Por François Silvestre
O poder é o matadouro das ideologias. Nenhuma delas, até hoje, resistiu aos “encantos” e chamamentos das sereias. Não aquelas de Antemusa, defronte do Promontório da Lucárnia, quando entoavam sons irresistíveis, sob o comando de Agláupe, Teoxíope e Partênope, levando ao fundo do mar os marinheiros seduzidos.
Odisseu, de Ítaca, foi o único que viveu para contar a força de atração do canto terrível e belo. Para isso, mandou seus remadores taparem os ouvidos com cera. Antes, determinou que eles os amarrassem ao mastro principal da embarcação.
Ao passarem por Antemusa, os marinheiros estavam protegidos pela surdez forçada. Não podiam ouvir o canto das sereias nem as ordens de Odisseu, que gritava mandando que o soltassem.
E assim Ulisses, denominação latina do rei de Ítaca, pode escapar, mesmo tendo ouvido o lamento canoro, que naufragava os homens ante a força do desejo.
Iguais às ideologias. Navegam em mar de planície até que ouvem, não do fundo do mar, mas do cume do planalto o canto irresistível do poder. Nenhuma delas saiu ilesa dessa conquista. Morre ou sobrevive mutilada.
A primeira etapa dá-se com a constatação de que o poder não contempla escrúpulos. Nenhuma forma de poder sustenta-se sem a correnteza da lama. Daí vai às concessões. A etapa seguinte é o preparo da negação de princípios. Há todo um discurso justificador da troca de máscaras. Depois, já cooptada, a ideologia deixa-se possuir não só pelo encanto, mas pelo prazer que o poder oferece; na cópula, ela se deixa estuprar.
Assim foi com o marxismo-leninismo. Durante Lênin, o mundo viu a separação de polos. Uma divisão bem marcante. Pela primeira vez o capitalismo enfrentava sua face antagônica. Que prometia superá-lo, esgotar as relações de exploração e criar relações de igualdade, com o fim do Estado. O sonho do comunismo.
Aí vem o Stalinismo. O pesadelo escorraçou o sonho. A ideologia virou terror e deu ao capitalismo, indevidamente, a bandeira das liberdades fundamentais. Dando ao liberalismo a chance de transformar-se no “novo”. Agora era o Estado capitalista liberal contra o Estado soviético militarista. Ditaduras à direita e à esquerda. “Democracia” ou “socialismo”, no mesmo estuário da mentira. Diferença só na nomenclatura.
Se considerarmos o petismo uma ideologia, chegaremos à mesma conclusão. Foi o petismo, ideologia da pureza, a lambuzar-se no úbere do poder. Cooptado, não apenas aliou-se. Assumiu o comando e ampliou a sujeira da prática.
É assim que o poder consome a ideologia. Luta contra ela até à exaustão. Ao perder o embate, deixa-a acomodar-se ao prazer do acúmulo. Também à exaustão. O resultado é a deformação do espírito ideológico; para depois, feito tigre faminto, devorar-lhe a carne.
Té mais.
François Silvestre é escritor
* Texto originalmente publicado no Novo Jornal.
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