Por Cintra Beutler
O hipócrita, o mau caráter e o cínico, consideram que para combater aquilo que consideram o mal, segundo a sua ótica, qualquer expediente é válido. Não importa se, para curar a unha encravada, se arranque o dedo.
Fato é que qualquer coisa, some-se aí interesses mil, disputa pela vacância, enfim, qualquer outro pretexto, exceto a moralidade, o combate à improbidade, ou outra justificativa convenientemente usada, é o que move os defensores e os condutores do impeachment nesse momento.
Ingênuos, talvez, aqueles que enxerguem crime digno de impedimento nas tão propaladas pedaladas. A exacerbação do conceito de crime de responsabilidade atribuído ali, discutível e questionado por muitos juristas, inclusive aqueles que não apoiam Dilma, só mostra o quanto forçada é a justificativa para o impedimento.
Hoje, o que respalda o impedimento de Dilma é mais uma saída combinada, uma senda que foi aberta por um criminoso contumaz e inequívoco, um bandido do quilate de Eduardo Cunha.
Talvez não seja um argumento dos mais válidos afirmar que o processo de abertura do impedimento menos válido pelo fato de ser conduzido pela figura nada simpática de Cunha. Outro dia li um daqueles discursos palatáveis, típicos de um Arnaldo Jabor, que se um traficante denuncia à polícia um estupro de uma vizinha, a denúncia não se torna inválida, pelo fato de ter sido oferecida por um bandido. Tão bom e fácil de se aceitar quanto falacioso, pois tal comparação oferece somente um espantalho ao que realmente ocorre. Mas esse fato por si só evidencia que o que há por detrás desse processo não é nada além de jogo de interesses.
Também não ajuda muito afirmar que Dilma é isenta do que ocorre no país, econômica e politicamente. O caminho não é por aí. Pode-se questionar sua competência como estadista, como condutora do país, mas não a sua probidade.
Quanto ao impedimento, é claro que não se questiona a letra da lei, o texto tomado friamente, o mecanismo presente na Carta Magna. É bom lembrar que, dentre outros parágrafos, a Constituição não entra no mérito do impeachment ser usado como instrumento de chantagem. Não oferece mecanismos de defesa contra quem o usa como manobra para subverter o Estado Democrático de Direito a interesse próprio e contra aqueles que, se valendo da brecha de definição mais formalmente definida, usam um pretexto enfeitado para levar a cabo um golpe travestido de legalidade.
Vamos a algumas perguntas pertinentes:
– Acaso teríamos algum questionamento quanto às tão propaladas pedaladas caso Aécio Neves as tivesse usado como alternativa? Lembrando que essa manobra não é exatamente uma novidade, mas somente agora neste mandato ela enseja um processo de impedimento;
– Acaso Dilma tivesse sobre si os mesmos indícios de ilegalidade e improbidade que pesam sobre Aécio Neves, não seriam motivos muitíssimos mais graves para que sua saída fosse pedida com muito mais respaldo? Verdade é que, não encontrando nada que a desabonasse pessoalmente, a saída foi encontrar a custo um caminho incomum e inesperado que viabilizasse o processo de impeachment.
Relevante também salientar, especialmente àqueles que amam invocar a Constituição para justificar qualquer manobra, que, embora as regras ali estejam bem definidas, ela parte do pressuposto da honradez de princípios dos 3 poderes, aqueles fundamentais, onde não somente o chefe do executivo seja colocado na berlinda. E, fundamentando o uso da possibilidade de impeachment, ele só existe como instrumento diante de eventuais abusos do chefe de Estado. E, convenhamos, não mais que um improviso nas contas, é preciso esforço ou hipocrisia para enxergar alguma tentativa de excesso ou de desmando por parte dela.
Caberia, pois, ao povo, a restituição da normalidade. Ocorre que, simultaneamente, temos aí uma imprensa de massa a relatar os eventos na direção que a ela é conveniente. Não de agora, a mídia, em virtude do poder da credibilidade que adquiriu, do alcance, da abrangência e da capilaridade que possui, tem se portado de maneira unilateral e forçando o debate acalorado, constrangendo e abrindo ainda mais o abismo entre os opostos, alimentando o maniqueísmo presente nos dias de hoje.
Assim, todas as referências oferecidas ao povo estão embotadas, maculadas, forjadas de fora, de modo que as noções de licitude, de moralidade, de republicanismo, além das figuras que merecem o escárnio ou o louvor, foram ditadas por essa mesma imprensa. Ela, em última análise, escolheu quem seriam os vilões e os mocinhos no cenário político.
Não se poderia esperar outro resultado senão esse: o “povo”, constituído por aqueles que não tiveram outra versão dos fatos além do que via, lia ou escutava da grande imprensa, é o que ditará os próximos passos que poderão destituir Dilma do cargo.