BRASIL-HISTÓRIA-Pactos amnésicos no Brasil: Notas para uma história


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Congresso Nacional pela Anistia, no teatro da PUC, em São Paulo, 1978. (Foto: Memorial da Democracia)

Por Idelber Avelar*

Estadão

Nos albores do bicentenário da Independência, uma razoável certeza que se pode ter é que as noções de pacto e de amnésia têm caminhado juntas no Brasil. Em geral, nossos pactos políticos pressupõem alguma operação de esquecimento constitutivo, que jamais chega a ser ativo no sentido nietzscheano. Ou seja, o esquecimento que fundamenta os pactos brasileiros não costuma passar pelas águas da memória para reemergir forte e afirmativo do outro lado, mas toma a forma de uma rasura apressada, um arranjo mal ajambrado, um acordo espúrio pela desmemória. Estaria fora dos limites deste escrito revisitar em detalhe qualquer dos momentos-chave dessa história, mas vale registrar que, apesar da ausência de um estudo detalhado sobre a amnésia na política, o papel constitutivo do esquecimento em encruzilhadas específicas é assunto que não escapou à atenção da historiografia brasileira.[1] Do esquecimento do sangue negro e índio jorrado como premissa da modernidade e fundamento do país[2] ao esquecimento que inspirou a lei de anistia de 1979 durante a transição democrática, a desmemória é um problema, uma questão genuína que se coloca ao longo da história do Brasil. Trabalhando nos últimos tempos em área vizinha, a análise do discurso na política, tenho me deparado com o tema, que é complexo, espinhoso e próprio a generalizações apressadas ou essencialistas. Em todo caso, não parece descabido perguntar: por que os momentos decisivos da história brasileira parecem atravessados por uma espécie de amnésia constitutiva, como se avançássemos como nação apenas pela rasura do passado? 

A alusão a uma espécie de esquecimento próprio da Terra Brasilis já aparece no “Sermão do Espírito Santo” do Padre Antonio Vieira, que se converteu contemporaneamente em um capítulo de análise antropológica cujo alcance vai muito além do Brasil. Em “O mármore e a murta”, Eduardo Viveiros de Castro mapeia o tema da inconstância na narrativa dos séculos XVI e XVII em Anchieta, Gandavo, Lévy e culmina em uma leitura da formulação do “Sermão do Espírito Santo” segundo a qual as estátuas de mármore se contraporiam às de murta como operações difíceis de se realizar, mas sólidas ao longo do tempo, enquanto estas seriam de fácil moldagem à tesoura do  escultor, mas eminentemente fugazes, já que a mata logo cresce e dissolve a escultura no estado de natureza anterior. Vieira associa a possibilidade de catequese dos Tupinambá a uma estátua de murta, já que eles não parecem resistentes aos ensinamentos; pelo contrário, absorvem-nos com grande maleabilidade. Mas, com a mesma maleabilidade, no dia seguinte, parecem esquecer-se do aprendido e voltam a ser selva como antes, passam a outro deus. A teoria da inconstância da alma selvagem de Viveiros seria, então, também uma teoria do papel do esquecimento no encontro colonial ou, para ser exato, uma teoria do esquecimento como expressão da desleitura do colonizador.[3] Para Vieira e o colonizador português que só podia ver a outra cultura aristotelicamente, sob o princípio da não contradição, a mutabilidade dos Tupinambá aparecia, com efeito, como falha de memória. Não se tratava de que divindades concorrentes competissem com a cristã por espaço social, como no México ou no Peru. Era algo mais desconcertante, a saber, a ausência completa de divindades, o que permitia um passeio por cada uma delas que o português mal interpretava como amnésia. Poderíamos dizer que o momento fundacional da desmemória no Brasil foi uma desleitura do português, equipado para enfrentar as divindades incas ou astecas, mas não a pluralidade babélica dos Tupinambá. 

O fato é que desde o século XVI o esquecimento tem sido um espectro na literatura acerca de como o país vem a ser. Para o bem e para o mal, o esquecimento parece nos constituir enquanto nação, seja porque abraçamos a amnésia em momentos-chave de nossa história, seja porque narramos para nós mesmos ficções fundadas nela. O próprio referente historiográfico da independência do Brasil tem sido entendido como saída conservadora para a turbulência advinda da presença da família real no Brasil, de seu retorno às pressas a Portugal com a revolução liberal de 1820 no país ibérico e da consequente nomeação (e posterior decisão de permanência) de Pedro I como Príncipe Regente. Esse arranjo é tradicionalmente ensinado nos bancos escolares como repactuação conservadora que manteve a Monarquia e a Escravidão, e que contrastaria com as independências hispano-americanas por sua natureza de processo pacificado a partir da ação das elites imperiais. [4] A história dominante da própria Independência relega a uma posição ancilar os sangrentos processos de combates que tiveram lugar em Pernambuco, com a Revolução Pernambucana (1817) e a Convenção de Beberibe (1821), e em seguida as expulsões de portugueses que se seguiram na Bahia, no Piauí, no Maranhão e no Grão-Pará. Apesar da atenção que a historiografia brasileira tem dedicado a essas insurreições, a narrativa dominante que herdamos da Independência é ainda tributária do esquecimento da luta anticolonial e da pactuação dos interesses que ali que impuseram como dominantes. Emblemática dessa amnésia é a própria Praça Tiradentes no Rio de Janeiro, na qual curiosamente não há uma estátua de Tiradentes, e sim de D. Pedro I, neto da mesma dona Maria que ordenara a morte do alferes.[5] Nada exprime melhor o apagamento das insurreições republicanas que a praça nomeada a partir do líder da Inconfidência Mineira trazer uma estátua do regente português cuja avó havia sido responsável pela morte desse mesmo líder. Chama a atenção essa imagem como emblema da pactuação amnésica que se conforma em torno às nossas imagens da Independência.  

No Brasil Moderno, talvez o mais trágico componente amnésico de um pacto político tenha sido o esquecimento que possibilita o apoio de Luis Carlos Prestes ao mesmo Getúlio Vargas que havia enviado sua companheira, Olga Benário, aos fornos crematórios nazistas. É verdade que a rendição ocorre em um momento de negociação para a saída da prisão, mas ela tem lugar já depois da ampla circulação (julho de 1945) da notícia da morte de Olga (1942), em um momento em que o ditador já está na descendente e a transição se encaminha. Esse esquecimento dos esquecimentos na história moderna, que chegou ao ponto de levar Prestes a apoiar o próprio Queremismo (movimento pela continuação de Vargas), é também uma metonímia perfeita da amnésia com que costuma viver a esquerda brasileira acerca das câmaras de torturas, perseguições e violenta repressão do Estado Novo. A aliança PCB-PTB, cujas consequências iriam muito além do período democrático inaugurado em 1946 e que teria, por negação e antagonismo, um papel na própria fundação do PT (1980), se fundamenta então em um ato de esquecimento deliberado dos mais inimagináveis, no qual não é trivial que a sacrificada tenha sido uma mulher, estrangeira e militante comunista exemplar, conhecida pela galhardia com que enfrentou as piores ignomínias do Estado Novo e do nazismo. Talvez tampouco seja uma coincidência que o desvelamento da operação da desmemória no interior do discurso varguista-estadonovista tenha sido obra de outra mulher, a Profa. Maria Emilia A. T. de Lima, que escreveu um livro notável (como não poderia deixar de ser, esquecido) sobre como os discursos de primeiro de maio de Vargas construíram uma memória nacional comum–que, como toda memória nacional, dependia de operações específicas de exclusão e esquecimento.[6]

Há uma linha de continuidade entre a amnésia de Prestes, que encaminha a restauração democrática pactuada de 1946, e a amnésia da lei de anistia de 1979, que encaminha a restauração democrática posterior aos generais de 1964-1985. Segundo muitos, contraditório com o próprio direito internacional ao não garantir a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, como a tortura, o pacto amnésico de 1979 fez com que o Brasil fosse a única nação pós-ditatorial latino-americana a não julgar criminalmente um único ditador ou torturador. Nos países irmãos e muito especialmente na Argentina, as décadas de 1980 e 1990 foram de intenso trabalho mnemônico: retirada de todas as menções a torturadores em obras públicas, julgamento televisionado de ditadores, construção de museus, memoriais e exposições, parceria estatal com associações de mães e avós dedicadas a encontrar filhos e netos sequestrados e uma caudalosa bibliografia no terreno dos estudos da memória. No caso brasileiro, os estudos literários e culturais também trabalharam bastante, mas sempre a partir das dificuldades próprias da validação do trabalho da memória na pólis. No Brasil, nossos estudos seriam muito mais dedicados às gretas, às ausências e ao não dito na pactuação pós-ditatorial.[7] A própria sessão da Suprema Corte que optou por chancelar o pacto amnésico de 1979 foi recheada de algumas ironias. Derrotada por sete votos a dois em abril de 2010 (vencidos Lewandowski e Ayres Britto), a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) que questionava a lei de Anistia foi apresentada pela mesma Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que cumprira papel reitorial na sua negociação trinta anos antes. Temos aqui o curioso eterno retorno do esquecimento na história brasileira: o questionamento, ante a Suprema Corte, do pacto amnésico que funda nossa jovem democracia se realiza através da amnésia de uma entidade da sociedade civil do próprio papel que ela cumprira naquele pacto, fato que não passou despercebido no voto vitorioso com que o então Presidente Cezar Peluso acompanhou o relator Eros Grau. 

O outro grande momento de pactuação político-econômica no Brasil pós-ditatorial, o Plano Real que lhe estabiliza a moeda, se introduz com uma explícita louvação ao esquecimento. O “esqueçam o que escrevi”, que Fernando Henrique Cardoso talvez disse ou talvez não disse em um almoço com empresários no Rubayat em junho de 1993, apareceu pela primeira vez citado em uma reportagem publicada por João Carlos de Oliveira e Antonio Carlos Seidl na Folha de São Paulo e já entrou, de qualquer forma, para o folclore político do país. A negação de FHC de que tenha dito a frase é aqui de pouca monta. “Esqueçam o que escrevemos no passado, porque o mundo mudou e a realidade hoje é outra”, que é a citação tal como atribuída pelos jornalistas, é plausível como mote de todo o governo Fernando Henrique, atravessado pelo seu distanciamento de teorias desenvolvidas anteriormente por ele próprio, como a dependência. Por mais que se possa argumentar que há uma linha de coerência entre a teoria do autoritarismo de FHC (que via na ditadura um estamento burocrático, não um representante de um projeto de classe particular) e seu giro liberal-conservador como Presidente nos anos 1990,[8] não há como negar que a articulação da governabilidade tucana com frequência teve que recorrer a chamadas explícitas a que episódios da história brasileira contemporânea fossem esquecidos. 

O lulismo foi um período de muitos esquecimentos, claro, e a própria constituição do fenômeno em si—que segundo o autor que funda o conceito, André Singer,[9] se deu em 2005, com o Mensalão e a ida do PMDB ao governo—não ocorreu sem que se esquecessem trejeitos, termos, vestimentas e projetos do Lula dos anos 1980/90. Mais graves talvez tenham sido os esquecimentos da Blitzkrieg difamatória de Fernando Collor de Mello em 1989 e do quanto ele próprio, Lula, havia vaticinado contra José Sarney na segunda metade dos anos 1980. Collor e Sarney se converteriam em aliados tão próximos de Lula que ele terminou indo ao Amapá salvar o velho oligarca maranhense em uma eleição para o Senado na qual, sem a ajuda de Lula, Sarney muito provavelmente teria sido derrotado por Cristina Almeida, líder popular negra de impecável trajetória no PSB. Algumas dessas operações de Lula sobre o passado foram devastadoras para aqueles que lhes emprestaram credibilidade em algum momento. O jornalista Juca Kfouri não se cansa de relatar sua estupefação ao constatar que Lula havia abandonado o compromisso assumido com ele, de democratização do futebol, para abraçar Ricardo Teixeira – em um momento em que Lula, não Teixeira, era o único com algo a perder na associação. O esquecimento lulista da reforma agrária, pauta histórica do partido, consolida um processo já visível no português brasileiro desde a Constituição de 1988, a progressiva substituição da palavra “latifundiário” pela palavra “ruralista”, hoje já consolidada no jornalismo e em todas as variações dialetais do português falado no Brasil. 

Atravessando esses pactos políticos, uma tradição artística, literária e musical brasileira inventou outros registros para se pensar a memória e inclusive outras formas de se esquecer. No Manifesto Antropófago (1928), Oswald de Andrade ofereceu poderosas imagens de como a antropofagia ressignifica o esquecimento. Jamais fomos catequizadospoderia ser tomada como a frase nietzscheana por excelência, expressão do conceito mesmo de esquecimento ativo. As figuras subversivas, contra-hegemônicas do Manifesto(Jaboty, Jaci, Guaracy, a Cobra Grande) se contrapõem ao ensinamento da culpa cristã pelo Padre Vieira e por Anchieta ao trazerem a memória do Brasil antes do Brasil. Para além da catequese e da cultura cartorial, são figuras que ativam “a transformação do totem em tabu, que desafoga os recalques históricos e liberta a consciência coletiva, novamente disponível, depois disso, para seguir os roteiros do instinto caraíba gravados nesses arquétipos do pensamento selvagem—o pleno ócio, a festa, a livre comunhão amorosa”.[10] Na antropologia e na crítica literária, em estudos capitaneados por Eduardo Viveiros de Castro e posteriormente por Alexandre Nodari,[11] a antropofagia vem sendo pensada como operação posicional por excelência, tornada possível pela percepção oswaldiana do que era a topologia Tupinambá do inimigo: a devoração entendida como a assunção de um lugar, instância de uma concepção essencialmente relacional e transformacional de mundo. Na antropofagia teria lugar um esquecimento de outra ordem completamente, mais próximo do esquecimento ativo nietzscheano, mais canibal, ágil e móvel, menos desmoralizante como fio condutor do país até seu desolado presente. Contra as pactuações amnésicas passivas com que se faz a política brasileira, a reflexão filosófica mais original a emergir no país desde a Independência, a antropofagia, tem sido também uma pedagogia do esquecimento ativo. 

*É ensaísta e professor de literatura na Universidade Tulane (Nova Orleans). Seus livros mais recentes são Transculturación en suspenso: Los orígenes de los cánones narrativos colombianos (Caro y cuervo, 2016) e Crônicas do estado de exceção (Azougue, 2015).

[1] No caso do período da Independência, ver dois livros essenciais sobre o processo pernambucano como margem popular e revoltosa de um processo normalmente narrado do ponto de vista das elites do Rio de Janeiro e de Lisboa: Carlos Guilherme Mota, Nordeste 1817: estruturas e argumentos. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1972, e Evaldo Cabral de Mello, A outra Independência: o Federalismo Pernambucano de 1817 a 1821. São Paulo: Ed. 34, 2004.

[2]Para o tema do esquecimento do sangue afro-atlântico vertido como elemento essencial da modernidade, ver o já clássico livro de Paul Gilroy, O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência[1993]. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo: Ed. 34, 2001. No caso da sociologia brasileira, um marco no vínculo entre discriminação racial e desigualdades foi Discriminação e desigualdades raciais no Brasil,de Carlos Hasenbalg. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

[3]“O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem.” A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

[4] Essa é, por exemplo, a interpretação legada por Sérgio Buarque de Holanda. Na consagrada interpretação de José Murilo de Carvalho, a pactuação federalista que se impôs a partir do Rio de Janeiro foi obra de uma Corte que se sobrepôs a interesses locais. Ver A construção da ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro: Campus, 1980. Para uma visão alternativa, ver Miriam Dolhnikovv. O pacto imperial: origens do federalismo no Brasil do século XIX. São Paulo: Globo, 2005.

[5] A observação é do historiador Luiz Antonio Simas, que conta a história no texto “Uma história da Praça Tiradentes”, publicado no blog Histórias Brasileiras.

[6] Ver Maria Emilia A. T. de Lima, A construção discursiva do povo brasileiro: os discursos de 1˚ de maio de Getúlio Vargas. Campinas: Unicamp, 1990. Trabalhei com outro aspecto da obra de Maria Emilia em um artigo sobre hipérbole na política brasileira para o Estado da Arte.

[7] Não por acaso, um dos mais ricos contos sobre a ditadura militar brasileira, “Alguma coisa urgentemente”, de João Gilberto Noll, base do filme Nunca fomos tão felizes, de Murilo Salles, retrata precisamente essa interdição sobre a linguagem e a memória.

[8]Eu mesmo argumentei pela existência dessa coerência na trajetória de FHC. Ver Alegorias da derrota: A ficção pos-ditatorial e o trabalho do luto na América Latina. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

[9] André Singer, Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador.São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

[10] Benedito Nunes, Introdução. Do Pau-Brasil à antropofagia às utopias. Por Oswald de Andrade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972, p. XXVIII.

[11]De Viveiros de Castro, além do citado A inconstância da alma selvagem, ver “O recado da mata”,  prólogo à obra capital de Davi Kopenawa, A queda do céu. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. De Alexandre Nodari, ver sua dissertação de mestrado, “A posse contra a propriedade: pedra de toque do direito antropofágico”. UFSC, 2007 e o notável artigo a quatro mãos com Maria Carolina de Almeida Amaral, “A questão (indígena) no Manifesto Antropófago”. Direito & Práxis9.4 (2018): 2461-2502. Ver também o programa do curso lecionado pelos dois no Museu Nacional em 2012: http://culturaebarbarie.org/atoa/eduardo-viveiros-de-castro/2012/03/

Lembrar a escravidão negra transatlântica para que nunca mais aconteça: o Museu Internacional da Escravidão em Liverpool

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A função da educação é ensinar a pessoa a pensar intensamente e a pensar criticamente. Inteligência mais caráter – esse é o objetivo da verdadeira educação.

Martin Luther King Jr.

Estamos no ano 1630 no Brasil. Ele tem apenas 15 anos, mas já trabalha duro de sol a sol como escravo nas lavouras de cana de açúcar sob vigilância de cruéis capatazes, em um engenho na capitania que seria depois o atual estado de Pernambuco. Sua jornada de trabalho é intensa, extenuante, a alimentação muito rala e, nas quentes e superlotadas senzalas, as condições de moradia são degradantes. As mortes são tão frequentes que pouco geram choro, mas antes um misto de resignação e revolta. Como Olaudah Equiano uns 100 anos depois, um dos líderes da luta pelo fim da escravidão na Inglaterra, ele também chegara à América ainda criança, com sua mãe, mas logo dela foi separado, ao ser vendido para outro engenho, e provavelmente nunca mais a verá.

No navio negreiro que os arrancou da África que nunca mais veria, viu um primo seu ser jogado ao mar ainda vivo, por estar doente, para não contaminar o restante da “carga”. Eventualmente, outros que se rebelassem contra a tripulação podiam ter a mesma sorte, como castigo, para dar exemplo aos demais do preço da desobediência. Nesses momentos, a maioria dos cativos acorrentados chorava, protestava ou clamava por clemência contra aquela atrocidade, sem sucesso, rangendo os dentes de justo ódio enquanto eram levados de volta ao porão e o navio se afastava do castigado, deixado a morrer no meio do Atlântico. Uma cena similar foi mostrada por Steven Spielberg em seu filme Amistad.

Como os demais escravos jovens, muitas vezes ele já pensara em fugir, mas nas conversas à noite na senzala era alertado pelos mais velhos dos perigos de se evadir num território desconhecido e, portanto, hostil para os africanos. Ouvia que muitos fugitivos morriam ou terminavam voltando famintos, feridos e assustados e sabia que, quando recapturados, eram submetidos a castigos dos mais cruéis. Mas alguns poucos não voltavam e haviam rumores que se agrupavam em locais desconhecidos e distantes, livres do alcance dos senhores de engenho e seus de capitães do mato. Nunca desistiu de seu sonho e anos depois ajudou seu filho a fugir para a liberdade e juntar-se a Zumbi no Quilombo dos Palmares, na Serra da Barriga, na divisa de Pernambuco com Alagoas, aproveitando a perturbação nos engenhos causada pela segunda invasão holandesa no Nordeste da colônia.

Essa pequena história fictícia poderia bem lembrar um pouco da história da escravidão no Brasil e em todas as Américas, com todo sofrimento que causou a milhões de indivíduos escravizados, arrancados de suas terras para fazerem a riqueza das potências imperialistas europeias no novo continente. A motivação desta carta nasceu de minha visita ao Museu Internacional da Escravidão em Liverpool, meu primeiro destino na cidade, lembrando também de minhas aulas de Formação Econômica do Brasil.

Minha expectativa ao avançar em direção ao norte da Grã-Bretanha era encontrar um país mais conservador, branco e formal, mas constatei que, como Londres, Liverpool é felizmente uma cidade igualmente globalizada em sua composição racial e nos seus costumes, culta e relativamente politizada, com uma comunidade negra muito ativa, uma grande Chinatown, muitos muçulmanos e indianos e gente de todo lado do mundo. Lembremos que Liverpool foi por excelência o grande porto da Revolução Industrial na Grã-Bretanha. Por aqui chegava todo algodão que vinha das Américas e ia às fábricas de Manchester, que fica no interior, e saia grande parte dos tecidos com os quais a Inglaterra inundou o mundo. Entre essas duas cidades surgiu também a primeira ferrovia do planeta.

Como outros desastres humanos, a história da escravidão transatlântica é uma essencial, trágica e dolorosa experiência humana que precisa ser contada e recontada para que nunca seja esquecida e jamais volte a acontecer. Essa é a função daquele museu, cuja visita procuro aqui dividir um pouco com os leitores dessa carta, recorrendo para isso propositalmente a muitas fotos, para partilhar com todos um pouco da experiência.

Em números de mortes que causou, essa gigantesca tragédia talvez só seja superada nas Américas pelo verdadeiro holocausto ocorrido contra a população indígena originária que, segundo estudos mais recentes, foi morta em mais de 90% pelas armas, mas especialmente pelos germes trazidos pelos europeus, contra os quais eles não tinham defesa. Quem quiser conhecer melhor essa história, recomendo vivamente aqui mais uma vez a leitura de Armas, germes e aço, de Jared Diamond, um livro essencial para entender nosso mundo. Como se pode ver pela Tabela e figura abaixo, em torno de 10 milhões de escravos desembarcaram nas Américas nos navios negreiros entre 1500 e 1870, sendo que desses, somente o Brasil recebeu 4 milhões de indivíduos. Não se leva em conta aqui os inumeráveis mortos na travessia do Atlântico por doenças, maus tratos ou castigo.

O tráfico negreiro operava numa relação direta com a acumulação de capitais na economia açucareira no Brasil e outros países e, no sul dos EUA e no Maranhão, em estrita ligação com o capital da indústria têxtil que demandava o algodão para as fábricas inglesas. Muitos, dos dois lados do Atlântico, enriqueceram imensamente com ele. Boa parte dos capitais acumulados na Bahia, Rio de Janeiro e Pernambuco até o século XIX, por exemplo, vieram desse comércio infame. Em suas salas, o museu de Liverpool busca retratar o lucrativo negócio da escravidão, com sua terrível história de sofrimento e crueldade, mas também lembrar a história de lutas, de coragem, insurreições, rebeliões, a maioria delas desconhecida.

Tão grande quanto o sofrimento dos escravos foi a luta pela liberdade, pelo fim da escravidão. As rebeliões negras foram inúmeras nas Américas. Em toda história da civilização, a história da luta pela liberdade foi sempre uma saga de resistência, sacrifício e coragem.

Desde os anos 1500 com certeza, houve resistência e tentativas de organizar pequenos Estados-território livres da escravidão na América. Em 1649, houve uma forte revolta dos negros em Barbados contra os brancos escravistas. Em 1663, explodiu outra grande conspiração dos escravos em Gloucester County, na Virgínia. Em 1712 outra insurreição negra ocorreu em Nova Iorque. Essas lutas cruzaram os séculos XVIII e XIX, culminando com uma grande onda de rebeliões simultâneas na Virgínia, Jamaica, Barbados, Guiana Britânia e Brasil por volta de 1820-30. Entre 1789 e 1816, ocorreram mais de 30 insurreições negras nas Américas. Sob pressão e por um cálculo econômico, de que estava perdendo em seus negócios para outros países como Portugal e Espanha com sua manutenção, em 1807 o parlamento britânico aboliu a escravidão em suas colônias.

Particularmente dramática foi a Revolução Haitiana (1791-1804), a primeira insurreição negra vitoriosa nas Américas, que literalmente incendiou o Haiti e suas fazendas de cana, também conhecida por Revolta de São Domingos, um conflito brutal na colônia francesa de Saint-Domingue, que conduziu precocemente à eliminação da escravidão e à independência do Haiti, tornando-o a primeira república governada por líderes de origem negra. Infelizmente, a destruição da economia açucareira, com o incêndio dos engenhos, ao não ser esta substituída por outra fonte de geração de riqueza, manteve o país e a população em grande pobreza. Mas não há bem maior que a liberdade: antes ser pobre e livre, que escravo.

No museu em Liverpool também está registrada a história de Zumbi do Palmares, por aqui conhecido também como Black Spartacus. Por uma questão de justiça, deveria estar também no museu o nome de Dandara. Ao contrário do que sempre escondeu a História oficial brasileira até recentemente, a resistência em Palmares também foi heroica e pioneira no Novo Mundo. O primeiro registro histórico conhecido que faz menção ao Quilombo dos Palmares, localizado na Serra da Barriga, na divisa de Pernambuco com Alagoas, data de 1597, mas há alguns historiadores que afirmam que ele pode ter surgido ainda antes.

Durante os anos 1600, Palmares, na verdade uma confederação de vários quilombos, que chegou a ter 20.000 moradores, resistiu e venceu militarmente várias expedições de portugueses e holandeses para destruí-lo, com técnicas de guerra apuradas para a época, só tendo sido finalmente derrotado em 1694, pelas tropas de milhares de jagunços de Domingos Jorge Velho, que precisou usar até mesmo canhões para vencer a resistência dos quilombolas.

Muitos de nós talvez não tenhamos noção de que uma aglomeração de 20.000 pessoas era algo imenso para os padrões do século XVII. Poucas cidades no Brasil colonial tinham tal população, mesmo no século XIX. O Quilombo dos Palmares foi na verdade um proto-Estado livre, nos primórdios do Brasil, que deveria merecer mais espaço na História do país. Há dez anos, subi a pé a escarpada Serra da Barriga, em União dos Palmares, para ver de perto o sítio do Quilombo e levar meu tributo a esse símbolo precoce e heroico de luta pela liberdade nas Américas.

No museu em Liverpool estão também registrados tributos a grandes figuras da luta pelo fim da escravidão ou contra a segregação, como Olaudah Equiano, Martin Luther King e Nelson Mandela, ao lado de muitos outros. Mesmo após o fim da escravidão em todos os países do mundo, a batalha por igualdade de direitos ainda não foi vencida e não é fácil.

Nos EUA, a luta contra a escravidão motivou reações furiosas dos escravistas, com o surgimento no Sul dos Estados Unidos de grupos como a Ku Klux Klan, fundada em 1866 no Tennessee, na sequência da derrota do sul no conflito contra o norte. Entre 1825 e 1860, mais de 100.000 escravos tiveram que escapar dos estados sulistas em direção ao norte usando um caminho secreto, a Underground Railroad.

A sangrenta Guerra Civil nos EUA, entre 1861 e 1865, a que mais matou nas Américas, que opôs o norte mais liberal capitalista e industrial ao sul agrário e escravista, tinha também como um de seus panos de fundo a continuidade ou não da escravidão e, em grande medida, a definição do que se estenderia para o oeste do país, se o modelo agrário, latifundiário e escravista do sul ou o capitalismo liberal industrializante e mini fundiário estabelecido no norte. Em um exercício de história contrafactual, alguns historiadores chegam a afirmar que se o sul escravista tivesse vencido aquele conflito, ou EUA provavelmente seriam até hoje um país tão atrasado quanto o Brasil.

Mesmo depois de expulsas da América no século XVIII e na primeira metade do século XIX, as potências europeias ainda empreenderam outra onda de colonização no mundo na segunda metade dos anos 1800. Partilharam o que ainda não estava colonizado na África e na Ásia. Depois da Segunda Guerra Mundial, no entanto, aproveitando-se do enfraquecimento das potências europeias, as colônias africanas e asiáticas lutaram e conseguiram sua independência. Mas em muitos deles, a segregação racial continuou, como na África do Sul, onde a resistência contra o apartheid imposto pela minoria branca tornou-se um símbolo da luta mundial por igualdade racial. Nelson Mandela, um dos líderes dessa luta, recebe destaque no Museu.

Nos EUA, mesmo com a vitória do norte na Guerra Civil em 1865 e o fim da escravidão, a segregação não acabou. Os negros não eram reconhecidos como cidadãos com direitos iguais. A mentalidade escravista, racista e de vingança continuou no sul derrotado. Entre 1882 e 1950, a Ku Klux Klan matou por linchamento 4.000 negros. Já em 1932, esse grupo reunia 1 milhão de membros formais, com apoio de outros milhões.

Neste contexto, já nos anos 1960, emerge o movimento Black Power e se insere a luta de Martin Luther King e Malcolm X, depois assassinados por extremistas supremacistas brancos. Eles também têm sua história registrada no museu. King, como Malcolm X, tinha muito claro que os Direitos Civis para os negros não seriam concedidos voluntariamente, sem muita luta.

O Museu relembra ainda muitas outras figuras de destaque mundial de origem negra, como Desmond Tutu, Cassius Clay, Obama, Gilberto Gil e Pelé.

A longa exposição termina apontando que a luta por igualdade de direitos está longe de terminar, afirmando que uma política de reparações ainda se faz necessária, porque não é possível igualar os ainda hoje desiguais em termos socioeconômicos e de oportunidades. Essa é a lógica que está por trás das políticas de cotas raciais no Brasil e que gera tanto ódio na direita brasileira.

A função central do museu de Liverpool, como já disse ao início, é não deixar esquecer o monumental crime que foi a escravidão transatlântica negra. Infelizmente, no Brasil, o maior destino dos escravos nas Américas, ainda há pouca consciência sobre a questão e existem poucos museus sobre o tema. Há um bom museu em Salvador, mas no Rio de Janeiro, Recife e São Luís, por exemplo, faltam grandes e educativos museus sobre o tema, que sirvam de educação às novas gerações, fundamentalmente para as crianças. Talvez possam surgir por iniciativa de alguns parlamentares de esquerda.

A escravidão negra transatlântica é um desses gigantescos crimes da história humana que deve ser sempre lembrado para que nunca volte a se repetir. Como o massacre contra a população indígena das Américas, que pode ter matado até 20 milhões de indivíduos, ou o holocausto que assassinou 6 milhões de judeus na Segunda Guerra Mundial, ela deve ser sempre lembrada e relembrada para que nunca mais aconteça. Tão importante quanto não deixar esquecer o saldo negativo desse processo, no entanto, é lembrar a tenaz história das lutas contra a escravidão, cada uma das milhares de vidas perdidas, dos líderes e dos anônimos, heroicamente empenhadas na luta pela liberdade nas Américas.

Londres, 19/08/2019

Robério Paulino  

 

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