A direção de uma escola municipal, localizada em São Gonçalo do Amarante, na Grande Natal, está apurando casos de três adolescentes que se automutilaram. As estudantes de 12 e 13 anos de idade usaram lâminas de apontadores e estiletes para fazer dezenas de cortes no braço. A partir da descoberta do fato a direção montou uma força tarefa envolvendo a Secretaria Municipal de Educação, o Conselho Tutelar, Ministério Público, Proerdi e psicólogos para enfrentar o problema.
“Foi uma aluna que veio nos dizer que a menina estava com retaliações no braço, então mandamos chamar a menina e conversamos com ela e perguntamos por que ela fez isso e aonde foi. Ela disse que fez em casa e que estava com o coração com problema e fez isso pra superar o problema. A partir daí identificamos outros dois casos na escola. Todos os pais foram chamados e comunicados”, explicou a diretora da unidade escolar, Goreti Silva.
O G1 conversou com duas alunas da Escola Municipal Vicente França que se automutilaram. Nenhuma das duas será identificada nesta matéria. Em comum, as meninas têm o fato de acreditarem que derramando o sangue iriam conseguir aliviar um sofrimento ou uma dor causada por algum problema, como se a dor física pudesse amenizar a dor emocional.
Município, Conselho Tutelar, Ministério Público
e Creas (Foto: Fernanda Zauli/G1)
Uma das adolescentes conta que ouviu vozes que diziam que ela passava o dia chorando, mas que poderia trocar uma lágrima por uma gota de sangue para aliviar a dor causada pelo problema que ela enfrentava. “Eu me isolava muito por causa de vários problemas que eu estava passando e esses problemas iam só piorando e se acumulando. Uns se resolviam , mas eu não esquecia e isso me angustiava muito. Foi aí que as vozes surgiram. Elas surgiam mais nos meus sonhos e do nada ficava tudo escuro e falava ‘você passa o dia chorando sendo que no lugar de uma lágrima você poderia trocar por uma gota de sangue’. Era quando eu me angustiava, me angustiava e já estava me cortando”, diz a aluna.
A outra estudante diz que viu na Internet que se cortando iria conseguir amenizar o sofrimento por que passava. “Eu via na Internet as pessoas fazendo e que também quando você fazia aliviava a dor. Aí eu comecei a me cortar achando que seria só fazer por fazer mesmo. Só que eu fui vendo que depois do primeiro você vai se cortando mais e mais e acaba se acostumando”, conta.
Os cortes eram feitos com a lâmina de apontadores de lápis, estiletes e até lâminas de barbear. Nos dois casos as estudantes só procuraram ajuda da família após a escola descobrir a automutilação. De acordo com a diretora da escola, no depoimento das adolescentes foi detectada a ausência dos pais no acompanhamento dos filhos no dia a dia. “O conselho que eu dou é que os pais tenham um olhar mais especial. Muitos saem pra trabalhar cedo e os filhos estão dormindo, quando voltam já a noite os filhos já estão dormindo, então eles não têm tempo para conversar, não sabe o que está acontecendo com essas crianças. Quando esses adolescentes têm algum probleminha para conversar com os pais não tem a presença fundamental. Os pais precisam de um olhar mais especial para com os filhos”, disse.
O secretário extraordinário da Prefeitura de São Gonçalo do Amarante, Heráclito Noé, explica que está sendo desenvolvido um acompanhamento sistemático e permanente do caso. “Todas as medidas que uma instituição de ensino séria pode fazer está sendo feito. A direção convocou uma equipe de profissionais de várias áreas do comportamento para em um mutirão, juntamente com as famílias, envolvendo toda a comunidade escolar, tentar enfrentar e superar esse problema. Em mais de quarenta anos que eu lido com essa questão de violência no ambiente escolar eu nunca tinha visto essa automutilação em escala”, afirma.
adolescência é essencial
(Foto: Fernanda Zauli/G1)
Presença dos pais
O psicólogo Francisco Alves da Rocha, coordenador do Centro de Referência Especializada de Assistência Social (Creas), explica que a automutilação pode ser um transtorno de personalidade. Segundo ele, na fase de transição entre a infância e a adolescência – quando não são mais crianças, mas também não são adultos – acontece uma desarrumação nos jovens, “um caos necessário”, quando a presença dos pais é mais necessária.
“É importante o adolescente ter a presença dos pais, esse apoio familiar. Porque é a família que trata esse adolescente dentro de todas as suas necessidades e é na família que ele tem todo o esteio. Quando ele não encontra isso na família ele vai buscar na própria realidade dele e pode estar na próxima esquina, na escola, pode estar no grupo da torcida organizada, pode estar no aliciador da droga e pode estar na internet”, diz.
Ele explica que em muitos casos a Internet atua como multiplicadora de casos de automutilação, já que basta uma pesquisa em sites de busca para encontrar vídeos, inclusive, ensinando como se automutilar. “Existe uma apologia literalmente. Agora, eu estou aqui cheio de insatisfação, de conflito, ninguém me valoriza, e vem uma pessoa e diz que a cada gota de sangue que eu tirar do meu corpo vai ser um sofrimento a menos. Eu tenho 14 anos, não tenho qualquer juízo de valor, estou desarrumado, eu caio nessa”, analisa.
O psicólogo ressalta que os pais não podem absorver esse problema como uma situação qualquer e precisam interferir. “Rubem Alves, que é um grande pensador da educação, diz que nós – família e escola – somos a última instância que temos para fazer alguma coisa por essa geração que nos pertence. Porque o Estado já faliu, as outras estruturas já faliram, os ídolos morreram de overdose, então resta-nos família e escola. Se a gente sair desse papel de articulador, de agente positivo, essas crianças vão ficar entregues ao próximo aliciador que eu não sei quem é”.