem financiou e decidiu com esse financiamento a eleição de aproximadamente 100 candidatos para o Congresso. Com isso, ele criou um bloco supraparlamentar que não passa pelos líderes partidários, nem mesmo no caso do PMDB. É Cunha quem lidera a câmara e o processo de impeachment em estreita articulação com Michel Temer, ainda que não se saiba a troco do que. O que sabe é que o troco será exigido e cobrado. Assim, do lado da maioria parlamentar temos um congresso com baixíssima legitimidade, pouquíssima identidade com a opinião pública em busca de cargos que não tem porque serem ocupados desta maneira ou que já não são capazes de gerar qualquer retorno eleitoral. Melhor, neste caso, uma ampla renovação do Congresso.

Do lado da presidente e do P.T., podemos fazer uma afirmação semelhante. Desde Junho de 2013, o P.T. esbarra em uma tentativa de continuar um esquema de sustentação política no Congresso insustentável. A coligação proporcional nas eleições de 2014 foi um grande erro porque ajudou a eleger aqueles que estão se perfilando para tentar o impeachment da presidente e que não tinham votos para se eleger. Mas, a partir da eleição de Eduardo Cunha para a presidência da Câmara dos Deputados em 1º de fevereiro de 2015, ficou claro que entre o governo e o poder legislativo não existem mais pontos de convergência. Agravam esta situação duas inflexões do governo Dilma no começo de 2014: a adesão a uma política de estabilização fiscal defendida pelos liberais e muito mal desenhada que acabou erodindo muito rapidamente a base de apoio da presidente. Em segundo lugar, uma política equivocada em relação ao poder judiciário que abdicou do papel de exigir do poder judiciário a contenção dos abusos da operação Lava Jato. Em ambos os casos, existe uma presidente impopular cuja preservação do mandato se vier a ocorrer não porá fim às duas disjunções mencionadas entre o executivo e o legislativo e entre a presidente e a opinião pública. Assim, estamos em um jogo de soma zero onde, provavelmente, a única coisa que se pode dizer é que a impopularidade e a baixa legitimidade da presidente Dilma rapidamente irão se transferir para Michel Temer.

A única saída possível para esta crise é a re-pactuação eleitoral geral, tanto do executivo quanto do legislativo. É preciso reconhecer que este Congresso é resultado do financiamento privado e ilegal de campanha e que sua agenda conservadora não representa a opinião pública. Uma renovação do Congresso com financiamento público e preferencialmente com a proibição de coligação nas eleições proporcionais é fundamental para reestabelecer a correlação perdida entre eleitorado e representação. Ao mesmo tempo, o Brasil precisa de um presidente que saia das urnas depois de discutir os problemas reais do país que não foram debatidos por nenhum dos candidatos em 2014. É este presidente que tem que buscar uma nova articulação com o congresso. A única re-pactuação possível nesta situação é uma re-pactuação eleitoral e ampla de baixo para cima que tente na medida do possível curar as mazelas de um processo distorcido de financiamento que gerou um congresso que representa apenas ao dinheiro e a si mesmo. É preciso substituir a representação do dinheiro pela representação da cidadania, antes que se renove com Michel Temer a romaria dos pedidos desastrosos de cargos que acabarão de afundar o estado brasileiro no beco sem saída que ele se encontra.

A tentativa intra-oligárquica de repactuação por cima através de Michel Temer tem tudo para fracassar e estender a crise brasileira até 2018. Apenas a repactuação por baixo por meio daqueles que detêm a soberania popular e são fonte de legitimidade política pode botar fim a uma crise cujo centro é uma disjunção absoluta entre cidadania, opinião pública e sistema político. A dimensão da crise brasileira exige ousadia e justifica o ato de devolver aos detentores da soberania popular a capacidade de reconstituir o sistema político.

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Levany Júnior

Levany Júnior é Advogado e diretor do Blog do Levany Júnior. Blog aborda notícias principalmente de todo estado do Rio Grande do Norte, grande Natal, Alto do Rodrigues, Pendências, Macau, Assú, Mossoró e todo interior do RN. E-mail: [email protected]

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