Por J. Carlos de Assis
Vale suspender por um minuto a discussão da crise brasileira para gastar esse tempo numa avaliação da cobertura pela TV Globo do recente atentado em Paris. Um repórter baseado em Nova Iorque afirmou de forma categórica que a Rússia atacava apenas os dissidentes do Governo sírio. Na quinta-feira, o jornal Globo atribuiu à “coalizão”, e não à Rússia, os ataques às bases financeiras do Estado Islâmico, ou seja, à frota de caminhões transportadores de petróleo. No contexto geral da cobertura, a minimização do papel crucial que a Rússia está desempenhando na luta contra os terroristas é escandalosa.
A que se deve essa interpretação dos eventos mundiais de forma enviesada, servida quase toda a noite aos telespectadores brasileiros? Evidentemente, parte disso corresponde à imbecilidade dos jornalistas da Globo que ainda se encontram no marco da Guerra Fria. Contudo, há algo mais profundo. A vassalagem da Globo aos interesses geopolíticos norte-americanos reflete a incapacidade de avaliar nossos próprios interesses prospectivos, hoje muito mais ligados à Ásia do que aos Estados Unidos e à Europa. É algo que não vale só para os banqueiros, por sua conexão íntima com o sistema financeiro especulativo ocidental.
Do lado da Rússia temos os BRICS. Dentro dos BRICS a China. Esta é o maior importador de commodities do Brasil e um grande financiador, e pode tornar-se maior ainda caso a administração brasileira comece a governar. Na vinda do primeiro ministro Li Keqiang ao Brasil, foi-nos oferecida uma linha de crédito de 50 bilhões de dólares, através da Caixa Econômica Federal, que até agora não foi usada. Considerando a disposição de outros grandes bancos chineses de financiar empresas brasileiras (a Petrobrás que o diga), não precisamos dos bancos ocidentais com suas taxas escorchantes e suas invasivas agências de risco.
Por que, então, a rede Globo menospreza a Rússia, nosso parceiro no BRICS, em favor dos Estados Unidos, cujo principal produto que nos tem fornecido é o dos economistas neoliberais que ditam as regras para que façamos o melhor ajuste fiscal do mundo? Claro, devido à forte posição russa na defesa da legitimidade do Governo Assad, na Síria, que resiste a ter o mesmo destino que os Estados Unidos reservaram para a Líbia, os neoconservadores norte-americanos querem a todo custo atrair os russos para uma guerra fora de seu território. Na própria Rússia não dá, porque é uma potência nuclear. Mas poderia ser na Ucrânia ou Síria, para o que seria importante subtrair da Rússia um parceiro econômico como o Brasil.
O que embaraça os norte-americanos é que perderam o controle de sua criatura, ou seja, o Estado Islâmico, por eles financiado contra o Governo legítimo da Síria. Com isso, estão sendo forçados a aceitar a colaboração da Rússia, através da França, para atacar o grupo terrorista. Esse embrulho geopolítico é demais para os comentaristas da Globo, aliados ideológicos da CIA e de outras agências de informação e de manipulação da opinião pública que os alimentam de notícias nos EUA. Ah, a Globo chama Assad de ditador. Será que ele é mais ditador que a monarquia da Arábia Saudita, criada pelas potências ocidentais, e que mantém seus súditos, e sobretudo suas súditas, em regime de total opressão?
Se a Globo quiser ser imparcial na cobertura internacional, seria importante que abrisse sucursal em Moscou, muito mais importante para nós, sob o aspecto econômico e político, do que Londres ou Paris, potências de segunda classe. Afinal, a Rússia é a segunda maior potência militar do mundo, e os fatos na Síria (como, antes, na Criméia e na Geórgia) indicam que é melhor levá-la a sério.
José Carlos de Assis é economista, doutor em Engenharia de Produção, autor do recém-lançado “Os Sete Mandamentos do Jornalismo Investigativo”, ed. Textonovo, SP.