O ESPÍRITO HUMANO pode nascer de novo?
Quando Deus formou o homem, colocou-o “no jardim do Éden para o cultivar e o guardar”(Gn 2.15). Deu-lhe o Senhor domínio sobre todas as coisas, bem como uma liberdade quase irrestrita para se servir do seu habitat. Disse-lhe, então: “De toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore da ciência do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás” (id.,ibid., 2.16-17).
Pactuando com sua mulher, o homem desobedeceu à ordem veementemente expressa. Em consequência, recebeu a punição anunciada – a morte! E a transmitiu a todos os seus descendentes. O apóstolo Paulo refere-se a esse trágico acontecimento, instruindo os cristãos de Corinto: “todos morreram em Adão” (1 Co 15.22).
Mas, como terá ocorrido a morte de Adão e, ainda, a de toda a sua descendência, potencialmente viva em suas entranhas – no dia em que esse primeiro homem transgrediu? Pois ele ainda permaneceu na terra durante novecentos e trinta anos para, então, morrer (Gn 5.5). Que morte terá sido essa?
Vejamos. Deus fez “o homem do pó da terra e soprou em seus narizes o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente” (id.,ibid.,2.7).
Conforme o relato bíblico supratranscrito, Deus formou o espírito do primeiro homem, colocando dentro desse homem o Seu sopro – energia inextinguível, chama de vida procedente da boca do Criador. Tal substância imaterial e incorpórea tomou a forma do ser físico do homem, já “nascido” adulto e resultado de um contexto existencial pleno de graça, único. Está escrito: “Fala o Senhor, o que estende o céu, e que funda a terra, e que forma o espírito do homem dentro dele” (Zc 12.1b).
Assim, a perfeita harmonia do corpo, feito do pó, com o espírito, vindo de Deus, mas conformado à semelhança do corpo – sustentava a unidade do homem, possuidor da vida eterna. Vida compartilhada com o seu Pai celestial.
Ao cair da graça, porém, pela desobediência ao Senhor, o homem perdeu a harmonia que interligava o espírito e o corpo, compondo a integridade do ser perfeitamente uno em sua destinação eterna.
O corpo tornou-se perecível – “és pó, e em pó te tornarás”(Gn 3.19b) –, e o espírito conservou a perenidade, mas perdeu a vida de Deus. Ou seja, o espírito ficou na condição de um corpo permanente, indestrutível (pois, “Se há corpo animal, há também corpo espiritual”, 1Co 15.44b), porém, destituído da chama da vida divina; portanto, incapaz de comungar com o Espírito eterno. Tornou-se um corpo morto, como um pavio que apenas fumega, um pavio sem luz.
Importa considerar-se que foi concedida a Adão – macho e fêmea (Gn 1.27), isto é, ao primeiro casal, a competência para reproduzir-se multiplicadamente (id.,ibid.,1.28). Entende-se, pois, que todo o processo de formação do ser humano – processo inaugurado por Deus – foi confiado a Adão e à sua descendência. Coerentemente, não só o corpo material, mas a essência espiritual que se transformará em espírito, dentro de cada um, são passados dos pais a seus filhos.
Então, o espírito que se constrói, no processo de constituição de cada pessoa, é o espírito adâmico. É o ente indestrutível, repetimos, mas esvaziado da vida original, da vida de Deus. É o espírito morto, que precisa de nascer de novo.
Mas, nascer de novo, como? Reencarnando-se?
Não! Esse foi o entendimento de Nicodemos, membro ilustre do então supremo tribunal judaico, quando Jesus lhe disse: “Na verdade, na verdade te digo que aquele que não nascer de novo não pode ver o reino de Deus” (Jo 3.3). Nicodemos pensou que Jesus falasse de reencarnação. Em face disso, o Senhor corrigiu-o, dizendo: “O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito”. E o repreendeu-o com veemência: “Tu és mestre em Israel e não compreendes estas coisas?” (id., ibid.,3.10).
A legítima doutrina cristã é incisiva ao afirmar que o renascimento do espírito humano não acontece mediante o seu retorno à terra, assumindo, sucessivamente, outros corpos, isto é, reencarnando-se. Mesmo porque isso é impossível! O espírito de uma pessoa é parte integrante e intransferível do ser dessa pessoa; portanto, somente dela! É a feição imortal da sua identidade, a qual se compõe do corpo, da alma e do espírito – trindade essa que, dissociada temporariamente pela morte física, será reconstituída pela ressurreição da carne (Jo 5.28-29; Dn 12.2).
Ou seja, o espírito retomará o seu próprio corpo, reconstituído, transformado. “A trombeta soará, os mortos ressuscitarão incorruptíveis” (1Co 15.52). Se assim não fora, ninguém seria, de fato, alguém. O ser humano não passaria de transitórios ensaios-de-ser enredados em circunstâncias existenciais diversas e adversas. Por princípio de coerência, o nascer de novo do espírito consiste num processo sobrenatural de recuperação da vida divina perdida nas origens, e não em uma experiência carnal de ir e vir, de corpo em corpo.
Foi essa a suma razão pela qual Jesus Cristo, o Filho unigênito de Deus, veio a este mundo: a fim de dar oportunidade ao homem para recuperar a vida que eterniza o espírito na plena comunhão com Deus. Vida maiúscula. Ele disse: “Eu vim para que tenhais vida, e a tenhais com abundância” (Jo 10.10). E ainda: “Porquanto a vontade daquele que me enviou é esta: que todo aquele que vê o Filho, e crê nele, tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia” (id.,ibid., 6.40).
Desse modo, é pela sincera aceitação do Verbo de Deus, tornado carne humana, que o homem recebe a semente divina (Semen est Verbum Dei), capaz de re-generar, ou seja, de gerar de novo a vida de Deus no espírito amortecido dele, fazendo-o renascer.
O apóstolo Pedro, indouto pescador da Galileia, entendeu isso claramente. E, com propriedade, afirmou aos cristãos: “Sendo de novo gerados, não de semente corruptível, mas de incorruptível, pela palavra de Deus, viva, e que permanece para sempre. […] E esta é a palavra que entre vós foi evangelizada” (1Pe 1.23 e 25b).
Também Paulo, reiteradamente, enfoca essa relevante questão concernente ao espírito humano – morto, naturalmente, e vivificado, isto é, tornado à vida pela obra sacrificial de Cristo. Diz o Apóstolo, dirigindo-se aos cristãos de Éfeso: “E [Deus] vos vivificou, estando vós mortos em ofensas e pecados” (Ef 2.1). E continua: “Desperta, tu que dormes, e levanta-te dentre os mortos, e Cristo te esclarecerá” (id.,ibid., 5.14)
Do que se expôs, conclui-se que todo ser humano tem a necessidade imperiosa de buscar o renascimento do seu espírito. Só assim, sairá da condição de mera criatura, a que foi relegado, e readquirirá a posição de filho de Deus (Lc 3.38), com direito ao Reino do Pai. João fala magistralmente disso, na abertura de seu Testamento Evangélico:
Veio [Jesus] para o que era seu, e os seus [judeus] não o receberam. Mas, a todos quantos o receberam, aos que creem no seu nome, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do varão, mas de Deus (Jo 1.12.13).
Por conseguinte, a coisa é séria. Muitíssimo mais do que se possa pensar. Haja vista a severidade do Senhor Jesus com Nicodemos que, embora sendo um homem culto, não soube discernir a diferença entre renascer da carne, isto é, repetir a experiência de ser filho do ser humano, e renascer do Espírito, isto é, recuperar a situação original de ser filho de Deus, felicidade perdida por e em Adão.
Em outras palavras, a vida do corpo – fôlego natural que anima a estrutura física, bem como essa estrutura mesma – provêm do corpo-genitor humano; semelhantemente, a vida do espírito – fôlego divino que anima o corpo espiritual, adamicamente exânime – provém do Espírito-Pai, Deus. Por isso, Paulo afirma: “Somos feitura sua [de Deus], criados em Cristo Jesus” (Ef 2.10). Assim, o espírito que nasceu, isto é, que passou a existir – formado pelo processo gerativo originalmente intermediado por Adão – precisa de ser reconduzido às origens celestiais.
Precisa de nascer de novo. Como ensinou Jesus: “nascer da água e do Espírito”(Jo 3.5). Entenda-se: à luz do contexto neotestamentário, trata-se da experiência de render-se ao convencimento da Verdade divina, obra do Espírito Santo (Jo 16.8), e passar pelas águas do batismo, na confissão da fé cristã e arrependimento dos pecados. (Mc16.16; At 2.38; 8.36-38; 9.18, etc.). E isso é simples, gratuita e maravilhosamente possível mediante o processo re-generativo intermediado, com exclusividade, pelo último Adão (1Co 15.45), Jesus Cristo.
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Maria Helena Garrido Saddi, professora doutora da Universidade Federal de Goiás, membro da Catedral Evangélica Hebrom – hgsaddi@gmail.com
A Graça e a Paz do Senhor Jesus Cristo,
Moacir Neto