O trágico acidente de Eduardo Campos reembaralhou as cartas da disputa eleitoral. Mas, paradoxalmente, potencializou sua chapa, de uma forma que acordos políticos em vida jamais conseguiriam fazer.
Também acho, como o próprio Eduardo achou, que a entrevista ao Jornal Nacional nesta terça-feira era o start de uma campanha eleitoral de sucesso. Até onde chegaria, jamais saberemos. Mas o fato é que os (fortes) componentes da sua candidatura – incluindo sua habilidade de conversar tanto com “as ruas” quanto com caciques da economia, e o cacife eleitoral e de credibilidade social trazido por sua vice, Marina Silva – andavam esbarrando em dois obstáculos.
De um lado, a dificuldade, mesmo com o cansaço absoluto do país com o chamado fla-flu, em romper a captura política pela ordem dicotômica do embate entre PT e PSDB. De outro, os choques entre o pragmatismo do PSB (na verdade um saco de gatos, unificado pelo carisma de Eduardo) e o principismo “ranzinza” de Marina.
Dá para entender porque Marina torpedeou, sem sucesso, acordos locais como os do PSB em São Paulo (com Alckmin, do PSDB) e no Rio (com Lindbergh, do PT). Mas também dá para entender porque o PSB considerava que a pretensão de purismo das estratégias marinistas não agregava ao partido.
Para chegar a vice de Eduardo, Marina passou antes por um erro político grave – e por um acerto surpreendente, naquele que seria seu momento mais baixo: a recusa da justiça eleitoral em registrar seu partido, a Rede, em outubro de 2013. O erro foi não surfar nas manifestações de 2013. Se Marina desse uma única entrevista, como evangélica, no auge da crise da indicação do pastor Feliciano para a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmera dos Deputados, defendendo com clareza o estado laico, se projetaria como a liderança nova que ela pretende ser. Marina seria heroina nas manifestações de junho.
A campanha de coleta de assinaturas pelo registro da Rede seria turbinada, e hoje Marina seria candidata por seu próprio partido. Marina fez o contrário – ficou muda e, quando falou, foi para dizer que Feliciano sofria preconceito como evangélico. Totalmente na contramão das ruas, que pretendia representar.
O acerto, bombástico, foi quando Marina ousou propor sua adesão à chapa de Eduardo. Apesar de ter causado estranheza política, o ato tinha um significado simples: investir o cacife eleitoral de Marina (quase 20% nas eleições presidenciais de 2010) em impactar em cheio a eleição seguinte. Marina ingressou no PSB, deixando avisado que seu objetivo final ainda era registrar a Rede.
Para quem o resgate da esquerda passa pela derrota do PT, faz todo sentido. E Eduardo parece ter compreendido isso, para além da oportunidade eleitoral de transferir para si tais votos. A emocional manifestação de Marina após a morte de Eduardo também parece carregada de sentimento real de perda, para além do choque do acidente. A união entre Eduardo e Marina se deu de fato.
A questão de quem encabeçaria a chapa não era apenas simplesmente a de quem tinha mais votos à partida – aí seria Marina. Mas Marina tem também uma taxa alta de rejeição. Colocar Eduardo à cabeça da chapa tinha a correção de “lavar” essa rejeição, transferindo a ele apenas a parte boa, os votos da acreana* (e de resto esse era o único acordo possível sob o manto do PSB).
Na realidade pragmática dos acordos eleitorais, no entanto, a diferença de personalidades e de projetos políticos tinha vindo à tona, desequilibrando bastante a relação. Não era propriamente uma novidade. Marina já tinha abandonado o PV, pelo qual se candidatou em 2010 e teve desempenho notável, com a mesma fama de intransigente, de “invasora arrogante” que vinha adquirindo no PSB (uma única colocação em off de um dirigente do partido nesta terça ilustra bem isso: “Marina agia como se nos fizesse um favor”).
Acontece que a morte trágica de Eduardo resolve tudo isso como que num passe de mágica – se as partes envolvidas tiverem o bom senso de não perder o momento mágico, sensível e empático (tragédia também é magia).
Marina tem a motivação para abandonar um pouco a rigidez política (em parte já abandonou, tendo que lidar com os acordos de São Paulo e Rio, mesmo reclamando em público). É verdade que o PSB não fica numa posição confortável – tendo perdido o líder que lhe dava unidade, tem que comprar um outro, exterior, maior que o PSB e até então hostil às conveniências do partido.
Pior que isso, Marina nunca escondeu que pretende partir do PSB para a nova tentativa de registro da Rede. O mesmo dirigente, falando em off a Josias de Souza, disse que lançando um nome de confiança, mesmo obscuro, o partido não deixaria de ter seus 7 ou 8%. Eventualmente melhor que entregar tudo a Marina.
Acontece que o clamor emocional e popular é pela subida de Marina à cabela de chapa. Em dois dias da morte de Eduardo, já está acontecendo. A família Campos, como Antonio, a viúva Renata e a mãe Ana Arraes, vai apoiar Marina.
“Externo a minha posição pessoal de que Marina Silva deve encabeçar a chapa presidencial da coligação (…) Tenho convicção de que essa seria a vontade de Eduardo”, escreveu Antonio, abrindo a conversa ainda num momento delicado, com a autoridade de irmão único e membro do diretório nacional do PSB. A instrução de Marina para a Rede é não abrir publicamente a discussão até o funeral de Eduardo. Que, enquanto escrevo este texto, na quinta-feira à noite, ainda não tem data definida. O reonhecimento dos corpos no IML de São Paulo pode se prolongar pelo fim de semana.
Mas os prazos legais são curtos. Com o desaparecimento, renúncia ou impedimento do candidato, a lei estabelece 10 dias para a definição do substituto, pelos seis partidos da coalizão. O limite é o próximo dia 22. Se for Marina, há que registrar também a desistência dela como vice, e uma chapa toda nova, com um novo vice.
Mais que isso, na próxima terça, começa a campanha na TV e rádio (a menos que os partidos todos que disputam a presidência concordem com um adiamento, diz o STE). Eduardo já havia gravado material para três programas. Esse material pode ser editado e levado ao ar. Mas não dá para esperar que se adie a decisão por mais do que um ou dois dias de campanha.
Na coalizão, a tese de Marina à cabeça começou a ganhar corpo já na quinta-feira. Já haviam se manifestado favoravelmente a Marina líderes de cinco dos seis partidos, PHS, PRP, PPL e PSL. A principal questão é: quem será o vice. Alguém do PSB, que compense a perda da cabeça de chapa? Até alguém da própria família Campos já foi cogitado.
Mas o que isso tem a ver com Dilma e o PT? Na eleição de 2010, Dilma já passou pela “prova Marina”. E teve que crescer politicamente, ganhar substância durante a campanha como mais do que uma invenção de Lula. Foi bem sucedida – mas não. Durante o mandato, demonstrou, principalmente em relação ao governo Lula (um exemplo de “governo mágico”), uma grande falta de habilidade, de carisma, de sensibilidade social e de intuição política.
Marina até hoje não deu mostras de ser muito maior que isso. Pelo contrário. Eu não vejo a menor credibilidade em uma mulher evangélica – ainda mais de esquerda. Porque alguém que tem útero, ou seja, um plugin com a própria natureza criadora, iria acreditar que há um foco de poder moral infalível superior e externo a ela, representado por um patriarca barbudo? Só pode ser por um extremo moralismo, derivado de percepções de culpa e punição.
A própria origem do PT é uma convergência de duas culturas de martírio: a cristã e a sindical. Apesar de já ter sido apoiado fortemente pela área cultural e por movimento sociais mais contemporâneos, de juventude e libertários, o que PT veio demonstranstrando nesses doze anos foram suas limitações de origem. Que se exacerbaram no mandato de Dilma.
O autoritarismo, a autossuficiência e a incapacidade de autocrítica do PT, na verdade, estão por trás da própria candidatura de Eduardo. Ministro da Ciência e Tecnologia de Lula, pernambucano como o presidente, foi próximo o suficiente dele para aspirar a ser tratado como um herdeiro político, mesmo sendo de outro partido.
A “invenção” de Dilma por Lula, pinçando um membro de sua equipe sem a menor densidade política, deixou claro que Lula não admite quem tenha personalidade, e que pudesse lhe fazer sombra um dia, como Eduardo ou a própria Marina. Foi Lula que afastou os dois, de si mesmo e do PT.
Acontece que a morte de Eduardo joga no colo de Marina, que é uma petista clássica, um mártir grátis. Um segundo cristo. Separa o cristo militante do cristo martirizado – é como se o mito do Eduardo sacrificado em sua luta por um país melhor liberasse as energias de Marina para um combate mais objetivo. É uma troca de papéis entre Eduardo e Marina, e uma memética poderosa – se não for desperdiçada.
O “supremo roteirista” forçou a mão. A desaparição absurda e atordoante de Eduardo Campos paradoxamente pode liberar, coesionar e turbinar sua coalizão. E significar um golpe de (da) morte na candidatura Dilma.
*Escrevi “acreano” em homenagem aos acreanos – é como se diz lá, e não o “acriano” imposto pela reforma ortográfica
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