Diga para o seu irmão: “Perante Deus até a tristeza salta de prazer”
Ora, a quem o aludido texto de Jó se refere? Intuitivamente, qualquer pessoa responderia: “A Deus, é claro”, visto que o Senhor, de fato, espanta a tristeza por meio da alegria, uma vez que na presença dEle há abundância de alegria, diz o salmista (Salmos 16.11). Que tal fazermos uma leitura rápida do capítulo 41 do livro de Jó? Aliás, antes disso, é importante observar que, no capítulo 38, Deus começou a chamar a atenção do patriarca Jó para a obra da sua maravilhosa criação: “Onde estavas tu, quando eu fundava a terra?” (v. 4).
A partir do capítulo 40, Deus mostra a Jó a força de alguns animais, destacando o beemote (um grande quadrúpede das selvas, similar ao hipopótamo) e o “monstro das águas”, o leviatã, termo que o famoso filósofo — e teólogo — inglês Thomas Hobbes tomou emprestado, no século XVII, para descrever o Estado. Segue-se que o texto de Jó 41.22 (ARC) —”No seu pescoço pousa a força; perante ele, até a tristeza salta de prazer” — é a continuação da descrição das características do leviatã e nada tem que ver com Deus! Mas, antes que alguém resolva sair por aí pregando que a tristeza salta de prazer diante do leviatã, permita-me explicar o versículo em apreço à luz da Teologia Exegética, ciência que abarca Hermenêutica e Exegese.
Em Jó 41 vemos uma descrição hiperbólica do leviatã — animal similar a um crocodilo, mas muito maior em tamanho —, a qual aponta para a ferocidade desse animal. A versão bíblica Revista e Atualizada de Almeida (ARA) apresenta uma tradução um pouco mais clara do versículo 22: “diante dele salta o desespero”. Já a Almeida Revista e Corrigida (ARC) foi baseada num manuscrito que contém uma falha do copista — em tempos remotos, todas as cópias eram feitas à mão; no hebraico bíblico, um pequeno sinal, quase imperceptível, é capaz de mudar completamente o sentido de uma palavra.
O capítulo 41 de Jó apresenta, também, uma descrição do leviatã difícil de se entender: “Cada um dos seus espirros faz resplandecer a luz” (v. 18); “Da sua boca saem tochas” (v. 19); “Do seu nariz procede fumaça” (v 20); e “O seu hálito faria acender os carvões” (v. 21). Essas características, evidentemente, devem ser interpretadas como figuras poéticas de grande valentia do animal, e não como características reais.
Por que o texto de Jó 41.22 faz referência ao leviatã, e não a Deus? Porque, diante do exposto, o Criador — ao descrever a Jó as características de suas criaturas — tinha como objetivo convencer seu servo, que estava se gabando de sua justiça perante seus amigos, de sua pequenez. Veja a ironia de Deus nesta pergunta retórica: “Poderás pescar com anzol o leviatã, ou ligarás a sua língua com a corda?” (v. 1). Ele queria mostrar a Jó, através do indomável, terrível e indomesticável animal (v. 7), coberto de escamas duras como o ferro (vv. 15-17,26), o seu poder como Criador e Senhor: “Ninguém há tão atrevido, que a despertá-lo se atreva; quem, pois, é aquele que ousa erguer-se diante de mim?” (v. 10).
Portanto, o expoente das Escrituras que se preza nunca deve desprezar o contexto de uma passagem bíblica. As Escrituras foram divididas em capítulos e versículos apenas para que haja maior facilidade na procura de textos, mas isso não significa que um versículo tem autoridade em si mesmo, de forma isolada. A interpretação de cada versículo deve ser feita em sintonia com os contextos geral, imediato, referencial, histórico-cultural e literário. #FicaADica.
Ciro Sanches Zibordi