PENDÊNCIAS RN-MARCO AURÉLIO RAYMUNDO, O MORONGO, TRANSFORMOU A MORMAII NA MAIOR MARCA DE SURFE DO PAÍS, COM VENDAS DE MEIO BILHÃO DE REAIS POR ANO. AGORA, ESTÁ DANDO PARTES DO NEGÓCIO A FUNCIONÁRIOS – E ESSA ESTRATÉGIA SÓ O TORNA MAIS RICO
Um helicóptero da marca italiana AgustaWestland pousa no gramado da fábrica da Mormaii, em Garopaba (SC), a maior marca de surfe do Brasil, cujos produtos devem vender R$ 600 milhões neste ano. Da nave, desembarcam quatro executivos do banco BTG Pactual.
Eles formam um conjunto de ternos bem cortados que avança até o escritório de Marco Aurélio Raymundo, conhecido como Morongo, o fundador da empresa. Após os cumprimentos de praxe, revelam o motivo da visita: querem propor a venda da companhia, avaliada em quase R$ 1 bilhão, para um grupo internacional. Morongo bate a mão na mesa e sobe o tom: “Vocês sabem que estão me fazendo perder um tempo que eu poderia ter dedicado aos meus netos? Acham que eu quero esse dinheiro para quê? Olha, vocês vão me dar licença”. O empresário se levanta, mira a porta e grita para o filho: “Flavius, você pode atender estes caras?”. Budista, com jeitão de quem vive na praia, Flavius nem sequer trabalha na Mormaii. Naquele dia, estava por ali, meio por acaso – e de chinelos. Ainda assim, ele se senta à mesa, encara o grupo e abre um sorriso: “Do que a gente ia falar, mesmo?”.
Existem jeitos e jeitos de lidar com negócios. E existe também o jeito do Morongo. (O apelido, aliás, vem da infância. Marco Aurélio trazia umas pintinhas no rosto, semelhantes às existentes no morango. Daí, a alcunha pegou.) O BTG, observe-se, não foi o único banco de investimento a ouvir uma resposta rude para uma oferta de venda. A lista de negativas inclui, entre outras, uma dada em Nova York para a turma do J.P.Morgan. Para todos os efeitos, Morongo não está interessado em vender a Mormaii. Ocorre que, paradoxalmente, ele não vê problema em doar partes da companhia para funcionários e para pessoas de sua confiança – e, em um futuro não muito distante, quem sabe abrir mão dela toda.
Parece maluco, mas essa “generosidade” tem feito dele um homem mais rico. E não se trata de riqueza espiritual. É dinheiro, mesmo. Três anos atrás, por exemplo, ele doou a fábrica de roupas de neoprene, aquelas que os surfistas usam no inverno, coladas ao corpo. A confecção vendia R$ 10,5 milhões e dava prejuízo. Os processos estavam desorganizados. Uma primeira tentativa de doá-la a seis funcionários mixou. Morongo decidiu, então, ter uma conversa com Carlos Casagrande, de 38 anos, um galego de Criciúma, que detinha as licenças para fabricar protetores solares e aparelhos ortopédicos com a marca Mormaii.
Surfista apaixonado desde os 10 anos, Casagrande tinha bons resultados com esses produtos. Por isso, no início de 2012, Morongo disparou: “Tu queres a fábrica?”, disse, em um notório gauchês (ele nasceu em Barra do Ribeiro). Surpreso, Casagrande respondeu que não teria dinheiro para comprá-la. “Eu não quero que tu pagues”, replicou Morongo. “Quero que organize aquilo, porque não estou conseguindo. Quero que a produção dobre, triplique, só isso.” Foi o que aconteceu. No fim de 2014, dois anos e meio após a mudança, o negócio vendia R$ 24,5 milhões e dava lucro. Somente nos últimos 12 meses, período difícil para quem vende o que quer que seja no Brasil, o faturamento saltou 22%. “Qual foi o ganho do Morongo? A Mormaii está vendendo muito mais roupas de borracha. Assim, ele lucra mais com os royalties da marca”, diz Casagrande. “E não precisa se preocupar com a produção, tem mais tempo para os netos.”
Um negócio de royalties
Os royalties são o grande negócio atual da empresa. Em Garopaba, a única coisa que se fabrica são as roupas de borracha, sob a batuta de Casagrande – que combinou pagar somente o estoque de matéria-prima recebido na doação, e “conforme fosse possível”. Todos os outros 2,5 mil itens que levam o logotipo da Mormaii – de skates a guarda-sóis, de bolsas a capacetes – são produzidos por 46 fabricantes. Elas pagam, em média, 6,5% do valor das vendas para Morongo. Os artigos com os quais mais lucra são, pela ordem, chinelos (feitos por Grandene e Amazonas), relógios (Technos), óculos (JR-Adamver), bicicletas (Free Action) e roupas (Incobras). Seu maior ativo é a marca. E os contratos de licenciamento que ela atrai.
Nem sempre foi assim. Até o fim dos anos 80, a Mormaii fabricava tudo que vendia. Eram macacões e camisas de neoprene, acessórios de surfe, roupas e outros produtos. A transformação começou quando a Mesbla quebrou e um de seus principais fornecedores, desamparado, chamou Morongo para uma parceria. O empresário cederia a marca e eles fariam as roupas. Desde então, ele entendeu as vantagens da fórmula do licenciamento. Com o tempo, passou adiante a fabricação de todos os itens, um por um, até ficar só com aquilo que havia sido a pedra fundamental da Mormaii: as roupas de neoprene.
Na primeira vez em que viu o material (ou policloropreno, já que o nome neoprene é uma marca registrada da Dupont), Morongo era um adolescente hiponga e viajava de carona pela Patagônia argentina. Mergulhador, praticava o esporte na Península Valdés, famoso santuário de baleias, vestindo as grossas roupas impermeáveis da época, quando notou que a gola do traje era feita de um material mais fino e maleável.
Anos mais tarde, ele se formou em medicina em Porto Alegre e decidiu se mudar para Garopaba, onde não havia médicos. O “doutor Morongo”, como era conhecido à época, diz que se estabeleceu ali como uma forma de ajudar um povoado carente. “Não havia água encanada, nem luz elétrica”, afirma. “Não existiam privadas, as pessoas defecavam na rua, muita gente morria de lombriga e verminoses.” Para se divertir, o médico tinha o mar. Mas havia um problemão: o frio tornava quase impossível os banhos durante o inverno. Foi aí que ele se lembrou daquela gola que conheceu na Argentina. Decidiu pegar uma Brasília (capenga, observe-se) e dirigir até Valdés, para comprar umas amostras do produto. O resto é história. Morongo começou a costurar roupas com o material, as pessoas fizeram pedidos, ele achou que ajudaria mais a cidade como empresário do que como médico e criou a marca, que já é vendida em 20 países.
Hoje, quem conhece Garopaba acha difícil acreditar nesse cenário de miséria descrito por ele. O município tem um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH, que combina dados sobre expectativa de vida, educação e saúde) considerado alto, de 0,753, acima da média do país, de 0,744. As casas lembram subúrbios americanos, com jardins abertos, sem cercas e com acabamento de boa qualidade. Com menos de 20 mil habitantes, tem um clube de tênis moderno. No dia dos namorados, uma noite fria e chuvosa, não havia reservas disponíveis em nenhum dos vários bistrôs e restaurantes à beira-mar, com pratos a R$ 80 por pessoa e vinhos importados. “A Mormaii colocou Garopaba no mapa”, diz Fernando Ambrosio, secretário de Turismo do município. “Muitos grandes empresários moram aqui por causa da qualidade de vida, mas vão para São Paulo trabalhar durante a semana.”
Dividir para multiplicar
O turismo ligado ao surfe moldou o crescimento da cidade, sem grandes prédios e repleta de lojas e restaurantes identificados com esse estilo de vida. É seguro dizer que a Mormaii ajudou a forjar a face do município. Também não há risco em afirmar que Morongo é um desses empresários com faro aguçado para a inovação. Nos anos 70, época em que fazia as primeiras experiências com neoprene, essa indústria ainda engatinhava em outras partes do mundo. Na Califórnia, Jack O’Neill desenvolvia roupas parecidas para surfar nas águas geladas da região. Na França, Jacques Cousteau tentava adaptar o tecido para o mergulho. Na pequena e então miserável Garopaba, Morongo acompanhava ombro a ombro essa revolução. Ainda hoje, quase todas as inovações da marca são criadas internamente. Não raro, estão à frente da concorrência global.
Morongo sugere boa parte das novidades. A garagem de sua casa é cheia de criações do empresário, como uma prancha com superfície de cortiça (na foto da página 105), que dispensa parafina. Seu carro, um Suzuki Mormaii (outra licença), tem no porta-malas um opcional insólito: um esguicho para ajudar o surfista a limpar o pé na hora de se vestir. “Foi a minha exigência para a montadora”, diz. Mas talvez sua inovação mais radical esteja no campo da gestão, na forma como está tocando – ou deixando de tocar – o negócio.
Assim como abriu mão da fábrica, Morongo tem doado outras partes da empresa. O departamento de marketing, que produzia material publicitário para os produtos licenciados, foi desmembrado e resultou na criação da agência MXM, dada a dois funcionários antigos. A área que administra as franquias – a marca deve terminar o ano com 40 lojas – originou a A33, também entregue a um parceiro. O e-commerce foi cedido à funcionária que insistiu em sua criação. Até o setor de licenciamento, que gera os royalties sobre a marca, ele pensa em repartir no futuro. “Quem sabe dar uma parte para a prefeitura, ou alguma associação?”, afirma. “Acho uma boa ideia deixar algo para a comunidade.”
“Totalmente dispensável”
A lógica por trás dessas doações é simples – e segue à risca o que foi descrito com a fábrica de roupas de neopreme. Cada vez que cedeu um pedaço da empresa, sempre para pessoas em cuja capacidade de gestão Morongo confiava, a área melhorou. A estratégia fez com que mais produtos Mormaii fossem vendidos, gerando mais royalties para ele. A venda total de peças subiu de R$ 520 milhões em 2013 para R$ 575 milhões em 2014. Ela deve chegar a R$ 600 milhões neste ano. Morongo hoje é proprietário de três helicópteros, casas em praias paradisíacas, um barco de 45 pés (que, no momento, viaja pelo Taiti) e está construindo um novo, de 70 pés. Não que seja gastador. Quinze anos atrás, ele ainda morava em uma casinha de costaneira, aquela beirada dos troncos de árvore que normalmente vira descarte na areia da praia. A configuração do quarto mudava de acordo com a direção do vento que batia, e as goteiras o obrigavam a trocar a posição da cama com frequência. Gerentes da Mormaii andavam em carros bacanas, enquanto ele dirigia um Fiat Elba. Foram esses mesmos funcionários que, enfim, pediram para que ele saísse daquele quase barraco. “Eles passavam vergonha quando vinha um japonês visitar a empresa”, diz Morongo.
As extravagâncias materiais de hoje estão, basicamente, ligadas ao surfe, que, aos 66 anos, ele segue praticando em plena forma. Mas talvez a maior vantagem do “dividir para multiplicar” nem seja o dinheiro, e sim o tempo livre que o empresário passou a ter. “Agora, sou um bicão: dou palpites no marketing, no desenvolvimento de produtos”, afirma. “Mas sou totalmente dispensável. Fico dois meses fora surfando e ninguém sente falta.”
É claro que esse desprendimento é um assunto que também interessa aos herdeiros. Dos três filhos de Morongo, apenas uma trabalha na empresa. Formada em moda, Tainah Juanuk entrou para o grupo dois anos atrás, para reformular as peças femininas. Na época, 30% das vendas eram feitas para mulheres, o que era considerado pouco. Ela criou estampas mais descoladas para as roupas de borracha das surfistas, além de novos cortes para ressaltar as silhuetas. Hoje, o público responde por 40% do faturamento.
“Meu pai, com essa visão diferente, só tem feito a marca prosperar”, afirma Tainah. Ela diz que não se incomoda com as doações. Ao contrário: o desapego parece ser hereditário. “Esses dias, ele quis passar para mim e para o meu marido a participação que ainda tem na agência MXM”, diz a filha. “Não aceitamos. No fundo, é tudo nosso.” O marido, Sacha Juanuk, trabalha como gestor da MXM. Afirma ganhar menos do que os ex-funcionários que se tornaram donos. “Se a gente for entrar nessa de quem ganha mais, vamos inviabilizar a empresa”, diz Juanuk. O importante, ele afirma, é que a agência passou a dar lucro e viu o faturamento saltar em 40% após ser desmembrada da Mormaii. O mesmo se deu com a área de franquias, que tem planos agressivos de expansão nos próximos anos.
Ainda que faça sentido, a estratégia costuma deixar confuso quem tem uma visão tradicional sobre negócios. “Um dia eu perguntei ao Morongo ‘por que eu?’”, diz Casagrande. “Ele falou que eu era bom em lidar com as pessoas e que as empresas nada mais são do que pessoas.” Mas levou pelo menos dois anos para Casagrande entender a filosofia, o “dividir para multiplicar” (ou “doar para multiplicar”). “Agora, sou um grande defensor dessa ideia”, afirma.
Tudo isso pode sugerir que Morongo tem um jeito meio zen ou coisa do tipo, o que não é verdade. Ele é simpático, mas também tem a assertividade – quase uma agressividade – típica dos empresários, como verificou a turma do BTG (que não quis falar com a reportagem). Muitas vezes, responde a perguntas sobre números da empresa com um “sei lá, cara, eu não estou mais nessa, faz a conta e vê”. Apenas para, em seguida, sorrir e narrar uma história incrível sobre os primórdios do surfe no Havaí. “Se eu fosse só o ‘lado yin’, estaria até hoje vendendo tranqueira na praia. O ‘lado yang’ é importante”, diz. “A questão é achar o equilíbrio, o caminho do meio.”
Morongo também tem uma tese sobre a Mormaii. Para ele, o poder da marca – que hoje é o verdadeiro negócio da empresa – não está no logotipo ou no marketing. Sua força está na própria história da companhia, na relevância que tem para a comunidade, na forma como o dia a dia é tocado no escritório. Essa visão, baseada no impacto do negócio na vida das pessoas, tem funcionado – e feito a empresa prosperar. Sacha, o genro, concorda com a filosofia, mas prefere ser mais específico ao identificar o motor da Mormaii. “A marca, no nosso caso, é o próprio Morongo.”
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