Blog do Levany Júnior

O Espírito-parákletos no Quarto Evangelho

O Espírito-parákletos no Quarto Evangelho

 

Amin A. Rodor, Th.D.
Professor de Teologia Sistemática e Diretor do SALT, Unasp, Campus Engenheiro Coelho, SP

 

Resumo: Este artigo trata do título grego parákletos no quarto evangelho, atribuído, como é bíblica e historicamente evidente, ao Espírito Santo, a terceira pessoa da Trindade. O autor enfatiza que, embora o parákletos seja o dom da nova era, Ele possui profundas raízes bíblicas. Atenção especial é dada ao paralelismo entre Jesus e o “outro parákletos”, sugerindo que Este representa o “retorno” de Jesus para os Seus discípulos, a fim de permanecer com eles, conforme havia prometido. O parákletosé o verdadeiro elo entre a Igreja e Jesus desde o Pentecostes até a “consumação do século”. Por meio do parákletos, Jesus é reinterpretado e feito contemporâneo para as sucessivas gerações de cristãos.

 

Abstract: This article deals with the Greek title parákletos in the fourth gospel, attributed, as biblical and historically evident, to the Holy Spirit, the third Person of the Trinity. The author emphasizes that, even though the parákletos is the gift of the new age, He has deep biblical roots. Special attention is given to the parallelism between Jesus and the “other parákletos,” suggesting that He represents the  “return” of Jesus to His disciples, in order to abide with them, as He had promised. The parákletos is the true link between the Church and Jesus from the Pentecost till “the end of the world.” Through theparákletos Jesus is reinterpreted and made contemporary to the successive generations of Christians.

 

Introdução

 

A palavra grega parákletos*na literatura bíblica, é exclusiva do Novo Testamento, e ocorre de forma restrita, apenas nos escritos joaninos. Como um epíteto, o termo é aplicado uma vez a Jesus (1Jo 2:1), que atua como um intercessor/advocatus junto ao Pai, na corte celestial. Em cinco outras passagens, no quarto evangelho, contudo, parákletos como um título é aplicado a alguém que: (a) não é Jesus; (b) não é primariamente um intercessor; e (c) não exerce sua função no céu, junto ao Pai. A tradição cristã, desde tempos primitivos,1 e com boas razões, identificou o parákletos no Evangelho de João, como sendo o Espírito Santo, a terceira pessoa da Trindade.2

 

Considerando-se as objeções recentes ao ensino bíblico quanto à personalidade do Espírito Santo e à Trindade,3 o estudo deste tema no quarto evangelho é crucial, levando-se em conta que o Evangelho de João, provavelmente o último livro do Novo Testamento a ser escrito, representa o mais alto desenvolvimento teológico das Escrituras,4 e, nas palavras de Vincent Taylor, “o clímax e coroa da revelação bíblica a respeito do Espírito Santo”.5 Não seria difícil, portanto, estabelecer que o estudo do tema no evangelho joanino é de fundamental importância para se verificar como os cristãos, no final do primeiro século, entenderam e consideraram o Espírito Santo.

 

Como observado por Raymond E. Brown, reconhecida autoridade no quarto evangelho, as cinco passagens em que o parákletos é mencionado no evangelho de João (Jo 14:15-17, 26; 15:26-27; 16: 7-11, 12-14), podem ser organizadas em quatro grupos:

 

(1)   A vinda do parákletos e Seu relacionamento com o Pai: O parákletos virá, mas apenas quando Jesus partir (Jo 15:26; 16:7,8, 13). Ele procede do Pai (Jo 15:26). O Pai concederá o parákletos a pedido de Jesus (Jo 14:16). Jesus, quando partir, enviará o parákletos da parte do Pai (Jo 16:7).

 

(2)   A identificação do parákletos: Ele é chamado “outro parákletos” (Jo 14:16). É, também, o Espírito de Verdade (Jo 14:17; 15:226), e o Espírito Santo (Jo 14:26).

 

(3)   A relação do parákletos com os discípulos: Os discípulos reconhecem o parákletos (Jo 14:17). O parákletos estará com os discípulos e permanecerá com eles (Jo 14:16, 17). Ele ensinará aos discípulos todas as coisas (Jo 14:26). Guiará os discípulos a toda a verdade (Jo 16:13). Anunciará aos discípulos as coisas que hão de vir (Jo 16:13). Receberá e anunciará o que é de Jesus (Jo 16:14). Glorificará a Jesus (Jo 16:14). Testemunhará em favor de Jesus (Jo 15:26). Relembrará aos discípulos tudo o que Jesus lhes ensinou (Jo 14:26). O parákletos falará apenas o que ouvir e nada de Si mesmo (Jo 16: 13).

 

(4)   A relação do parákletos com o mundo: O mundo não pode receber o parákletos (Jo 14:17); O mundo não O vê nem O conhece (Jo 14:17). No contexto do ódio e perseguição movidos pelo mundo (Jo 15:18-25), o parákletos testemunhará de Jesus (Jo 15:26). Ele tornará evidente o erro do mundo acerca do pecado, da justiça e do juízo (Jo 16:8-11) .6

 

Da sistematização das cinco referências ao parákletos no quarto evangelho mencionadas acima, algumas características quanto à sua identidade emergem claras e além da dúvida razoável.

 

(1) O parákletos não é Jesus ou o Pai:7 Jesus fala de “outro parákletos”,8 implicando que seus discípulos já possuíam um, que só podia ser Ele mesmo. De fato, como mencionado em 1 João 2:1, Jesus é chamado de “parákletos”.9 E é precisamente Sua [de Jesus] partida, como veremos posteriormente, que abre espaço para o ministério deste outro parákletos, “para compensar a perda da presença visível de Jesus.”10 A idéia de que o parákletos não é Jesus se fortalece pelas diferentes ocorrências, nas quais o parákletos testemunha de Jesus, O glorifica e age como Seu representante. Por outro lado, é evidente que o parákletos não é o Pai, pois é precisamente o Pai quem O envia, em nome de Jesus, e apenas depois que Jesus tenha partido (Jo 14:26).11 Deve-se observar ainda que, ao contrário de Jesus como parákletos, em 1 João 2:1, o parákletos no quarto evangelho não é primariamente um intercessor dos discípulos diante do Pai, mas o ajudador deles em relação ao mundo. Significativamente, contrariando a errônea idéia de que a doutrina da Trindade tenha sido originada em um período posterior ao Concílio de Nicéia (325 d.C.), Tertuliano (160-220 d.C.) claramente identifica oparákletos com o Espírito Santo, distinguindo-O das pessoas do Pai e do Filho. Diz ele, em sua famosa apologia Contra Praxeas:

 

…[o Evangelho de João] continua a fornecer-nos declarações do mesmo tipo, distinguindo o Pai e o Filho com as propriedades de cada um. Então também há o Paracleto ou Consolador, acerca do qual Ele prometeu orar ao Pai, e enviá-lo do céu, depois que Ele tivesse ascendido para o Pai. Ele é chamado “outro Consolador”… Assim, a conexão do Pai com o Filho, e do Filho com o Paracleto, produz três Pessoas coerentes, as quais, contudo, são distintas uma da outra. Estes três são uma essência, não uma Pessoa, como é dito “Eu e o Pai somos Um” em respeito à unidade de substância, não à singularidade de número.12

 

No mesmo texto, Tertuliano observa:

 

O Espírito Santo, de fato, é o terceiro, distinto de Deus [o Pai] e do Filho… Eu testifico que o Pai, e o Filho e o Espírito são inseparáveis de cada um… e que eles são distintos um dos outros.

 

Tertuliano então conclui com lógica que dificilmente poderia ser melhorada:

 

Além disto, não é o próprio fato de que eles tem nomes distintos [Pai, Filho e Espírito-Paracleto] equivalente a uma declaração de que eles são distintos em personalidade?13

 

(2) Que o parákletos não é mera força ou influência é claro das diversas atividades exercidas, possíveis apenas a uma pessoa:14 Ele ensina, guia, é enviado, anuncia, recebe, glorifica, testemunha em favor, relembra, fala, convence, acusa, etc. Além disso, ao parákletos são atribuídos pronomes pessoais. João torna a personalidade do Espírito mais evidente, atribuindo a Ele o título masculinoparákletos e referindo-se ao Espírito-parákletos com pronomes pessoais (ékeinos e autós).15

 

(3) Com relação às funções do parákletos, fica também evidente que Ele vem para os discípulos e habita com eles, guiando-os, ensinando a respeito de Jesus: Devemos observar, contudo, que João O retrata como o Espírito Santo, como já sugerido, numa função específica: como a presença pessoal de Jesus com os cristãos, durante o período de Sua ausência.

 

(4) A respeito do relacionamento do parákletos com o mundo, é óbvio que Ele é hostil ao mundo, colocando este em julgamento por seu pecado de descrença. O mundo não O pode receber, porque não O vê nem O conhece (Jo 14:17).

 

O parákletos joanino

 

Do estudo quanto à identidade do parákletos no quarto evangelhoalgumas questões emergem naturalmente: Se Ele realmente é o Espírito Santo, como mantido pelos cristãos e claramente indicado pelo próprio João: “Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome”16 (Jo 14:26), por que é este título atribuído ao Espírito? Quais aspectos particulares das funções do Espírito Santo são atribuídas ao parákletos? Além disto, por que o título é encontrado exclusivamente no evangelho joanino? Para estas questões cruciais voltaremos nossa atenção, mais tarde, neste estudo. Nesta seção concentraremos a atenção nos aspectos lingüísticos do termo.

 

background histórico e o significado lingüístico do termo parákletos no Evangelho de João têm sido buscados em uma variedade de fontes e alternativas,17 e seria desnecessário repeti-los aqui. Esforços têm sido feitos, por exemplo, na tentativa de se encontrar um equivalente semítico para o título grego. Tais tentativas parecem enfatizar a convicção de que se uma palavra hebraica ou aramaica, que tenha servido de base para a tradução de parákletos, fosse encontrada, provavelmente saberíamos o significado primário do termo. Contudo, até o momento, os mais minuciosos estudos não conseguiram produzir um candidato semítico verdadeiramente aceitável.18 De fato, como Brown observa, “Esta busca para um equivalente hebraico pode ser em vão,”19 provavelmente porque tanto no hebraico quanto no aramaico, a palavra foi transliterada do grego.20 Além disto, como indicado por Johannes Behn, no seu clássico estudo do termo, no Theological Dictionary of the New Testament, o uso joanino do termoparákletos não se ajusta facilmente à história da palavra em fontes seculares.

 

Concluímos, então, que, embora os antecedentes históricos, religiosos e lingüísticos do termoparákletos possam ser considerados importantes para se determinar o seu significado no Novo Testamento, as decisões quanto a tal significado serão consideravelmente subjetivas e de valor limitado, ao mesmo tempo que limitador. O significado de parákletos tem sido traduzido por uma variedade de palavras21 tais como “Consolador,” “Advogado,” “Ajudador,”22 “Espírito de Verdade,” “Amigo,” etc. No entanto, deve-se observar que nenhuma destas traduções consegue capturar de forma plena a complexidade das funções atribuídas ao parákletos no quarto evangelho.

 

Se, a palavra parákletos usada por João em seu evangelho não parece ser uma tradução direta de um título hebraico específico, nem tem ela sua origem em um título no grego secular, talvez isto sugira que foi o uso cristão que deu ao termo uma conotação exclusiva a ele e, portanto, o seu significado é melhor decidido pelo contexto do que por deduções léxicas. O que é, portanto, o parákletos? Gerard Manley Hopkins está provavelmente correto em sua resposta, lembrando que o termo é frequentemente traduzido por Consolador, mas o parákletos faz muito mais do que consolar. A palavra é grega, não possui um equivalente exato em nossa língua. É esclarecedor ter em mente que Jerônimo, ao traduzirparákletos, tinha à sua disposição, além dos termos latinos advocatus e consolator, o costume da transliteracão. Enquanto ele adota advocatus em 1 João 2:1, no evangelho, contudo, ele seguiu a alternativa da transliteração, mantendo a palavra transliterada como Paracleto. R. Brown apropriadamente observa que seria sábio fazermos o mesmo em tempos modernos, e optarmos porParacleto, uma transliteração aproximada do grego parákletos, o que preserva a singularidade da palavra, sem enfatizar um único aspecto do conceito em detrimento de outro. No mínimo, isto serve como advertência para aqueles que querem comprimir o termo dentro de limites dogmáticos.

 

Devemos observar, ainda, dois aspectos básicos quanto à identidade do parákletos no quarto evangelho: Por um lado, embora ele possa ser considerado o “dom da nova era,” o parákletos não é um estranho, uma “novidade,” ou simples invenção joanina, desconectado de raízes bíblicas. De fato, João “não pinta um quadro sem paralelo em outras descrições do Espírito Santo no Novo Testamento, mas enfatiza certos aspectos que já estão presentes [aí], e dá a eles nova orientação.”23 Esta conexão e convergência de identidade entre o Espírito Santo e o parákletos será o foco de discussão na seção seguinte deste trabalho.

 

Por outro lado, João não faz uma simplista identificação entre o Espírito e o parákletos, sem os refinamentos teológicos que são uma marca inconfundível do seu evangelho. Devemos ter em consideração que, independentemente do que ele tenha dito no evangelho acerca do parákletos, ele está escrevendo tendo em mente a obra completa de Cristo na cruz. Ele escreve da perspectiva do período posterior à ascensão, antecipando o relacionamento entre o ressuscitado Cristo e os Seus discípulos, além do relacionamento dEle com o mundo, através do parákletos. Portanto, o parákletosincorpora uma enorme complexidade de funções. Ele é uma testemunha de defesa de Jesus, e o representante dEle no contexto do Seu julgamento pelos Seus inimigos. O Paracleto é, por outro lado, um consolador dos discípulos, assumindo o lugar de Jesus entre eles. O Paracleto é o mestre, guia, e conselheiro dos discípulos e, assim, um ajudador. O relacionamento entre o parákletos e Jesus é o tema da última seção do nosso estudo. E é precisamente aí que detectamos a profunda contribuição teológica de João em relação à pessoa do parákletos.

 

O Espírito-parákletos

 

Pneumatologia tem sido considerada uma das mais distintivas características do quarto evangelho.24Referências diretas e indiretas ao Espírito são inúmeras e complexas, de tal forma que qualquer estudo do tópico seria, no mínimo, muito extenso.25 Devemos notar que neste evangelho o Espírito Santo é regularmente associado com Jesus (como em 1:19-34; 3:5, 7:39, etc). A plena apresentação do Espírito Santo, contudo, é encontrada nas passagens concernentes ao parákletos (14:16, 17, 26; 15:26; 16:7-15).

 

Em João não encontramos uma fórmula trinitariana como em Mateus26 ou Paulo,27 mas há, pelo menos, quatro instâncias do modelo trinitário (1:29-35; 14:16, 26; 16:15). Mais claramente do que qualquer outro escritor do Novo Testamento, João apresenta a divindade do Filho, e a personalidade do Espírito. Mais enfaticamente do que qualquer outro ele indica a distinção do Espírito, tanto em relação ao Pai como ao Filho. Mais diretamente do que qualquer outro, ele indica a missão do Espírito-parákletos. Nisto João estabelece os fundamentos para a doutrina de uma Trindade co-igual, e fornece muito do material sobre o qual esta doutrina seria formulada.

 

Voltando nossa atenção para o relacionamento entre o parákletos e outros textos dos evangelhos sinóticos e do livro de Atos, observamos em primeiro lugar que no quarto evangelho, se Jesus havia estado com os discípulos por alguns poucos anos, e voltou para o Pai, o Espírito Santo, contudo, permanece para sempre com eles, respondendo a questões enfrentadas pela Igreja no final do primeiro século. A doutrina do parákletos em João implica a partida de Jesus do mundo e, naturalmente, oparákletos é retido em sua plenitude até a cruz (Jo 7:39). Não é senão quando Cristo afirma “Eu vou para o meu Pai”, que torna-se necessário, ou mesmo possível, acrescentar: “O Pai vos enviará um outroparákletos.” O Espírito é o outro parákletos, que assume o lugar de Cristo, como advogado dos discípulos. Até então, Jesus fôra o defensor deles enquanto estivera na Terra (Mc 2:18, 24). Agora Jesus cumpre este ofício “junto ao Pai”, enquanto o Espírito, cuja esfera de ação é a Terra, silencia os adversários terrenos do corpo de Cristo, ao longo da era cristã.

 

Esta função forense de “dar testemunho”, “falar pelos discípulos” e “condenar o mundo”, enfatizada nos textos do parákletos joanino, não está dissociada da mesma ênfase em outros textos em que o Espírito Santo aparece com as mesmas funções. Isto é evidente, por exemplo, em Mateus 10:20 (“visto que não sois vós quem falais, mas o Espírito do vosso Pai é quem fala por vós”), Marcos 13:11 (“Quando, pois, vos levarem e vos entregarem, não vos preocupeis com o que haveis de dizer, mas o que vos for concedido naquela hora, isso falai; porque não sois vós os que falais, mas o Espírito Santo”) e Atos 6:10, onde o Espírito Santo é apresentado protegendo os discípulos também em contexto de julgamento.

 

Além disto, se o parákletos vem apenas depois da partida de Jesus, o mesmo é verdade na descrição de Lucas em Atos, quanto à vinda do Espírito. Isto se torna ainda mais distintivo quando observamos que a compreensão de Lucas da ascensão de Jesus partilha com João o conceito da ressurreição (Jo 20:17). O Pai concede o parákletos a pedido de Jesus (Jo 14:16), da mesma forma que o Pai concede o Espírito Santo àqueles que O pedem (Lc 11:13). Se o parákletos testemunha em favor de Jesus por meio do testemunho dos discípulos, assim é a vinda do Espírito Santo em Atos, pois é precisamente Ele quem impulsiona os discípulos a falarem de Jesus e a demonstrarem ao mundo que Deus O havia ressuscitado.

 

Verificamos um íntimo relacionamento entre João 15:26, 27 e Atos 5:32: “Ora, nós somos testemunhas destes fatos, e bem assim o Espírito Santo, que Deus outorgou aos que Lhe obedecem”.28Encontramos ainda uma convergência entre a função de ensino do parákletos em João 14:26, onde é afirmando que “Ele ensinará [aos discípulos] todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito,” e a função do Espírito Santo em Lucas 12:12: “…o Espírito Santo vos ensinará, naquela mesma hora, as coisas que deveis dizer.” Desta forma, quando João 14:26 identifica o parákletos como o Espírito Santo, “isto não é mera junção editorial de dois conceitos distintos”,29 como R. Brown observa. As similaridades e convergências entre o parákletos e o Espírito Santo emergem mesmo num estudo comparativo superficial, entre aquilo que João diz e aquilo que os evangelhos sinóticos e o livro de Atos, em particular, afirmam a respeito dele. Tentar se evadir à força das evidências, sugerindo que o Espírito-parákletos é Pai ou Filho, ou apenas uma força, o ruach/pneuma30 de Deus, é simplesmente fazer uma leitura equivocada, preconceituosa e dogmática de evidências irrefutáveis, leitura informada por conclusões e preconceitos desenvolvidos fora do círculo da revelação.

 

Parákletos e Jesus

 

É importante observar que no pensamento joanino encontramos uma íntima conexão entre oparákletos e Jesus. Praticamente tudo aquilo que João afirma deste personagem é dito de Jesus em outras partes do evangelho. Em outras palavras, o relacionamento entre o primeiro parákletos [Jesus]31e o segundo [o Espírito Santo] é dominante no quarto evangelho. Não é de surpreender que o Espírito seja chamado pelo próprio Jesus, como já visto, de “outro parákletos.” O detalhado e preciso paralelismo entre o ministério do parákletos e o ministério de Jesus é exato para ser entendido como mera coincidência. Assim, uma vez que o parákletos pode vir apenas quando Jesus partir, oparákletos, para todos os efeitos, “é a presença de Jesus quando Jesus está ausente”32 Não é possível deixar passar despercebido o fato de que no parákletos Jesus cumpre Sua promessa de voltar para Seus discípulos (Jo 18:14). Percebemos, então, que de todas as funções do parákletos nenhuma é mais central do que a de continuar a obra de Jesus. Observemos as precisas semelhanças:

 

 

Desta forma, o paradoxo apresentado pela promessa de Jesus de que Sua obra na terra continuará porque Ele irá para o Pai é resolvido pelo Seu “retorno,” na pessoa do parákletos. De fato, a vinda do Paracleto é o “retorno” de Jesus para os seus: Agora eles estão nEle e Ele neles (Jo 14:20). Como J. Louis Martyn observa:

 

Mas esta é uma união dramática desempenhada em um drama de dois níveis, de tal forma que ela cria uma crise epistemológica. O mundo, certamente, vê apenas um nível deste drama.33

 

O mundo, devemos acrescentar, pode “ver” a tradição histórica de Jesus de Nazaré, uma figura do passado, cuja identidade pode ser debatida num formato midráshico, sem, contudo, perceber a atuação do Paracleto, a qual torna Jesus contemporâneo e presente nos atos e palavras dos discípulos (Jo 14:17).

 

Como observado acima, daquilo que João diz do parákletos em seu evangelho, é esta íntima relação entre Ele e Jesus que emerge como o aspecto dominante. Não é de surpreender que alguns intérpretes cheguem a identificar o Espírito-parákletos, como o “alter ego de Jesus”34 ou “o outro Jesus.”35Devemos observar, por um lado, que aquilo que o parákletos ensina ou revela não constitui algo novo. Ele relembra aos discípulos aquilo que Jesus havia ensinado. Ele testemunha em favor de Jesus e O glorifica, tendo com Jesus a mesma relação que Este tivera com o Pai. Assim como Jesus não falou de Si, mas apenas aquilo que o Pai o ensinara (Jo 5:28). Da mesma forma que Jesus glorificara o Pai (Jo 12:28, 14:13, 17:14), o parákletos dá testemunho dEle, e O glorifica. Por outro lado, contudo, o gênio da obra do parákletos, como já sugerido, é que Ele não meramente repete ou reencena Jesus. Oparákletos reinterpreta Jesus, torna-O presente e permanentemente atual na Igreja. Jesus e a glória manifesta em Seu ministério, morte e ressurreição, não representam um período ideal no passado, quando o reino de Deus irrompeu entre os homens, um período para o qual seus discípulos olham com uma aura de saudosismo. O parákletos não é apenas um intérprete de Jesus, mas Aquele que O reatualiza e reinterpreta para cada geração, tornando-O sempre atual, relevante e contemporâneo, não importando as mudanças e variáveis do contexto.

 

Como R. Brown sugere, o quadro joanino do Espírito-parákletos responde a dois problemas importantes na própria composição do quarto evangelho, que não podem ser desconsiderados em nossa discussão, e de fato, respondem à questão suscitada anteriormente neste artigo, quanto à razão pela qual João atribui o título parákletos ao Espírito. O primeiro problema tem a ver com a dificuldade criada pela iminente morte da última testemunha ocular, que constituía o último elo visível entre a Igreja no final do primeiro século e Jesus de Nazaré.36 Como deveria a igreja reagir em face desta nova situação, quando o último vínculo com Jesus parecia estar sendo cortado? Como enfrentar o perigo dela mesma tornar-se uma instituição auto-suficiente, desconectada de Cristo? O conceito do Espírito-parákletosresponde a esta questão. Se as testemunhas oculares, como o próprio discípulo amado, haviam dado seu testemunho e guiado a Igreja, isto não fôra primariamente por causa da conexão direta com Jesus. Uma vez que eles próprios não O haviam entendido (Jo 14:9).

 

Portanto, o testemunho apostólico não é válido porque estes apóstolos houvessem estado com Jesus, ou mesmo dependido da compreensão que eles haviam tido dEle. A validade do testemunho deles dependeu primariamente do parákletos, o qual tomou, depois da ressurreição, o lugar de Jesus, para que os discípulos pudessem ser ensinados e relembrados de tudo o que Jesus ensinara. Os apóstolos foram habilitados a testemunhar e interpretar Jesus, precisamente porque eles haviam recebido oparákletos. Este permanece com todos aqueles que amam a Jesus (Jo 14:17), mesmo depois do desaparecimento das testemunhas oculares. Assim, a morte do último apóstolo não quebra a corrente entre Cristo e a Igreja, porque o parákletos, que havia ensinado aos primeiros apóstolos, continua com a Igreja, para guiá-la em toda a verdade, e permanece com as contínuas gerações de discípulos. Oparákletos é o verdadeiro vínculo entre a Igreja e Jesus Cristo. João enfatiza que a função de ensino doparákletos não envolve nada novo, como observado acima; entretanto, isto não significa mera repetição. O papel do Espírito-parákletos é reinterpretativo, tornando Jesus contemporâneo para as sucessivas gerações de discípulos37.

 

O segundo problema que o conceito do parákletos joanino responde é a questão da demora daparousia. Na conclusão do Evangelho de João (Jo 21:18-23), Pedro, em diálogo com o Cristo ressuscitado, face à sugestão do tipo de morte que ele sofreria (v. 18-19), vendo o “discípulo amado”, pergunta ao Senhor: “e quanto a este?” (v. 21). Jesus, como em outras circunstâncias, repreende a curiosidade quanto ao futuro, formulando uma pergunta hipotética “[e] Se eu quero que ele permaneça até que eu venha, que te importa?” (v. 22). A frase “até que eu venha”, implica um evento futuro, juntamente com a possibilidade de que este evento (a parousia) aconteceria dentro do período de vida de João. O verso 23 acrescenta uma frase chave: “Então se tornou corrente entre os irmãos o dito que aquele discípulo não morreria.” Isto fortemente sugere um quadro da Igreja no final do primeiro século, convivendo com os evidentes sinais da proximidade da morte de João, sem o cumprimento do esperado retorno do Senhor.38

 

Assim, como R. Brown observa, “a ênfase joanina no Espírito-parákletos como a presença de Jesus é a resposta do evangelista ao desencorajamento acerca da demora do segundo advento”39. O apóstolo indica que a aparente demora da parousia não deveria gerar solidão ou desencanto, uma vez que Jesus já está presente com seus seguidores na pessoa do parákletos. Isto não significa negar o cumprimento futuro do advento de Jesus, mas assegurar que, enquanto os cristãos aguardam este glorioso evento, eles não precisam ser vítimas do pessimismo escatológico, ou gastarem suas energias em expectativas especulativas. Ao contrário, eles devem ser confortados pelo parákletos, o qual traz Jesus a eles. Desta maneira, combinada com outros aspectos de uma escatologia parcialmente realizada no quarto evangelho, a ênfase no parákletos sugere aos cristãos a permanente certeza da presença de Jesus com eles. Ellen White belamente sumariza esta ênfase: “O Espírito Santo é o Consolador, em nome de Cristo. Ele personifica Cristo”. Mas desfazendo qualquer confusão quanto à pessoa do parákletos, ela afirma: “Contudo, ele [o parákletos] é uma personalidade distinta.”40

 

Sumário e conclusões

 

Qualquer que seja a origem final do termo parákletos, as linhas principais de interpretação do conceito são estabelecidas pelo próprio João no evangelho, e são suficientemente claras. Tais linhas de interpretação são perceptíveis se sumarizarmos as características do parákletos no quarto evangelho como as estudamos, e então considerarmos a forma com que João descreve como Jesus introduziu Suas promessas acerca deste Personagem:

 

Em João 14:15-17, descobrimos que: (1) Jesus intercederá junto ao Pai e o Pai concederá outroparákletos; (2) este outro parákletos estará com os discípulos para sempre, em aparente contraste com Jesus, que agora os está deixando; (3) o outro parákletos é o Espírito de Verdade; (4) o mundo não O vê ou conhece; (5) mas os discípulos O conhecem, pois Ele permanece com eles (cf. 20:22); (6) oparákletos é o Espírito Santo (Jo 14:25 e 26); (7) Ele ensina os crentes todas as coisas e (8) trará à lembrança dos discípulos tudo o que Jesus ensinou; (9) o parákletos dá testemunho de Jesus (Jo 15:26-29); (10) quando o parákletos vier, Ele acusará, julgará, e condenará o mundo (Jo 16:5-11); (11) o parákletos não falará de Si, mas glorificará a Jesus, dando testemunho dEle (Jo 16:12-15); e, finalmente, (12) Ele ensinará aos crentes as coisas vindouras. Deste esboço, e daquilo que discutimos ao longo deste artigo, é claro que o parákletos, embora Se pareça com Cristo e esteja intimamente ligado a Jesus, é um outro consolador, cuja função principal é continuar a obra de Cristo, não podendo ser confundido quer com Jesus, quer com o Pai.

 

Outro aspecto observado é a clara convergência e identificação entre o Espírito e o parákletos. Embora as cinco passagens que tratam do parákletos no quarto evangelho possam ser consideradas uma unidade, quando tomadas em conjunto, tais passagens são também consistentes com outras referências ao Espírito nos evangelhos sinóticos e livro de Atos. Particularmente Mateus 10:20 (“visto que não sois vós quem falais, mas o Espírito do vosso Pai é quem fala em vós”), e Marcos 13:11 (“Quando, pois, vos levarem e vos entregarem, não vos preocupeis com o que haveis de dizer, mas o que vos for concedido naquela hora, isso falai; porque não sois vós os que falais, mas o Espírito Santo”), identificam a ajuda que seria dada aos discípulos quando eles testemunhassem de Jesus em contexto forense, e fizerem sua defesa em corte, em termos idênticos à ação do parákletos descrita no quarto evangelho.

 

Sobretudo, este artigo, de certa forma, concentrou-se no relacionamento entre Jesus e o parákletos, pois é precisamente aqui que descobrimos a chave para o caráter crucial da missão dEle no evangelho joanino, respondendo questões cruciais enfrentadas no final do primeiro século, mas com projeções para toda a era cristã, até o final dos tempos. Não é, portanto, acidental que a primeira passagem contendo a promessa de Jesus quanto ao parákletos (Jo 14:16), seja seguida imediatamente pelo verso no qual Cristo afirma: “Não vos deixarei órfãos, voltarei para vós outros” (v. 17-18). Jesus “retorna” para os discípulos por meio do Espírito-parákletos, que é enviado para permanecer com eles, depois que Jesus parte. Isto constitui a contribuição joanina quanto ao Espírito Santo: o parákletos continua, no período pós-ressurreição, reatualizando a presença de Jesus com e na Igreja, por meio da era cristã, até o fim dos tempos. É precisamente a presença do Espírito-parákletos que impede que a Igreja se torne órfã, desconectada do seu divino fundador. É precisamente Ele que impede que os cristãos se tornem poços de água estagnada.

 

O que é então o parákletos nas passagens do quarto evangelho? Ele é o Espírito Santo, investido da função específica de continuar a presença de Cristo com os Seus discípulos. Ele não é meramente a operação do poder divino no homem. Ele é uma pessoa. Uma pessoa distinta, mais explicitamente afirmada no evangelho de João do que em qualquer outro lugar do Novo Testamento. Uma pessoa distinta do Pai, pois, como vimos, Ele é enviado pelo Pai (Jo 14:26), e como a lógica básica exige, ninguém envia-se a si mesmo; dado pelo Pai (14:16) e procedendo do Pai (Jo 15:26). Distinto do Filho, pois Ele é enviado “em nome do Filho”(Jo 14:26), enviado pelo Filho (Jo 15:26), recebendo o que é do Filho (Jo 16:14), e é um “outro parákletos” (Jo 14:16). Não há também qualquer dificuldade real quanto à Sua personalidade. Ele não é meramente um dom impessoal ou poder abstrato, um fôlego, nem é Ele uma metáfora a respeito de Jesus. Ele é uma pessoa real, tão real quanto o próprio Cristo, cuja presença na vida da Igreja, era e continua sendo, tão crucial e crítica, a ponto de o próprio Jesus afirmar, com Sua fórmula de introduzir questões solenes: “Mas eu vos digo a verdade: convém que Eu vá, porque, se Eu não for, o Consolador [parákletos] não virá para vós outros” (Jo 16:7).

 

O que poderia ser mais importante para os discípulos do que a presença de Cristo com eles? Difícil como isto possa parecer, aqui Jesus ensina claramente que a vinda do parákletos era mais vantajosa para Seus seguidores no período pós-cruz e ressurreição, do que a presença dEle mesmo. Assim, contrariamente às teorias antitrinitarianas, antigas e modernas, em relação ao Espírito Santo, não estamos diante de uma questão superficial, uma luxúria interessante, mas dispensável e de importância secundária, sujeita às especulações infundadas de teologias precárias. A crucial importância do Espírito Santo para a Igreja pode ser percebida quando deixamos os evangelhos e entramos no livro de Atos, e testemunhamos aí a realização daquilo que Jesus profetizara do parákletos. Aqui entramos num novo mundo e sentimos o sopro de uma brisa nova. Nas palavras de J. Ritchie Smith, “em uma única hora, o Espírito operou nos discípulos a transformação que três anos de comunhão com Jesus não tinha efetuado”41. Seria, então, incompreensível que Jesus tivesse dito: “É para a vossa vantagem que Eu vá…”? Seria incompreensível por que o Espírito Santo seja vital para a Igreja hoje, como foi no passado? Ou, seria difícil entender por que Satanás está tão ativo, confundindo cristãos e obscurecendo a compreensão deles sobre a pessoa e obra do Espírito Santo?

 

Finalmente, os cristãos não crêem na Trindade em função de qualquer dogma inventado pela tradição ou concílios da Igreja. Da mesma maneira que eles não descrêem dela porque vozes confusas e mal-informadas surgem com “fogo estranho” no altar do Senhor. Além de nossa lógica fraca e razão finita, não dizemos, irracionalmente, que cremos em três deuses e um deus, ou, em três pessoas e uma pessoa, mas, logicamente, afirmamos que a Bíblia ensina um único verdadeiro Deus em três Pessoas divinas: Pai, Filho e o Espírito Santo. Somos exortados a crer no que Deus nos revela em Sua Palavra, mesmo que não possamos entender isto plenamente, aqui e agora. Assim, se por um lado não ousamos crer mais do que aquilo que nos foi revelado, por outro lado, não nos atrevemos a aceitar menos do que aquilo que nos é ensinado nas Escrituras. Nossa consciência

 


 

Referências

 

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