SÃO GONÇALO DO AMARANTE RN-O trabalho duro dos que não têm trabalho


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Eduardo Marini, do R7
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Expediente. Substantivo masculino. Serviço ou tarefa rotineira do dia a dia. O expediente diário do paulistano Fabrício da Silva Rodrigues, 35 anos, começa cedo. No início da manhã, antes mesmo do perfume do café se dissipar na casa dividida com a mãe em Guaianases, zona leste de São Paulo, ele começa a conferir os currículos a serem entregues, os destinatários e os endereços da jornada.

Quando consegue ao menos R$30 para arcar com o PF do almoço e até quatro conduções, dependendo dos destinos, passa o dia na região central de São Paulo.

Na seca total, caminha por seu bairro e regiões próximas, conferindo respostas nos lugares visitados anteriormente e apresentando suas credenciais em novos estabelecimentos. À tarde, “quando aparece”, encaixa uma grana com bicos feitos para vizinhos e conhecidos.

É enganosa a ideia de que desempregados não possuem expediente. Técnico de segurança do trabalho por formação, com mais de três anos de experiência na trajetória, Rodrigues está sem emprego há mais de um ano.

Apesar disso, ele, as outras personagens desta reportagem e a maioria dos 11,9 milhões de desempregados brasileiros trabalham duro no mais duro dos trabalhos: buscar recolocação sem sucumbir ao ataque devastador das adversidades financeiras, emocionais, físicas e psicológicas do período. Elas aniquilam impiedosamente o equilíbrio e a autoestima dos sem emprego.

“Procurei emprego em outros momentos do país. Jamais recebi tantos ‘nãos’ na vida. Estou certo de que isso ocorre com todos. A gente cria a expectativa e vem a frustração, recria a expectativa e vem nova frustração. Quem nunca esteve desempregado por longo período jamais terá ideia do quanto dói esse vai e vem”, conta o técnico Fabrício (assista acima ao vídeo com ele e outros sem emprego nesta reportagem).

Rodrigues mostra confiança. “Não bastasse, as contas se acumulam, falta dinheiro para as coisas básicas… Você se sente diminuído. Muitos se descontrolam ou desistem de procurar trabalho por isso. Se entregam. Mas, comigo, não. Há muita gente qualificada, até engenheiro, querendo entrar na minha área, mas vou me recolocar rapidamente.”

Fabrício Rodrigues procura emprego há mais de um ano (Arte R7/Sabrina Cessarovice)

Os números do desemprego

O boletim da PNAD Contínua/IBGE divulgado em 27 de dezembro do ano passado informa que o Brasil tem 11,9 milhões de desempregados. Isso representa 11,2% dos 106,3 milhões da força de trabalho do país.

Se incluirmos os subocupados (em atividades abaixo da trajetória e formação e com salários menores) e desalentados (desistentes da procura por uma vaga), chegaremos a 31,3 milhões de afetados.

São números ainda incômodos, mas o desconforto já foi maior. O país vive desde 2014 a mais profunda e duradoura crise econômica de sua história, mas alguns indicadores apontam para o provável início da tão esperada e desejada recuperação.

Dos 12,6 milhões de desempregados existentes no trimestre entre junho e agosto de 2019, 702 mil, ou 5,6% do total, arrumaram ocupação (leia quadro nesta reportagem). Além disso, em 2019 houve aumento de 18,1% no número de empresas abertas em relação a 2018. E, mais importante, foi registrado o maior crescimento de novos negócios de pequeno, médio e grande porte, que geram empregos.

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Apesar das novidades positivas, ainda há pela frente a missão inalienável de permitir um caminho para a suprema maioria desses 11,9 milhões de trabalhadores à margem do mercado. Um deles é o italiano Giuseppe Tagliabue, 37 anos, graduado em Mecatrônica em Milão, na Itália, e com larga experiência em instalação de sistemas eletrônicos, de segurança e TV por assinatura.

Fora do mercado por ser qualificado

O furacão da crise atingiu Tagliabue e a mulher, brasileira, em cheio. Os dois estão desempregados há um tempo. Como empregado dedicado à tarefa de arrumar emprego, ele não perde o tempo que muitos ainda acham que lhe sobra. Diariamente, faz contatos telefônicos e envia entre 30 a 40 e-mails para endereços de vagas relacionadas à sua experiência.

Ao menos uma vez por semana, Tagliabue quebra a rotina para visitar empresas para entrevistas ou ir a agências de emprego da Barão de Itapetininga, a ‘Rua do Desempregado’, no centro de São Paulo. “Um selecionador disse que fui descartado por não ter experiência em sistemas de TV por assinatura. Foi o que mais fiz na vida e isso é o que está mais destacado em meu currículo, meu Deus.”

Tagliabue diz ter passado por situações curiosas nessa longa caça à vaga. “Me aconselharam, numa empresa, a retirar coisas do meu CV para não desconfiarem de que poderei ter ambições maiores ou pedir mais do que o planejado para o lugar. Ficou claro que fui punido por ser mais preparado do que o exigido para a vaga. Era o que faltava: ser castigado por saber fazer todo o trabalho pretendido e mais outras coisas. Quero somente trabalhar e viver em paz com minha mulher”, implora.

No aperto, Tagliabue candidatou-se a vagas em serviços básicos, incluindo alguns de limpeza. Sua mulher estava negociando um emprego com chance de sucesso, mas enfrentou um problema comum nessas situações. Sem dinheiro para se sustentar fora de casa, ela solicitou à empresa vale-refeição e dinheiro de passagem suficientes para os primeiros 20 dias de trabalho, até receber a primeira parcela de salário. O futuro patrão negou.

O italiano Giuseppe e sua mulher brasileira também estão à procura de trabalho  (Sabrina Cessarovice)

Após a entrevista, Tagliabue enviou uma mensagem à reportagem do R7. Estava preocupado com a ameaça de despejo imediato por falta de pagamento de aluguel que acabara de receber. Temia ser um sem-teto no dia marcado para receber a reportagem do portal em sua casa. Felizmente, conseguiu resolver o problema, ao menos temporariamente, dois dias depois.

Por todos esses desdobramentos, a dor verdadeira da desocupação, em suas reais dimensões, é quase sempre sentida sem alarde pelo desempregado, pois ele se sente diminuído, e até mesmo desonrado, em dividi-la com amigos e parentes.

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Em muitos casos, como se todos os revezes não bastassem, o sem emprego ainda sofre com o preconceito dos que o acusam de corpo mole e incompetência proposital, por malandragem, na busca de recolocação. Ser ajudado financeiramente por pessoas próximas nem sempre é possível – e quando é, até pelas dúvidas, nem sempre existe disposição.

Com formas, dimensões e intensidades distintas, esses contextos incomodaram as paulistanas Maira Heloiza da Silva, 31, e Célia Reinoso, 39. Maira encerrou os trabalhos no último emprego há pouco mais de um ano. Cuidava de eventos e questões administrativas num restaurante paulistano. Antes disso, deu aula de idiomas, trabalhou em hotéis e, por um ano e meio, prestou serviços em navios, para duas multinacionais, em cruzeiros marítimos pela Europa e o Caribe.

Maira Heloisa procura emprego há mais de um ano (Arte R7/ Sabrina Cessarovice)

Poliglota (além do português, fala inglês, espanhol, italiano e o básico de alemão), mas sem diploma de curso superior, Maira sofre as consequências de ser posicionada numa faixa profissional intermediária, criada no Brasil por um misto de preconceito, métodos ultrapassados e medo corporativo de concorrência profissional competente.

“Procuro oportunidades na internet e por meio de contatos antigos com disciplina”, diz Maira. “Nos últimos contatos, quem tinha emprego em entrada não fechou por me julgar qualificada demais para a vaga. E quem exigia formação superior me descartou por não ser graduada, mesmo tendo em mente que eu poderia desempenhar a função com eficiência igual ou até maior de que a de alguém com graduação”, explica.

A formação que faz falta

Canudo não é problema para Célia. Formada em administração de empresas, com cursos de aperfeiçoamento e especialização no currículo, fez uma carreira marcada por reconhecimento e elogios em duas multinacionais, uma americana e outra francesa. Inquieta, ingressou, aos 30 anos, no universo da internet, como integrante de times de operação de grandes sites nacionais e internacionais de compras e vendas coletivas.

Em 2015, justamente no período em que o aperto econômico se consolidou e passou a tomar conta do pedaço, Célia sentiu necessidade de promover um intervalo na carreira para dar suporte ao pai, que ficara doente.

Com a morte do pai, em 2016, ela decidiu tentar a recolocação, mas a crise apresentou uma fatura alta. “Adoro me aprimorar em tecnologia. Em nenhum momento, inclusive durante a retirada, deixei de me atualizar. Só que, com o arrocho, as vagas para profissionais qualificados sumiram do mapa. O que mais ouvia, na certa por desconfiança pela pausa, era coisa do tipo ‘não há nada que te desqualifique ou desabone, mas escolhemos outra pessoa’. Comecei a questionar até se estava velha para o mercado aos trinta e poucos anos”, conta.

Apesar da procura, as oportunidades de entrevista e avaliações foram ficando raras. Pragmática, Célia não desistiu de voltar ao mercado, mas tomou decisões de vida importantes. Solteira e sem filhos, aplicou as economias num investimento, para se manter, e virou integrante de um projeto de trabalho voluntário com crianças carentes.

Célia precisou deixar o último emprego para cuidar do pai. Não conseguiu voltar ao mercado (Arte R7/ Sabrina Cessarovice)

Ela continua aberta a conversas para recolocar seu talento no mercado. “Alguém pode imaginar que, profissionalmente, estou atualmente entre o desemprego e o desalento, mas não é isso. Não vou ficar chorando em casa como se a vida fosse apenas essa questão. Descobri no trabalho social uma forma de manter o equilíbrio e não pirar. Sou feliz com ele. Minha vida vai seguir com esses eixos”, projeta a administradora.

Só conhece a dor quem tem o espinho no pé. Um desempregado sabe disso mais e melhor do que qualquer um. Que a economia vença a guerra contra a crise no menor período de tempo possível. E ajude Fabrício, Giuseppe, Maira, Célia e os demais 11,9 milhões de sem emprego a retirar da carne esse espinho doloroso do tormento.

Abertura de empresas cresce 18,1% em 2019

Os sinais de que o país começa a se recuperar, ainda que lentamente, da mais profunda e duradoura crise econômica de sua história, começam a surgir.

Um deles se revela no número de empresas abertas no Brasil em 2019. Levantamento da empresa de avaliação e serviços Boa Vista mostra que os novos registros empresariais abertos no país cresceram 18,1% em comparação com 2018. Um percentual expressivo.

O total do quarto e último trimestre (outubro a dezembro) foi 15,2% menor em relação ao período anterior, entre julho e setembro. Mas houve um aumento de 17,8% quando comparado ao mesmo período de 2018, o trimestre outubro/dezembro. Todas as regiões apresentaram crescimento em 2019. Os maiores foram no Norte (25,2%) e Centro Oeste (18,8%).

Mais uma vez, as empresas de Micro Empreendedores Individuais (MEIs) responderam pela suprema maioria das aberturas. Elas representaram 78,4% do total, mais do que os 75,4% de 2018.

São negócios abertos por pedreiros, costureiros, marceneiros, produtores de marmita e comida caseira, a turma que deixou a vida de funcionário e caçador de emprego para tentar ser dona do próprio nariz. Possuem faixa de faturamento bruto máximo anual definido legalmente em R$ 85 mil e, no máximo, um funcionário além do dono.

Desde 2014, com o surgimento da crise econômica, o crescimento do número de empresas vem sendo sustentado, na quase totalidade, pelo aumento de novas MEIs. Não é difícil entender: o embalo foi provocado pelos desempregados, subempregados e desalentados da crise que decidiram abrir o próprio negócio.

A novidade positiva de 2019 em relação aos cinco anos anteriores, captada pela pesquisa, é o aumento discreto, mas importante, entre 3% e 4%, também no número de registros de empreendimentos maiores: eirelis, sociedades anônimas e limitadas, ou seja, empresas de pequeno a grande porte.

Quando negócios de patamares acima das MEIs voltam a ser abertos, é sinal de que algum nível de confiança na economia começa a ressurgir em ao menos parte dos investidores.

Empresas maiores geram vagas. Criam empregos. A continuidade do crescimento desses índices, números e percentuais beneficiará, acima, de tudo, um grupo específico da sociedade: o composto por Maira, Célia, Fabrício, Giuseppe, os demais heróis retratados nessa reportagem e os mais de 11 milhões de desempregados ainda em luta por uma vaga Brasil afora.

A rua dos desempregados

Na bela Barão de Itapetininga, no centro de São Paulo, funciona a maior holding informal brasileira de serviços dedicados a quem não tem serviço

 

O desempregado que entra num dia da semana por uma ponta da Rua Barão de Itapetininga, no centro de São Paulo, tem chance concreta de sair na outra com uma quantidade razoável de apelos e incentivos.

Ele poderá ter alguma joia empenhada para aliviar o sufoco imediato. Ou uma inscrição em um curso profissionalizante com ou sem promessa falsa ou verdadeira de contratação no final. Ou orientações para receber o seguro desemprego. Xerox de documentos, endereços de vagas para enviar currículo e até acordo com um advogado para tentar receber, na Justiça, algo mais do último patrão. E, de repente, quem sabe, até um emprego.

Caminho de ligação entre quatro ícones do centro paulistano – a Praça da República e a Avenida Ipiranga de um lado, e a Praça Ramos de Azevedo, com o Theatro Municipal, do outro -, a Barão consolidou-se como a Rua dos Desempregados.

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Nos últimos cinco anos, com o aprofundamento da crise econômica, o número de desempregados que passou a frequentar as calçadas, prédios, escritórios e pontos de serviço da rua aumentou consideravelmente.

Com 11,9 milhões de ‘clientes potenciais’ no país, era de se esperar que a Barão, a maior holding informal brasileira a serviço dos sem serviço, estivesse mesmo de vento em popa. “As ruas temáticas são uma característica da cidade. Para lembrar as mais famosas, há a das bijuterias, dos lustres, das noivas, dos eletrônicos, das autopeças, das motos, dos móveis, dos instrumentos musicais e da moda feminina. Seguindo a tradição, a Barão transformou-se na rua dos desempregados”, constata Francine Amadeu, gerente de recursos humanos da Luandre, tradicional agência de recrutamento com doze unidades nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná e sede geral instalada há 49 anos na… Barão, claro.

Francine destaca que a Luandre não é remunerada pelo candidato, e sim pelo dono da vaga, quando ela é ocupada por um indicado pelo grupo. “É uma diferença fundamental porque, infelizmente, ainda existem por aqui, embora em número cada vez menor, empresas que cobram do trabalhador quando ele começa no emprego ou mesmo antes disso, no ato da inscrição. Uma prática condenável. Não se pode tirar proveito de pessoas em momentos de dificuldade até mesmo para o básico, como comer e se locomover”.

As placas vivas e os plaqueiros são características marcantes da Barão de Itapetininga. Os primeiros são pessoas, normalmente aposentadas, que recebem cachês para andar pela rua com anúncios de empregos e serviços pendurados no corpo. Os plaqueiros atuam em pequenas bancas improvisadas em caixas. Além de anunciarem vagas, recolhem currículos de desempregados e os encaminha a agências instaladas nos prédios da rua. Os dois ganham entre R$ 30 e R$ 50 por dia de trabalho.

Outra instituição da Barão é o uso do eixo dos belíssimos postes de ferro da década de 1930, que cortam a rua de uma ponta a outra, como ponto de apoio para cartazes com ofertas de emprego e serviços.

Em torno de alguns deles, a reportagem do R7 conversou com resistentes à procura de espaço profissional. “Preciso voltar logo a trabalhar. Sou separada. Crio sozinha duas filhas, uma de cinco e outra de sete anos”, disse Ewerlyn Maurino, 28 anos. “Sou auxiliar de enfermagem por formação. Perdi meu emprego na área, fui trabalhar em um supermercado ganhando salário mínimo e saí de lá. Agora, estou de novo da busca”, revela Vanessa Aguiar, 35.

“Estou me casando. Sem emprego não dá”, reclama Josinaldo dos Santos, 39, morador da Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo. “Fiz ensino médio voltado à agropecuária. Vim para São Paulo estudar teatro e buscar meu primeiro emprego. Se Deus quiser dará certo”, aposta a mineira Nicole Cardoso, 20 anos.

A Barão de Itapetininga é a prova de que ajudar quem não ganha dinheiro pode ser uma boa forma de ganhar dinheiro.

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Coordenação: Tatiana Chiari
Reportagem: Eduardo Marini
Apoio: Luciana Mastrorosa
Arte: Sabrina Cessarovice
Fotos: Edu Garcia e Márcio Neves
Produção audiovisual: Caroline de Moraes
Imagens: Pedro Canin e Márcio Neves
Estagiários: Denise Marino
Edição de vídeo: Edimar Sabatine e Danilo Barboza
Videografismo: Eriq Gabriel Di Stefani e Marisa Eiko Kinoshita
Sonoplastia: Luciano Gonçalves

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