Blog do Levany Júnior

PENDÊNCIAS RN-A ANIMADODORA DA CULTURA PENDÊNCIENSE – TARCÍSIO GURGEL

Poucas pessoas têm me impressionado tanto na vida cultural do Estado como uma pequenina mulher de aparência frágil, denunciando a luta permanente que tem travado ao longo dos seus quase oitenta anos em variados pontos do Vale do Açu. O seu nome – é assim que toda gente a conhece e é assim que gosta de ser chamada – Dodora. O seu lugar propriamente é Pendências, cuja geografia e povo conhece como ninguém, a começar pela figura sempre lembrada daquele que é considerado o fundador da cidade, o fazendeiro Félix Rodrigues.

Admiração à primeira vista, conheci-a numa das atividades frequentemente realizadas pelo “Espaço Cultural Manoel Rodrigues de Melo”, pertencente à Fundação Cultural da cidade, que tem o nome do fundador. Era um curso sobre o prazer da leitura e incluía Clarice Lispector, Bandeira, Vinicius de Moraes, cordelistas e autores potiguares. Está certo que a plateia era heterogênea como o elenco dos autores. Mas igualmente ao que eu esperava que ocorresse com eles em relação à leitura ocorreu com eles em relação a mim, que passei a admirá-los pelo comovente interesse revelado em todas as atividades do curso por mim ministrado.

Lembro bem que olhava comovido aquele instigante pedaço de Brasil ali representado por gente miscigenada e alegre de idades, natureza, condição social variada, sendo que em meio ao grupo pontificava aquela senhora, inicialmente reservada, que apesar disso não podia disfarçar sua enorme curiosidade intelectual. Não tive qualquer dificuldade em conhecê-la, porque o carinho que todos lhe devotavam facilitou tudo.

E fiquei sabendo: provinha do Porto do Carão, uma humilde comunidade ribeirinha pertencente ao município de Pendências. Era professora; líder comunitária; participante ativa dos movimentos da igreja; e, acima de tudo, uma zelosa guardiã da memória da cidade, comportamento reforçado por uma curiosidade intelectual poucas vezes vista.

Mãe de vários filhos, esposa de Raimundo, agricultor hoje inválido, Dodora mantém-se, quase octogenária, numa inquietação capaz de justificar lances improváveis numa nordestina da sua idade.

Tornou-se professora à custa de enormes esforços, que incluíam assistir aula com fome, após viajar léguas na carroceria de um caminhão até chegar à cidade do Açu, onde havia faculdade; fez curso de especialização; participa de todas – invariavelmente todas – as atividades culturais porventura desenvolvidas na cidade. Pobre, não faz do parco salário motivo para se lamentar. Luta e mais luta e se revela permanentemente solidária com as pessoas, jamais arrefecendo no seu interesse pela cultura da região. Conhece e conhece bem todos os municípios (Açu, Ipanguaçu, Carnaubais, Pendências, Alto do Rodrigues, Macau) e, consultada, jamais se nega a informar os seus interlocutores. Carinhosa com a cultura popular tem colaborado com encenações teatrais dos grupos locais produzindo cordéis em que fala de personagens que marcaram época no Vale e ultimamente tem lutado de forma incansável para que seja reabilitado um grupo de Boi de Reis que se encontra desativado na comunidade de Porto do Carão. Sabe dos vivos e dos mortos. Vai até onde mora cada um. Projeta ensaios. Se os velhos brincantes se deixam trair pela memória lá vem Dodora motivá-los, cantando as cantigas, ou recitando os versos também preservados pelo seu carinho.

Grande, admirável Dodora. Exemplo vivo do zelo pela tradição e divulgação da memória e da cultura popular do Vale do Açu. O povo da cidade de Pendências a admira e há de exaltá-la. Sempre.

Tarcísio Gurgel


Tarcísio Gurgel é jornalista, Doutor em Pesquisas da Linguagem pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e colaborador da Fundação Félix Rodrigues.

 

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