Nos últimos anos, militares de várias potências militares passaram a desenvolver dispositivos que funcionam como robôs, controlados por inteligência artificial avançada. A aeronave experimental não tripulada XQ-58A Valkyrie, da Força Aérea dos Estados Unidos, é uma delas
Edmund D. Fountain/The New York Times – 13.07.2023
Ela é impulsionada por um motor de foguete. Seu alcance de voo equivale à largura da China. Tem design furtivo e é capaz de transportar mísseis que podem atingir alvos inimigos muito além de seu alcance visual.
Mas o que realmente distingue a aeronave experimental não tripulada XQ-58A Valkyrie da Força Aérea dos Estados Unidos é o fato de ser operada por inteligência artificial (IA). Isso a coloca na vanguarda dos esforços militares dos EUA para explorar as capacidades de uma tecnologia emergente cujos amplos benefícios potenciais são acompanhados por profundas preocupações com a quantidade de autonomia que deve ser concedida a uma arma letal.
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Essencialmente um drone de última geração, o Valkyrie é um protótipo do que a Força Aérea espera que possa se tornar um complemento potente à sua frota de caças tradicionais, oferecendo aos pilotos humanos um enxame de robôs altamente habilidosos para usar em batalha. Sua missão consiste em combinar IA e sensores para identificar e avaliar ameaças inimigas e, depois de obter a aprovação humana, atingir o alvo.
Em um dia recente, na Base da Força Aérea de Eglin, na costa do golfo da Flórida, o major Ross Elder, de 34 anos, piloto de testes da Virgínia Ocidental, preparava-se para um exercício no qual pilotaria seu caça F-15 ao lado do Valkyrie.
“É uma sensação muito estranha. Estarei voando lado a lado com um dispositivo que toma decisões próprias e não é um cérebro humano”, comentou o militar, enquanto outros membros da equipe da Força Aérea se preparavam para testar o motor do Valkyrie.
O programa Valkyrie oferece um vislumbre de como a indústria bélica dos EUA, a cultura militar, as táticas de combate e a competição com nações rivais estão sendo profundamente afetadas pelos rápidos avanços tecnológicos.
O surgimento da IA está contribuindo para criar uma nova geração de prestadores de serviços do Pentágono que busca minar, ou pelo menos desafiar, a longa supremacia de um pequeno grupo de gigantes da indústria que fornece aeronaves, mísseis, tanques e navios às forças armadas.
A possibilidade de construir frotas de armas inteligentes e relativamente acessíveis, que podem ser implantadas em grande número, está permitindo ao Pentágono que pense em novas maneiras de enfrentar as forças inimigas.
Também coloca os desenvolvedores diante de questões desafiadoras sobre o papel que o ser humano deve desempenhar em conflitos travados com o apoio de softwares criados para matar.
A conquista e a manutenção de uma vantagem em IA é apenas um dos elementos de uma competição cada vez mais explícita com a China pela supremacia tecnológica em segurança nacional.
Depois de décadas desenvolvendo cada vez menos aviões de combate, e a um custo cada vez mais alto (o caça F-35 custa US$ 80 milhões por unidade), a Força Aérea dos Estados Unidos agora se vê com a menor e mais antiquada frota de sua história.
É aqui que entra a nova geração de drones com IA, conhecidos como aeronaves de combate colaborativas. A Força Aérea planeja fabricar entre mil e 2.000 deles, com um custo unitário de apenas US$ 3 milhões, uma fração do valor de um caça avançado. Por isso, alguns na Força Aérea chamam o programa de “massa acessível”.
Essas aeronaves robóticas terão diversas finalidades específicas. Algumas serão destinadas a missões de vigilância ou reabastecimento, outras voarão em grupos de ataque e outras ainda servirão como “parceiros fiéis” de pilotos humanos.
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Os drones, por exemplo, poderiam voar à frente de aeronaves de combate tripuladas em missões de alto risco, fazendo vigilância avançada. Também poderiam desempenhar um papel importante na neutralização das defesas aéreas inimigas, assumindo riscos para eliminar alvos de mísseis baseados em terra considerados perigosos demais para um avião pilotado por humanos.
Essa IA é uma versão mais especializada do tipo de programação que atualmente alimenta chatbots. Sua função seria coletar e avaliar informações dos sensores conforme se aproximasse das forças inimigas, para identificar ameaças e alvos importantes, solicitando a autorização do piloto humano antes de lançar qualquer ataque com suas bombas ou mísseis.
Os drones mais baratos serão considerados descartáveis, o que significa que provavelmente terão apenas uma missão. A mais sofisticada dessas aeronaves robóticas pode custar até US$ 25 milhões, de acordo com uma estimativa da Câmara dos Representantes. Ainda assim, esse valor é muito menor do que o custo de um caça tripulado.
O major-general R. Scott Jobe, que até recentemente liderava a definição dos requisitos do programa de combate aéreo da Força Aérea, destacou: “É uma solução perfeita? Não existe uma solução perfeita ao vislumbrar o futuro. Mas podemos apresentar dilemas aos potenciais adversários, e um deles é o ataque em massa. Vamos ser capazes de organizar ataques em massa potencialmente usando menos pessoal”, explicou em entrevista concedida no Pentágono, referindo-se à utilização de um grande número de drones contra forças inimigas.
Esse esforço marca o início de uma mudança significativa na abordagem da Força Aérea à aquisição de algumas de suas ferramentas mais importantes. Depois de décadas se concentrando na aquisição de hardware desenvolvido por empresas tradicionais, como a Lockheed Martin e a Boeing, a ênfase do Pentágono está se voltando para os sistemas de software, que têm o potencial de aprimorar os recursos dos sistemas de armas, criando uma oportunidade para que empresas de tecnologia mais novas recebam uma parte do vasto orçamento de compras do Pentágono.
“As máquinas estão utilizando os dados para criar resultados próprios”, afirmou o brigadeiro-general Dale White, responsável pelo novo programa de aquisições do Pentágono.
A Força Aérea está ciente da necessidade de abordar preocupações profundas com o uso militar da IA, quer seja o medo de que a tecnologia possa se voltar contra seus criadores humanos (como a Skynet na série de filmes O Exterminador do Futuro), quer sejam as dúvidas mais imediatas sobre permissões para que os algoritmos orientem o uso da força letal.
“Estamos atravessando um limite moral ao delegar às máquinas a capacidade de tirar vidas humanas, pois estaremos permitindo aos sensores de computador, em vez de humanos, decidirem quem vive e quem morre”, alertou Mary Wareham, diretora de defesa da divisão de armas da organização Human Rights Watch, que está pressionando por limites internacionais para as chamadas armas autônomas letais.
Uma política do Pentágono sobre o uso de IA em sistemas de armas, revisada recentemente, permite o uso autônomo de força letal. Mas qualquer plano específico para desenvolver ou implantar uma arma desse tipo deve primeiro ser analisado e aprovado por um comitê militar especial. “É uma responsabilidade incrivelmente grande. A narrativa distópica e a cultura popular criaram uma espécie de frenesi em relação à IA. Mas só é preciso implantá-la de maneira metódica, deliberada e ética, em um processo lento e gradual”, comentou o coronel Tucker Hamilton, chefe de testes e operações de IA da Força Aérea, que também ajuda a supervisionar as equipes de testes de voo na Base Aérea de Eglin.
De acordo com as principais autoridades do Pentágono, o ser humano continuará a desempenhar um papel central nessa nova visão da Força Aérea, mas trabalhará cada vez mais em conjunto com engenheiros de software e especialistas em aprendizado de máquina, refinando constantemente os algoritmos que orientam a operação dos robôs que voarão ao seu lado.
Quase todos os aspectos das operações da Força Aérea terão de ser revisados para que essa mudança possa ser adotada, tarefa que caberá a White e Jobe executar durante o verão.
O Pentágono já dedicou vários anos ao desenvolvimento de protótipos como o Valkyrie e do software que o controla. No entanto, o experimento agora está se transformando no chamado programa de registro, o que significa que, se o Congresso aprovar, um grande volume orçamentário será destinado à compra dessas aeronaves: um total de US$ 5,8 bilhões nos próximos cinco anos, segundo o plano da Força Aérea.
Em 1947, Chuck Yeager, na época um jovem piloto de testes de Myra, na Virgínia Ocidental, tornou-se o primeiro ser humano a voar mais depressa que a velocidade do som.
Setenta e seis anos depois, outro piloto de testes da Virgínia Ocidental se tornou um dos pioneiros da Força Aérea a voar ao lado de um drone de combate autônomo e equipado com IA.
Alto e esguio, com leve sotaque das montanhas dos Apalaches, o major Elder voou no mês passado com seu F-15 Strike Eagle a menos de 300 metros do XQ-58A Valkyrie experimental. Assim como um pai correndo ao lado de uma criança que está aprendendo a andar de bicicleta, ele se manteve atento ao drone, que voava de forma autônoma, atingindo determinadas velocidades e altitudes.
Os testes funcionais básicos do drone foram apenas a preparação para o evento principal, no qual o Valkyrie irá além do uso de ferramentas avançadas de piloto automático e começará a testar os recursos de combate de sua IA. Em um teste previsto para o fim deste ano, o drone de combate deverá perseguir e eliminar um alvo inimigo simulado enquanto sobrevoa o Golfo do México, elaborando a própria estratégia para a missão.
Uma equipe pouco tradicional de oficiais e civis da Força Aérea foi montada em Eglin, uma das maiores bases da Força Aérea do mundo. Entre eles, encontra-se a capitã Rachel Price, de Glendale, no Arizona, atualmente finalizando um doutorado no Instituto de Tecnologia de Massachusetts sobre aprendizagem profunda de computadores. O major Trent McMullen, de Marietta, na Geórgia, que tem mestrado em aprendizagem de máquinas pela Universidade Stanford, é outro integrante da equipe.
O major Elder monitora possíveis discrepâncias entre as simulações executadas por computador antes do voo e as ações do drone quando está efetivamente no ar, problema que costumam chamar de “simulação versus realidade”. Outro fator, ainda mais preocupante, é o monitoramento de qualquer sinal de “comportamento emergente”, em que o drone robô esteja agindo de forma potencialmente prejudicial.
De acordo com Elder e outros pilotos, a parte mais difícil dessa tarefa é estabelecer a confiança, componente vital do vínculo entre um piloto e seu parceiro, já que a vida deles depende um do outro e de como cada um reage. Essa também é uma preocupação no Pentágono.
As autoridades estimam que podem ser necessários de cinco a dez anos para desenvolver um sistema funcional de combate aéreo baseado em IA. Os comandantes da Força Aérea estão comprometidos em acelerar o progresso do projeto, mas reconhecem que a velocidade não pode ser o único foco. “Não atingiremos nosso objetivo imediatamente, mas vamos chegar lá. Já fizemos avanços, e o sistema melhora a cada dia, à medida que treinamos os algoritmos”, afirmou Jobe.
c. 2023 The New York Times Company