PENDÊNCIAS RN-Como incentivar o combate à corrupção nos municípios, por Marcus Vinicius de Azevedo Braga


cidades-brasileiras

Do Jota
por Marcus Vinicius de Azevedo Braga

Este artigo foi o segundo colocado na edição 2016 do Prêmio JOTA INAC de Combate à Corrupção

Resumo: O presente artigo apresenta uma proposta de mitigação da corrupção na gestão municipal das políticas sociais por meio de um programa, baseado em i) incentivos a adesão; ii) na atuação indutora do Governo Federal; e iii) em um modelo de Accountability lastreado em uma visão estrutural da corrupção. A proposta se utiliza de quesitos pontuados a serem implementados nos municípios e busca não somente mitigar a corrupção com vistas a melhorar a efetividade das políticas sociais, mas também propõe deixar um legado de institucionalização para os municípios, contemplando a autonomia necessária a um sistema federalista.

Palavras-Chave: Política Social; Corrupção; Federalismo; Gestão Municipal; Autonomia.

Introdução

O presente artigo não é um texto científico tradicional, de análise de uma realidade ou de comprovação de uma hipótese, e sim uma proposição fundamentada em uma construção teórica, de um Programa de Prevenção da Corrupção na Gestão Municipal, voltado essencialmente para as Políticas Sociais e induzido a partir da União, considerando-se uma visão contingencial do fenômeno da corrupção e as suas soluções mitigadoras possíveis.

O objetivo geral do artigo, desse modo, é propor uma linha de ação para o governo federal que mitigue a corrupção na gestão municipal das políticas sociais, partindo da hipótese que essa corrupção tem a sua raiz também na falta de institucionalização, em especial no que tange a Accountability, como uma cultura de tornar os gestores mais responsáveis e transparentes, em uma atuação pautada por incentivos.

O artigo se divide em três partes, de forma que a primeira contextualiza o problema da corrupção na gestão municipal no desenho federativo brasileiro; a segunda parte apresenta uma visão contingencial da corrupção e seus remédios e a última se detém no “framework” proposto, analisando seus princípios, viabilidades e benefícios.

A questão da gestão municipal é antiga no imaginário nacional, variando em produções cinematográficas como o “Bem Amado” ao mais recente “Saneamento Básico[1]”, e se reveste de importância na discussão das políticas sociais, o que demanda soluções que podem ser propostas no âmbito da União, com seu papel de coordenação no desenho federalista, mas que necessita preservar a autonomia dos entes.

A discussão de prevenção da corrupção nas políticas sociais alcança grande parcela da população, espalhadas pelos mais de 5.000 municípios, abrangendo mais de 38,6 milhões[2] de crianças e jovens na Educação Básica pública, no Sistema Único de Saúde de proposta universal e cerca de 14 milhões de famílias beneficiárias do maior programa de Assistência Social, o Bolsa Família (dados do Governo Federal de 2015), somente para ilustrar a magnitude do universo de cidadãos envolvidos.

A corrupção é um gafanhoto que corrói políticas e direitos sociais, subtraindo recursos da parcela mais carente da população, gerando desigualdades sociais e regionais e perpetuando os principais problemas da nação, o que por si só já justifica o presente estudo e suas proposições, na busca de soluções viáveis e que tenham um grau razoável de efetividade, fugindo de fórmulas mágicas ou visões messiânicas no trato da corrupção, entendido como fenômeno humano que necessita ser coibido.

Não restam dúvidas que as últimas décadas trouxeram grande avanço na prevenção e no combate da corrupção no país, com notáveis e recentes ganhos nos marcos legais sobre o assunto e na mobilização popular, em especial sobre a importância de se reduzir a impunidade. Longe de alimentar rivalidades entre visões sobre a corrupção, o presente trabalho pretende contribuir com a discussão dos aspectos preventivos, complementares e indissociáveis das ações mais diretivas e das questões penais, trazendo para o conjunto de soluções propostas para o problema discussões mais estruturais e menos onerosas.

A contextualização do problema: a gestão local das políticas sociais

Federalismo, transferências e a política social

O Estado brasileiro se organiza em uma federação. É fato, diferente de outros estados, como o exemplo mais emblemático que é o estadunidense, não foi uma federação que se formou da agregação de estados e sim, um processo a partir do centro e que se manteve, com alternâncias de maior ênfase na centralização e na descentralização, como arranjo que perpassa a República, contemplando a nossa grande extensão territorial e diversidade regional, como forma viável de organização do Estado.

No Federalismo, segundo Bonavides (2011), existe uma associação de estados com vistas a uma integração harmônica de seus destinos, observada a autonomia dos entes e a sua possibilidade de participação na vontade política da federação, existindo uma tendência de mitigação dessa autonomia, em função principalmente das necessidades de redução da desigualdade regional e pela própria concentração de poder nos governos centrais.

No caso brasileiro, a Constituição Federal de 1988 prezou em seu texto por um modelo de Federalismo de cooperação (SILVA, 2010), ainda que na prática exista uma grande compartimentalização, e no que tange as políticas da área social, a Carta Magna transferiu a execução destas para a esfera subnacional[3], em um desenho desigual de parceria, na qual a União concentra recursos, a autoridade legislativa e a capacidade de coordenação (ARRETCHE, 2012), com restrições administrativas a autonomia dos entes municipais, pela forte regulação da implementação dessas políticas.

De modo a trazer o equilíbrio a federação, por meio da redução das desigualdades regionais, e na busca de sucesso nas grandes políticas nacionais, tem-se um desenho das políticas sociais predominantemente implementadas pelos municípios (não será considerado a atuação dos Estados por fugir ao escopo do presente artigo), com forte direcionamento do poder central da federação, dentro de uma visão de que a implementação próxima aos beneficiários favorece o controle social e a inovação, e ainda, de acordo com os estudos de Arretche (2012), a regulação da União que diminui a autonomia dos entes possibilita a estes superar seus problemas de coordenação, trazendo benefícios a efetividade das políticas.

Utilizando-se de normas gerais e específicas, atua a União nessas políticas, suprindo-as de transferências intergovernamentais que buscam, no entender de Prado (2006), mitigar as brechas verticais, ou seja, de equidade relativa de recursos financeiros para os entes, e a brecha horizontal, traduzida pelos desníveis regionais, buscando nessa ação atingir aos objetivos nacionais e promover a redução das desigualdades regionais, objetivos de uma associação federativa.

As discussões de Arretche (2013) e Souza (2016) exploram essa tensão imanente a federação, expressa na diversidade regional de recursos e capacidades dos entes e a necessidade de se preservar a autonomia local, e tem-se nas políticas sociais essa dicotomia, pela pressão de padronização e as peculiaridades locais e a necessidade premente de inovação e adaptação, em especial em um país com as características do Brasil. Uma dicotomia clara, dado que:

O grau em que os serviços públicos são submetidos ao formato de programas nacionais, tal como descrito, é um dos principais fatores que determinam a autonomia dos governos subnacionais. Existe um dilema muito claro nesse caso. Quanto maior a autonomia, menor pode ser a uniformidade dos padrões de serviços oferecidos pelo setor público e maior a possibilidade de iniquidade. A obtenção de um tratamento mais equitativo entre os cidadãos, através da exigência de padrões mínimos uniformes em todo o país, evidentemente, reduz a autonomia de cada governo para escolher suas prioridades orçamentárias (PRADO, 2013, p. 18).

Desse modo, municípios mais abastados, que dependem menos das transferências federais, conforme Magalhães (2007), terminam por ter mais autonomia na elaboração de suas políticas, mormente as sociais, interagindo mais com sua base eleitoral local, enquanto os municípios mais pobres dependem do auxílio federal e aderem mais facilmente a padronização dos grandes programas nacionais, com perdas em interação popular e nas possibilidades de diversificação, e o consequente amadurecimento na implementação de políticas.

Nesse contexto, apesar da influência da União nos aspectos gerais da política, chega-se a centralidade dos municípios no processo de gestão das políticas sociais, políticas essas que tem papel de extrema relevância para a redução da desigualdade social, para garantir legados geracionais e ainda, na manutenção da coesão social e no incremento da produtividade, sendo em uma visão particular de alguns autores, um habilitador do desenvolvimento pelas liberdades que proporciona (SEN, 2000).

O próximo tópico vai detalhar um pouco mais as fragilidades do processo de implementação dessas políticas sociais no âmbito municipal, buscando apresentar hipóteses sobre os principais fatores que conduzem ao fracasso desses processos de implementação.

As fragilidades da gestão municipal: o nó górdio das políticas sociais

A própria história do país, de seu processo de colonização, ajuda a explicar o contexto atual em que vivemos no que tange aos municípios, uma realidade diversa, com grandes centros e uma massa de pequenos e médios municípios, e que independentemente do tamanho e das capacidades, tem a mesma missão no texto constitucional, em especial no tocante as políticas sociais.

Segundo Schwartzman (1988), o centralismo sempre foi uma característica do Estado brasileiro, com um centro de poder que não dependia das bases locais, desde os tempos coloniais, bases essas fundamentadas em poderes privados, da propriedade da terra e dos laços familiares, sem uma relação de outorga e autonomia de fato em relação ao poder central, o que se reflete na nossa desconfiança da capacidade dos entes municipais de subsistir.

Faoro (2001) aponta que o município surge na administração colonial como braço administrativo da centralização, tendo a figura do chefe local, manifestada posteriormente pelo coronelismo[4], como poder econômico com efeitos políticos, fazendo este o elo do poder local e outras instâncias do poder colonial.

Todo esse processo que vem da colônia passa pelo império e chega na república federativa, com uma orientação do centro para a periferia e formas de relação política típicas na esfera local, contribuiu para a debilidade das estruturas políticas e administrativas dos municípios, mormente os menores, o que se manifesta, com as devidas ressalvas de pesquisas que adotam índices matemáticos para assuntos dessa natureza, as conclusões de recente estudo de Canzian e Soares (2016), que indica que três entre cada quatro municípios do Brasil não são eficientes no uso dos recursos disponíveis para as áreas básicas de saúde e educação.

Adentrando-se na questão das capacidades gerencias nas políticas descentralizadas pelos municípios, em especial em relação aos desvios e irregularidades que podem ser enquadrados como corrupção, tem-se estudos que se baseiam nos dados obtidos nos mais de dez anos do Programa de fiscalização a partir do Sorteio de Municípios[5], como Braga (2013), que aponta que os achados de auditoria predominam em situações relacionadas com as deficiências da gestão local, corroborado por Batista (2015), que revela que quanto maior as fragilidades nas estruturas burocráticas dos municípios, maior a quantidade de falhas na gestão.

Destacam-se também estudos nessa mesma linha de Campos & Castelar (2014) que constata que as irregularidades nos municípios fiscalizados aumentam com a debilidade do controle social, entre outros fatores, e ainda, a discussão posta por Mello, Martins & Martins (2015) e Ribeiro (2016), que detectam grande fragilidade na transparência dos municípios, a despeito da legislação recente que trouxe avanços nesse sentido, como a Lei de Acesso a Informação e a Lei de Responsabilidade Fiscal.

Ainda que escasseiem estudos, os apresentados, que são recentes, convergem para fragilidades locais como uma causa relevante das irregularidades, e quando se fala de fragilidades, não são apenas operacionais, mas também dos mecanismos de Accountability[6], pois apesar da proximidade da população na gestão dos recursos, tem-se ainda um desenho de baixo nível de capacitação técnica, falta de transparência, ausência de controles administrativos e uma cultura de fraudes e desvios de finalidade, como mostram narrativas não quantitativas de Trevisan (2003) e Vaz (2012), na descrição de escândalos de corrupção na esfera municipal.

Tem-se, então, que as irregularidades não surgem apenas de questões da vil personalidade de alcaides municipais ou de uma visão superficial do patrimonialismo como um determinismo de nossa sociedade, mas também do reflexo de uma baixa institucionalização municipal, inclusive nos aspectos de Accountability em suas diversas dimensões.

Faz-se necessário resgatar a importância de uma visão preventiva, de fortalecimento das estruturas democráticas de controle pela transparência, controle social, órgãos de controle autônomos e uma cultura de integridade, complementando a ideia hegemônica de que a corrupção é apenas um caso de polícia, merecendo uma atenção especial os aspectos defensivos, que terminam por serem esquecidos (BRAGA; SANTOS, 2015).

Entretanto, a análise mais amiúde do processo de implementação das políticas nos municípios demonstra que existe uma tensão entre a diversidade, um aspecto da realidade local que se opõe a padronização, estampada nas normas, em uma dicotomia que necessita ser mediada, para que não se caia na armadilha do centralismo legal.

Discussões de Lipsky (1980), e posteriormente de Meyers & Vorsanger (2010), baseados no primeiro, apontam a relevância nesse processo dos chamados burocratas de nível de rua, profissionais que atuam na ponta da implementação das políticas, com autonomia que os faz adaptar os objetivos das políticas as suas capacidades, interpretando regras e ajustando realidades com certo grau de inovação e livres de uma supervisão mais amiúde, fortalecendo inclusive a participação e a legitimidade na gestão local.

Desse modo, além de uma fragilidade patente na capacidade dos municípios, em especial os de menor porte, essa não se resolve apenas com o aumento de normas e de seu detalhamento, com uma cobrança “Top down”, pois essa postura diretiva gera burocratismos que emperram e atravancam as políticas sociais, desequilibrando a equação federativa, que deve ser orientada para a redução das diferenças regionais e isso implica no fomento ao amadurecimento político e administrativo dos municípios.

Encerrando essa primeira parte, tem-se que o problema das irregularidades da gestão municipal necessita de uma visão mais estrutural, da carência de uma Accountability institucionalizada e amadurecida, em um leque de soluções que respeite a autonomia e que não tutele esses entes, para que não se perca na inovação e as necessidades de adaptação da política as peculiaridades locais, tendo os objetivos da política como um norte na construção do processo de gestão, restando o desvio de finalidade, que acarreta prejuízos aos serviços públicos oferecidos aos beneficiários, como o pecado central na gestão dessas políticas.

A contextualização das soluções: uma visão estrutural da corrupção

Corrupção: um problema complexo e estrutural

A discussão no tópico anterior sustentou a tese de que a corrupção municipal tem também uma raiz estrutural, de fragilidades locais, por um processo histórico e de desenho e que essa corrupção tem consequências mais graves quando afeta os aspectos finalísticos das políticas, a entrega de serviços adequados à população, para além da conformidade normativa.

Nessa altura, o artigo revisita a corrupção, como fenômeno a ser combatido na gestão municipal, agregando a ela mais do que um sentido moral, de caráter dos seus executores e sim algo que tem raízes mais complexas, nas fragilidades das estruturas de Accountability, seja no sentido formal de estruturas de controle, seja no campo democrático, da participação e da transparência, o que resulta em uma nova interpretação das soluções da própria corrupção, que deixam de ser apenas focadas nos agentes, detendo-se também, de forma complementar, aos sistemas administrativos e políticos[7].

Difícil um consenso teórico sobre corrupção, o que é esperado em uma discussão com tantas áreas de conhecimento envolvidos. Pasquino (2010) indica que o fenômeno da corrupção é aquele no qual o funcionário público é levado a agir de modo diverso dos padrões normativos do sistema, favorecendo interesses particulares em troca de recompensas, em uma visão de conformidade que não é o suficiente para dar conta de todas as questões envolvidas.

Rose-Ackerman (2002) vincula a corrupção ao abuso de poder de uma autoridade pública na distribuição de um custo ou benefício ao setor privado, e Noonan Jr. (1989), no seu texto clássico sobre o suborno, indica este como incentivos que influenciam indevidamente o desempenho da função pública a ser exercida gratuitamente, em duas abordagens que relacionam a corrupção ao abuso de poder, desviando a finalidade e quebrando relações estabelecidas.

Lambsdorff (2007) traz a discussão de que a corrupção é sempre um atentado ao interesse público, Guimarães (2011) defende a corrupção como privilégios ilegítimos em um regime republicano e Klitgaard (1994), em obra basilar sobre o tema, aponta que existe corrupção quando um indivíduo coloca ilicitamente os interesses pessoais acima de pessoas e ideias que está comprometido a servir, um compêndio de visões que dá centralidade aos interesses da coletividade.

Nesse painel de conceitos, para fins das proposições do presente artigo, é possível se chegar a um consenso de que a corrupção é um abuso de poder, que quebra as relações do poder público e as suas partes, alterando finalidades para interesses pessoais e prejudicando interesses coletivos, em uma visão que apesar de contemplar aspectos legalistas e da conduta moral dos agentes, prioriza a corrupção pelo que ela causa de dano à coletividade.

Cabe esclarecer que quando fala-se de dano ao interesse da coletividade, as tipologias habituais de corrupção que surgem nos periódicos, como favorecimento, superfaturamento e obras fantasmas, para além de serem questões éticas e ilícitas, desviam recursos que deveriam atender ao interesse público imbricado as políticas sociais para atender interesses privados, pela inobservância da competição, pelo preço excessivo que reduz a eficiência e pela obra inexistente que impede a execução da política de forma integral.

Faz-se necessário, nessa visão, estruturas que impeçam esses abusos de poder e que preservem o atingimento dos objetivos das políticas, beneficiando os que delas necessitam, e que a corrupção tenha a sua grandeza medida pelos seus prejuízos as políticas públicas envolvidas, como ideia central que resgatamos do tópico anterior.

O próximo tópico adentrará de forma breve como essa visão mais complexa da corrupção, quando transportada para o mundo das soluções, demanda ações em diversas frentes e de como essa atuação ampliada, multidimensional, se faz presente na prática do Brasil e de diversos países, com arranjos diferentes, adaptados as peculiaridades locais e políticas.

Fenômeno complexo, de causas e remédios da mesma natureza.

As movimentações políticas desde 2014, por conta da chamada Operação Lava-Jato, agregadas a um sem número de pautas que surgiram na década anterior por conta da criação da Controladoria-Geral da União e do robustecimento de outros órgãos de Accountability[8], trouxeram a discussão da corrupção, causas e soluções, definitivamente para a pauta nacional, surgindo desse contexto propostas diversas de soluções, sendo a mais emblemática as chamadas dez medidas propostas pelo Ministério Público Federal, o que motivou discussões na imprensa e nas casas legislativas.

Essa visão complexa da corrupção e das soluções associadas teve espaço também na consulta pública do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre um referencial de combate à fraude e a corrupção (BRASIL, 2016a) e no lançamento pelo governo federal no final de 2015 do portal #Todos juntos contra a corrupção, criando no país uma agenda de ação entre os órgãos envolvidos, contando essas iniciativas com ações de responsabilização de agentes, mas também com destaque na detecção de irregularidades e na prevenção, esta última materializada em iniciativas de transparência e controle social, repetindo indicações que já haviam sido ditas na avaliação da integridade do governo brasileiro (OCDE, 2011), que ressaltou a relevância de se priorizar a transparência, a gestão de riscos e a integridade.

O fato é que existe uma tensão da visão do fenômeno da corrupção e dos remédios necessários, sendo por vezes ignorados aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais que determinam a corrupção (OLIVEIRA JÚNIOR; MENDES, 2016), com uma nítida valorização recente dos aspectos punitivos, em debates que surgem não somente nas páginas da imprensa, mas também em decisões das cortes de contas, como no item 9.6 do Acórdão Plenário do TCU nº 2.339/2016 (BRASIL, 2016), que assinala textualmente que a desorganização administrativa, a deficiência nos controles ou a inadequação do planejamento são causas secundárias das irregularidades da gestão, sendo a má gestão ou o desvio de recursos as possíveis causas primárias, em dicotomias que necessitam de uma transcendência contingencial, que abarque e coordene essas visões.

No plano internacional, essa diversidade de visões dos remédios para a corrupção se materializa também nos discursos e estruturas e tem-se em países como a Suécia uma valorização da transparência, de um robusto código de conduta moral e de atividades investigativas (WALLIN, 2014), e nos Estados Unidos pode-se falar de estruturas do chamado controle interno, que aliam auditorias, aspectos disciplinares e mecanismos preventivos (SPINELLI, 2009), apresentando ambos os países formas amplas de se lidar com a corrupção.

Apesar da escassez de literatura, no que tange a Europa, tem-se que os órgãos de controle privilegiam essas várias dimensões, pois conforme apontam European Commission (2012), Lochagin (2016) e Pollitt et Alli (2008), os órgãos de controle interno e externo mesclam ações sobre aspectos finalísticos, de conformidade, financeiros-contábeis e de transparência, fugindo de visões monolíticas nesse tema.

Depoimentos de titulares de órgãos de controle externo (JANSSEN, 2015) de vários países indicam a transparência, o controle social, a autonomia/especialização dos órgãos de auditoria governamental, além de um arcabouço legal adequado e uma política de integridade, como partes da solução para a questão da corrupção, restando nítido na presente análise que essa construção de soluções para a corrupção passa pelas características políticas e sociais de cada país, demonstrando a necessidade de combinação com vistas a customização.

Este tópico buscou mostrar que o complexo fenômeno da corrupção, nas suas diversas interpretações, se reflete em soluções de dimensões diversas, de aspectos operacionais, financeiros, de legalidade, jurídicas, éticas e do aspecto político-participativo, necessitando de instituições, no sentido de regras e atores, que deem conta dessa atuação e que necessitam ser estimuladas, inclusive no âmbito local no qual se executam as políticas, como será discutido no próximo ponto.

Uma rede de Accountability: o paradigma preventivo a ser estimulado.

O presente tópico, o último antes de se apresentar o Programa proposto para a prevenção da corrupção municipal, visa detalhar que características teriam as estruturas que se pretende induzir, no âmbito de cada ente municipal, formando uma rede de atores e normativos.

Detalhando-se as dimensões dessa rede proposta, tem-se pelas ideias do argentino Guillermo O’Donnell, a dimensão horizontal (1998, p. 40), que se caracteriza pela “(…) existência de agências estatais que tem o direito e o poder legal e que estão, de fato, dispostas e capacitadas para realizar ações que vão desde a supervisão de rotina a sanções legais (…)” e uma outra dimensão, vertical, entendida como “(…) ações realizadas individualmente, ou por algum tipo de ação organizada e/ou coletiva, com referência aqueles que ocupam posições em instituições do Estado, eleitos ou não (1998, p. 28)”.

Tem-se uma visão de dimensões complementares e que se fortalecem pela sua sinergia, equilibrando a ação burocrática de agências e a interação popular, esta última pelos seus mecanismos eleitorais e pelo chamado controle social, defendendo o autor a importância de uma atuação em rede dessas agências, demonstrando ele também a preocupação, no caso da América Latina, e seus novos regimes democráticos, com a fragilidade da Accountability horizontal nesse caso (O’DONNELL, 2003), com uma atuação apenas reativa e intermitente, focadas não no equilíbrio entre os poderes e sim no combate ao fenômeno da corrupção pura e simplesmente.

Dentro de uma dimensão intraorganizacional, tem-se que Koppell (2010), por sua vez foca em sua análise as organizações por ele chamadas de “accountable”, ou seja, responsáveis, caracterizando-se estas pela sua transparência, pela possibilidade de serem punidas por baixo desempenho e por estarem sujeitas a avaliação, apresentando a Accountability como uma fonte de credibilidade e de sustentação do poder, exaltando a questão da legitimidade das organizações em um contexto democrático.

Nessa mesma dimensão, pode-se falar também das questões de Compliance[9], ou seja, o incentivo a adesão aos normativos e o fortalecimento de códigos de conduta, entre outras práticas, e ainda, do fortalecimento dos aspectos de garantia do atingimento de objetivos da organização, pela construção de controles baseados em riscos, tendo como principal modelo, internacionalmente reconhecido, o Committee of Sponsoring Organizations (COSO)[10] e que permite as organizações gerir seus riscos e controles.

Desse modo, o Programa a ser proposto se pauta em três dimensões: uma horizontal, uma vertical e uma intraorganizacional, como um arranjo para essa rede de atores e regras que possibilitem a prevenção a corrupção, organizando-se de acordo com as peculiaridades locais, albergando as múltiplas visões sobre as causas e remédios para a corrupção, sem perder de vista a relevância da garantia do atingimento dos objetivos da política social naquele município.

Uma rede interdependente, que se relacionará com outras redes nas esferas estaduais e federal, e que necessita ser coordenada e atuar de forma complementar (POWER; TAYLOR, 2011), buscando a agregação de valor e a redução dos custos de transação, entendidos esses por Fiani (2013) como o custo de organização das atividades econômicas. Ou seja, a rede necessita de interação e sinergia, mas sem se tornar um fim em si mesmo.

A rede fortalecida auxiliará, com essa interação e energia, outras redes que nesse desenho federalista, se comunicam com o município, destacando-se os órgãos de controle interno e externo da União e a atuação do Ministério Público. Órgãos que tem possibilidades de otimização de seus trabalhos pelo fortalecimento das redes locais, seja na produção de informação útil, seja pela capacidade de dar conta das recomendações de caráter gerencial.

Se a meta é a indução da criação dessa rede preventiva, no âmbito municipal, e o seu aperfeiçoamento, com vistas a agregar valor à gestão pela mitigação da corrupção, a atuação da União, como ente indutor, deve se pautar por um arranjo institucional que combine incentivos e controles (comando, o chamado fiat), conforme discutido por Fiani (2011,2014), no estudo da teoria dos custos de transação, por ser essa a combinação mais adequada (WILLIAMSON, 1991) para o contexto, dada a autonomia dos municípios na federação, as demandas por inovação e adaptação local, a necessidade de consenso entre as partes e a estabilidade do processo de descentralização das políticas sociais.

Chega-se então a proposta de Programa de Prevenção a Corrupção na Gestão Municipal (PPCGM), lastreado em uma profunda discussão sobre os pilares da corrupção e do federalismo, considerando-se a sua aplicação a realidade brasileira, dialogando também com experiências internacionais que enxergam a corrupção em uma visão mais ampla, sem desprezar a importância da autonomia típica do federalismo, bem como a necessidade de, nessas parcerias, a União ter mecanismos não somente se de padronização, mas de garantia de eficácia rumo a eficiência na gestão local.

Uma proposta de Programa de indução da Accountability municipal visando reduzir a corrupção

O Programa proposto em si

A proposta central do artigo é a implementação de um programa pelo Governo Federal, o Programa de Prevenção a Corrupção na Gestão Municipal (PPCGM), que vise induzir a melhoria da rede de Accountability dos municípios, mormente os menores, visando prevenir a corrupção e contribuindo assim com a efetividade das políticas sociais descentralizadas, respeitando a autonomia e a diversidade regional no âmbito da federação. 

Esse programa seria de adesão voluntária pelos municípios e se pautaria no mapa de pontuação a seguir:

QUADRO I- Mapa de pontuação por quesitos

Dimensão Quesito Pontuação

 

Estágio I

Pontuação

 

Estágio II

 

 

 

 

Intraorganizacional

Controles Internos 10 30
Código de conduta 10 30
Programa de Gestão de Riscos 20 60
Capacitação para a integridade 10 30
Restrição à cargo comissionado 10 30
Horizontal Auditoria Governamental 30 90
Ouvidoria 30 90
Vertical Transparência passiva 20 60
Conselhos 20 60
Transparência ativa 20 60
Diversos Prestação de contas 40 40
Total 220 580
Total geral 800

A pontuação visa trazer um certo equilíbrio entre as três dimensões e ainda, busca valorizar mais ações estruturais, que tenham a maior capacidade de deixar um legado para a gestão municipal. A prestação de contas como mecanismo formal e pontual é valorizada, como forma de incentivo a adesão dos municípios a esse regramento, que tem valor estratégico por permitir chegar a esfera central informações sobre a implementação das políticas, merecendo ser objeto de incentivo. 

Assim, os municípios que cumprirem os requisitos estruturais no ano anterior, seriam certificados no ano corrente com a pontuação indicada. Considerando-se, em um modelo importado do COSO (IIA-BRASIL, 2013), que o estágio I é a prática existente e o estágio II é a demonstração do efetivo funcionamento.

No que se relaciona com os quesitos, eles são descritos a seguir:

QUADRO II-Descrição dos quesitos

Quesito Descrição
Controles Internos Instituição de decreto municipal que formaliza a adoção de princípios de controle interno como a segregação de funções, limites de alçada, designação formal com atribuições de responsabilidades e manualização de processos de fiscalização de contratos e de liquidação de despesas, publicado na internet.
Código de conduta Instituição de decreto municipal que defina código de conduta para os funcionários do município, com a previsão da restrição de nepotismo, conflito de interesses, política de presentes, brindes e viagens. 

 

 

Programa de Gestão de Riscos Instituição de decreto municipal com a implementação de programa de gestão de riscos, incluindo mapeamento dos principais processos, avaliação da maturidade dos riscos e capacitação dos atores envolvidos.
Capacitação para a integridade Estabelecer programa de capacitação dos servidores municipais sobre assuntos afetos a Accountability, em especial: prevenção da corrupção, gestão de riscos, controles internos, Compliance, ética, controle social, transparência e auditoria governamental
Restrição à cargo comissionado Instituição de decreto municipal que impeça a nomeação em cargo comissionado de cidadão punido na esfera penal em segunda instância ou punido disciplinarmente ou responsabilizado pelo TCU/TCE nos últimos 5 anos.
Auditoria Governamental Instituição de órgão de auditoria Municipal, a similitude de uma controladoria, definido em Lei, com regramento próprio, com servidores concursados e programação anual de auditoria e resultados das ações publicados na Web
Ouvidoria Implementação de estrutura de ouvidoria, que processe as demandas e dê retorno ao cidadão das providências em relação as estas, servindo de canal efetivo de mediação das questões apresentadas.
Transparência passiva Implementação dos mecanismos formais de transparência passiva previstos na Lei de Acesso a Informação (Lei nº 12.527/2011)
Conselhos Que os conselhos de controle social relativos a gestão de recursos federais, em especial aqueles do Fundeb, Alimentação Escolar, Bolsa Família e Saúde, estejam constituídos e operantes, observadas as regras de composição e de escolha dos membros previstas na normatização.
Transparência ativa Implementação dos mecanismos formais de transparência Ativa previstos na Lei de Acesso a Informação (Lei nº 12.527/2011) e na Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2001), prevendo necessariamente a publicação na internet de receitas, despesas no nível do beneficiário final, relação de servidores, salário, licitações, relação de servidores e empresas punidas, bem como relatórios de execução de obras com fotografias.
Prestação de contas Prestações de contas dos recursos federais transferidos encaminhada no prazo ao concedente, nos termos dos normativos vigentes, em especial no que tange à Convênios via  SIAFI/Subsistema Transferências (Cadastro de Registro de Adimplência), SICONV (Cadastro de Registro de Adimplência) e as chamadas transferências fundo-a- fundo.

           Tendo como base o exercício anterior da certificação, serão computados os pontos e o município recebe formalmente um certificado digital que o enquadra em um dos níveis a seguir:

QUADRO III-Níveis de certificação

Faixa de pontuação Nível de certificação
600-800 Pontos A
480-600 Pontos B
180-480 Pontos C
0-180 Pontos D

 

Desse modo, o programa, que poderia ser atribuído a um órgão federal, como o Ministério da Transparência, Fiscalização e Controladoria-Geral da União (antiga CGU) ou outra instância do Poder Executivo Federal, em harmonia e integração com os ministérios concedentes e outros órgãos de controle, permitiria nessa interação a realimentação dos controles e a sua efetividade (BRAGA; MACHADO, 2015), como uma estratégia permanente de atuação em relação a corrupção nas políticas sociais descentralizadas.

Cabe registrar que não se trata de um ranking e sim de uma certificação, que busca identificar o nível de maturidade visando a melhoria, por conta de incentivos, pela questão reputacional, a similitude da Escala Brasil Transparente[11], de forma que a divulgação da certificação em âmbito nacional chegue ao conhecimento da população, trazendo ao prefeito e ao seu partido benefícios ou prejuízos políticos, típicos de um sistema democrático. 

Mas, além do incentivo pela via reputacional, a similitude da chamada Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013), é possível também se estabelecer incentivos mais concretos[12], recompensas pela adesão as normas, bem como a redução de sanções aplicadas, de forma que a título exemplificativo podemos citar algumas vantagens que poderiam ser estendidas aos municípios melhores qualificados, como: prazos de prestação de contas mais dilatados, prioridade na liberação de recursos orçamentários, tratamento diferenciado no contingenciamento, menor risco de ser auditado pelos mapeamentos dos órgãos de controle, bonificação de recursos financeiros, prioridades em linhas de financiamento, critério de desempate para a participação de programas, redução ou eliminação de contrapartidas, e modulação de juros de empréstimos, entre outras.

Certamente, poderia se pensar no futuro em mudanças legislativas que adaptassem mecanismos de punição de Tribunais de Contas a mitigações relacionadas a certificação do PPCGM, pois o segredo do incentivo, de um mecanismo de adesão, de robustecimento “Bottom up”, é a relevância dos prêmios oferecidos e que justifiquem o esforço do gestor, temporário, em benefício da institucionalização mais permanente da Accountability no município. 

Por óbvio, esses mecanismos somente se aplicariam a municípios menores/médios, aqueles com menos de 500.000 habitantes, o que já perfaz 70,4 % da população do país[13], dado que municípios maiores não trariam para o sistema de descentralização de políticas sociais um custo benefício pela adesão a esse tipo de programa, o que distorceria os incentivos.

Poderia se pensar também algo similar a uma “Golden Share”, com a previsão de uma punição expressiva pela redução de pontos, extensiva aos dois exercícios seguintes, caso uma ação pontual de órgão de controle interno ou externo (ou do Ministério Público) detecte graves irregularidades na gestão municipal certificada.

Trata-se de uma proposta de estímulo ao engajamento das prefeituras no programa, um jogo de ganha-ganha, em que o prefeito que investe no controle é recompensado. Com a percepção dos benefícios de diversas naturezas, a adesão cresceria e também a cultura de Accountability, o que mitigaria o risco de corrupção e melhoraria a efetividade das políticas sociais, sem prescindir de ações mais objetivas de órgãos de controle, além da capacitação do controle social e da promoção centralizada da transparência, que tem sido boas práticas no âmbito do governo federal nos últimos anos, mas que necessitam serem complementadas de uma visão mais emancipatória em relação aos municípios, pela inclusão de lógicas de incentivos.

Princípios, benefícios e viabilidade

Os princípios que regem o PPCGM são a visão contingencial da corrupção e a sua solução associada a uma rede de Accountability, com dimensões intraorganizacional, vertical e horizontal, como paradigma a ser estimulado, e que tem como benefícios uma herança, um legado que perpassa os mandatos dos prefeitos e propicia o amadurecimento da gestão municipal, categorizando a corrupção pelos prejuízos causados a efetividade das políticas.

Por trabalhar com certificação, e não com ranking, estimula a competição com vistas ao aperfeiçoamento, atuando de forma menos agressiva nessa competitividade. Pelo uso de incentivos, respeita mais a autonomia do ente municipal do que uma estrutura comando e controle, e demanda menos monitoramentos.

Utiliza-se o programa de quesitos facilmente auditáveis e combinados ao uso de incentivos, tem-se assim a redução dos custos de transação, fazendo do controle um meio e não um fim, focando na implementação das políticas sociais, e nos aspectos estruturais que reduzam a corrupção, sem romper a doutrina das finanças públicas de estimular a gestão próximo as populações beneficiárias, sem perder na padronização que for necessária.

Por fim, traz uma visão ampla da corrupção, mais estrutural e não com foco exclusivo na responsabilização de agentes, que tem suas instâncias próprias, equilibrando essa visão predominante, mais punitiva, com aspectos mais preventivos, e ainda, propiciando a melhoria da gestão municipal, por meio de diversas externalidades positivas.

O receituário modelo que é incentivado no município está harmonizado com as discussões e práticas modernas no âmbito da prevenção a corrupção, em um contexto democrático, e no que tange a viabilidade de implementação do PPCGM, o Programa não enfrenta óbices legais e se mostra adequado para mitigar o problema da corrupção municipal, com base em experiências locais e de outros países que utilizam, de forma separada, elementos desse modelo.

Plenamente exequível, não demanda grandes somas de recursos e esforço administrativo considerável, por ter a maioria de seus elementos de verificação remota, com a possibilidade de previsão de canais de reclamação e instâncias de recurso das decisões de enquadramento, que mediariam os conflitos naturais que vierem a surgir. O fato de ser complementar a outras ações mitiga os riscos típicos de uma ação de verificação apenas remota, pela possibilidade de integração e comunicação com estas ações de caráter presencial. 

Em relação a outros mecanismos de atuação coordenativa do governo federal nos municípios, como a prestação de contas ao concedente e o uso da auditoria governamental sobre os recursos repassados, práticas importantíssimas, o PPCGM tem como vantagens o potencial de reduzir ações mais presenciais e diretivas, de forma menos onerosa e sem desconsiderar o desenho federalista brasileiro, de desigualdades regionais, exigindo padrões com certo grau de razoabilidade associado a efetividade, funcionando de forma complementar e coordenada com essas outras práticas. 

Considerações finais

A proposição de soluções para o fenômeno da corrupção é diretamente vinculada a percepção do problema, ao conceito que se tem desta e as viabilidades de solução. Uma visão mais afinada com ideias rent seeking[14] vê a corrupção como sinônimo da atuação do Estado, que deve ser diminuído. Uma abordagem mais moralista vê a punição do agente como solução, fortalecendo ações de investigação. A valorização do patrimonialismo traz a centralidade questões culturais no trato da corrupção. São visões que se relacionam a contextos políticos e a vieses de grupos e momentos históricos, e que não podem ser desconsideradas. 

No presente artigo, de forma contingencial, buscou-se trazer à baila questões estruturais da corrupção, na discussão da Accountability, sem desconsiderar outras abordagens, que podem ser aglutinadas, mas buscando marcar a posição de apresentar saídas que considerem a prevenção como fundamental e associada a esta, de forma coerente, uma visão que valorize os sistemas de controle, seus atores e regras, em suas diversas matizes. Precisamos de medidas para mitigar a corrupção que pensem o futuro. 

Apontar soluções é fácil…Difícil são implementá-las, adaptá-las aos fatores desconhecidos e aos interesses que insistem em reinventar suas maneiras de driblar as instâncias técnicas. Mas esse é o desafio que traz o amadurecimento, para que o país, rico em potencialidades naturais e humanas, possa, pela via da política e da gestão, ascender a outros patamares no contexto internacional, pela qualidade de seus arranjos institucionais e que favoreçam o desenvolvimento. 

Nesse sentido, o fortalecimento do arranjo municipal, pelo amadurecimento de práticas e instituições, favorece também outras redes, como o trabalho de outros órgãos envolvidos com a boa gestão dos recursos no âmbito do município, como o Ministério Público e os órgãos de controle interno e externo previstos na Constituição Federal de 1988, bem como a própria ação dos cidadãos no exercício da democracia participativa, fortalecendo a dimensão preventiva na sua base. 

No que tange ao papel da população nessa questão da prevenção da corrupção, fazendo uso da sabedoria de Manuel Castells, no estudo das manifestações populares pelo mundo, tem-se que:

(…) a governança democrática eficaz é um pré-requisito para a concretização de todos os projetos e demandas. Se os cidadãos não tiverem os meios e formas de se autogovernanr, as políticas mais bem planejadas, os programas mais bem intencionados, as estratégias mais sofisticadas podem ser ineficazes ou corromper-se ao serem implementadas. O instrumento determina a função. Só uma comunidade política democrática pode assegurar uma economia que funcione como se as pessoas importassem, assim como uma sociedade a serviço dos valores humanos e da busca da felicidade pessoal (CASTELLS, 2013, p.176). 

Resgatando este autor o aspecto político e democrático da gestão, como faz o programa aqui proposto, que enxerga a corrupção, além de um problema ético-legal, como um problema de deficiência política e gerencial, que não se resolve com fórmulas mágicas ou arroubos, que causam grande impacto, mas não alteram paradigmas. Resolve-se com ações estruturais que deixam como herança para as futuras gerações o amadurecimento do país, que ficou para trás, nos trens da história que perdemos desde a nossa independência. 

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[1] Tanto o filme “O Bem Amado”, de 2010, inspirado no livro homônimo de Dias Gomes (1922-1999), como a película “Saneamento Básico” (2007), de Jorge Furtado (1959-), exploram o lado pitoresco da gestão municipal e a sua relação com a capital, trazendo para o imaginário popular uma visão pessimista desses entes no que tange a gestão da coisa pública.

[2] Dados do Censo Escolar da Educação Básica do INEP/MEC de 2015.

[3] Vide na Constituição Federal de 1988 os artigos 23; 30; 198; e 211 para fins de exemplo. As políticas sociais aqui referidas são as de Saúde, Educação Básica e Assistência Social, que tem, de um modo geral, a sua implementação nos municípios pela parceria da União com esses entes.

[4] Coronelismo é o nome dado às ações de senhores de terra, chamados de coronéis, no domínio econômico e social para o direcionamento eleitoral em causa de particulares. Tem-se que:

O característico coronel foi por muito tempo um fazendeiro, possuidor de várias propriedades em diversos distritos. O coronel fazendeiro era aquele que mais se aproximava do histórico senhor de engenho da antiga sociedade patriarcal. Constituia-se ele, também, em um elo na evolução do poder pessoal que se situava entre a antiga sociedade escravocrata e a moderna sociedade capitalista (JANOTTI, 1989, p.42).

[5] O Programa de Fiscalização em Entes Federativos também engloba a metodologia de escolha por Sorteios Públicos. Essa iniciativa, que visa inibir a corrupção entre gestores de qualquer esfera da administração pública, vem sendo aplicada desde abril de 2003. A Controladoria-Geral da União (CGU) usa o mesmo sistema das loterias da Caixa Econômica Federal para definir, de forma isenta, as áreas a serem fiscalizadas quanto ao correto uso dos recursos públicos federais.

[6] Accountability tem grande relevância no debate político moderno, em especial na questão da construção da democracia, na garantia de direitos e ainda, no combate da corrupção, do abuso do poder e da ineficiência. Segundo Pessanha (2007, p. 141), a Accountability

(…) implica manter indivíduos e instituições responsáveis pelo seu desempenho, ou seja, alguns atores tem o direito, por vezes o dever, de controlar o desempenho de outros atores, segundo um conjunto de padrões pré-estabelecidos.

O que permite aplicar sanções corretivas e atribuir responsabilidades, contexto essencial para que os governos, com suas estruturas cada vez mais complexas, com múltiplos atores e partes interessadas, possam ter mitigada a sua captura por interesses diferentes da coletividade.

[7] A breve discussão trazida por Braga e Bliacheriene (2015) ilustra essa questão, apresentando que ainda que predominem visões mais legalistas da solução da corrupção, ela demanda também ações multidimensionais e integradas, passando pela Prevenção, Punição, Participação e Fiscalização.

[8] Para uma visão mais ampla desse panorama recomenda-se a leitura de Braga (2016), Oliveira Junior & Mendes (2016) e Power & Taylor (2011), que trazem as discussões recentes sobre as políticas anticorrupção no Brasil e o seu reflexo nas estruturas governamentais, com mutações de foco de atuação e de arranjo adotado.

[9] Conforme Braga & Nóbrega (2016), o Compliance é uma resposta a um risco específico, o risco regulatório da empresa ser punida pela atuação de seus empregados, prepostos e representantes, em práticas corruptas. A adoção de mecanismos de Compliance age de forma preventiva, instrumentalizando a organização para dar conta dessa questão, que emerge no mundo exterior e tem aptidão para afetar de modo vigoroso a saúde econômica e a reputação das empresas.

[10] Existe no país uma carência de positivação da temática dos chamados controles internos. No plano internacional, com um bom grau de amadurecimento, existe um modelo de implementação e avaliação desses controles, em voga desde 1994, organizado por um pool de organizações e conhecido como The Committee of Sponsoring Organizations of the Treadway Comission (COSO), e que tem uso vulgarizado nas organizações públicas e privadas do mundo todo nesse contexto. Vide IIA-Brasil (2013).

[11]A Portaria n° 277, de 07 de fevereiro de 2013 da CGU, instituiu o programa Brasil Transparente, que tem entre outros objetivos promover o intercâmbio de informações e experiências relevantes ao desenvolvimento e à promoção da transparência pública e acesso à informação, e tem como uma das linhas de atuação a Escala Brasil Transparente (EBT), que é uma metodologia para medir a transparência pública em estados e municípios brasileiros, que tem o objetivo de avaliar o grau de cumprimento de dispositivos da Lei de Acesso à Informação (LAI), no que tange a transparência passiva, pela realização de solicitações reais de acesso à informação sobre diversas áreas de governo

[12] A discussão de ações pautadas não somente em punições, mas também em incentivos, tem se espraiado por diversos campos do setor público. Destaca-se a discussão de Martinez (2014), que traz aspectos psicológicos da dicotomia punição e incentivos, em uma visão consoante com as proposições do presente artigo.

[13] Dados do IBGE de 2013

[14] Rent Seeking ou teoria da busca de renda é uma visão econômica de que a riqueza pode ser obtida de outras formas que não os mecanismos normais de mercado e lucro, pela apropriação por meio de privilégios para determinados atores. Prega essa teoria que o Estado em sua atuação termina por gerar privilégios e rendas injustas, frustrando os mecanismos de mercado e direcionando recursos para atividades não produtivas, na busca de obter influência junto ao poder.

 

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Levany Júnior

Levany Júnior é Advogado e diretor do Blog do Levany Júnior. Blog aborda notícias principalmente de todo estado do Rio Grande do Norte, grande Natal, Alto do Rodrigues, Pendências, Macau, Assú, Mossoró e todo interior do RN. E-mail: [email protected]

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