Está todo mundo inseguro, com medo, e também revoltado de um assassino ser tratado praticamente como herói. Quem não tem medo de polícia hoje?”
O desabafo é da ambulante Claudiane Silva Lopes, de 31 anos, viúva pelas mãos de um policial militar há uma semana. Ela trabalha na rua 12 de Outubro, em uma região de comércio popular no bairro da Lapa, zona oeste de São Paulo, e perdeu o marido, o também ambulante Carlos Augusto Muniz Braga, de 30 anos, com um tiro na cabeça disparado pelo soldado Henrique Dias Bueno de Araújo, de 31 anos.
A reportagem do Terra voltou ao local da tragédia nessa quarta-feira, uma semana após o crime e dois dias depois de o soldado ter sido liberado da prisão preventiva por decisão da juíza da 5ª Vara do Júri do Foro Central Criminal de São Paulo, Eliana Cassales Tosi de Melo.
A data marcou também a volta de Claudiane ao local – não a trabalho, mas em busca de amigos que indicassem a ela um advogado.
Ao contrário do que a magistrada observou na sentença que liberou o PM, ao acatar a tese de que o disparo foi acidental e que Araújo não tem maus antecedentes, a ambulante afirmou que em blitze anteriores o mesmo policial teria agido de maneira violenta não apenas com o marido, mas com outros ambulantes da “correria” – apelido dado aos que, sem bancas fixas, correm assim que chega a fiscalização ou a PM. Ela e outros ambulantes se disseram revoltados com a sentença, e, ao mesmo tempo, receosos de retaliações, já que imagens feitas com celulares de ambulantes tornaram público, na internet, o assassinato.
“A gente precisa que mude o comportamento desses policiais. Alguns trabalham direitinho, é verdade, mas outros agem transtornados demais, sem respeito algum. Não entendo como uma juíza solta um sujeito que já matou um mendigo – uma pessoa sem chance de defesa – e, pouco tempo depois, mata outro, que levava o pão para as filhas todo dia. A vida da gente é nada, me sinto um lixo. Mas essa juíza deixou o lado humano de lado. E se um parente dela tivesse sido morto com um tiro na cabeça?”, questionou Claudiane.
O caso a que ela se referiu também veio a público após a morte do marido: o soldado Araújo é investigado pela morte de um morador de rua na Vila Leopoldina, na zona oeste, em março passado. Procurada há três dias para informar se a investigação sobre esse caso, na Corregedoria, foi concluída, a PM não respondeu.
Mãe de três filhas, Claudiane disse que a família se preparava para voltar para Simplício, no Piauí, de onde migrou há dez anos. O objetivo do retorno: ele assumiria um posto de assistente administrativo conquistado em um concurso público que, por pouco, não caducara. A família não só não regressou, como ela, sem dinheiro e com o documento de identidade extraviado, não conseguiu viajar para o enterro de Braga.
Claudiane disse que a família se preparava para voltar para Simplício, no Piauí, de onde saiu há dez anos, para que Braga assumisse um cargo de assistente administrativo conquistado em um concurso público prestado há anos. “Ele era muito inteligente, gostava de ler, de escrever, e estávamos nós dois aqui tentando dar para nossas filhas a vida que não tivermos – eu, mesma, estudei só até a segunda série (do ensino fundamental). Ele estava indo buscar nossa filha de nove anos na escola quando passou pela blitz”, disse, e mostrou o livro que o marido terminou de ler antes dela: “Nunca desista dos seus sonhos”, do psiquiatra Augusto Cury.
A ação dos PMs, participantes da Operação Delegada – espécie de bico oficial pago pela Prefeitura –, acontecia por volta das 16h30 do último dia 18 para o combate à venda de produtos piratas. A confusão começou quando, de acordo com as imagens feitas pelas testemunhas, um ambulante foi rendido e jogado ao chão por três policiais. Mirando com uma arma na mão o homem rendido, o soldado Araújo atirou quando o marido de Claudiane tentou tirar da outra mão do PM um spray de pimenta. No revide, levou um tiro na cabeça.
Além da viúva do ambulante, outros colegas de trabalho do rapaz se disseram revoltados ou receosos com a decisão judicial que libertou o PM. Nos pedidos de entrevista, por sinal, foram vários os pedidos para que a conversa se desse fora do alcance dos policiais que rondam a área agora não mais em duplas, mas em grupos de quatro ou cinco.
“Eles (policiais) são truculentos com os ambulantes e não é de hoje, especialmente com o pessoal da correria. Desde que mataram esse colega nosso, agora tem vezes em que as fiscalizações de mercadorias chegam acontecer quatro vezes por dia; coisa que não ouvíamos, sobre um suposto padrão de tamanho para as barracas, agora é algo que volta e meia repetem aqui”, relatou um ambulante de banca, sob a condição de anonimato.
“Todo dia, desde o tiro, fico com isso na cabeça e não durmo direito”, relatou, também sem revelar a identidade, um ambulante que era amigo do rapaz assassinado. “Caí no choro quando vi um amigo meu ser morto na minha frente. Eles não gostam de nordestino, a gente sabe disso, eu mesmo já perdi as contas de quantas vezes fui humilhado nessas blitze”, afirmou o comerciante, há 15 anos na região.
Ambulante na rua 12 de Outubro há oito anos – a banca dele fica exatamente em frente ao local do tiro –, Edmílson Rosa Marques, de 45 anos, considerou a liberação do PM “uma coisa assustadora”. “Por mais que tenha sido acidente, como se alega, uma pessoa dessas não podia ser solta tão rapidamente, não é? Ainda mais que esse PM estava tão exaltado”, observou.
Jovem rendido fala sobre abuso de autoridade
Antes de sair, a reportagem topou com um rapaz que entregava pequenas folhas de sulfite, cortadas em quadrados pequenos, com uma mensagem. Abatido e abordado com um abraço e a pergunta meio geral de “Como anda, filho?”, Izaías de Carvalho Brito, 24 anos, chamava os colegas da região para um ato, mais tarde, após o expediente, em homenagem ao colega morto. Havia sido ele o ambulante rendido que Braga tentara defender.
“Ninguém aqui está na rua para ficar rico. Trabalha porque precisa pagar aluguel, comida. Não fiquei nem tão surpreso de ver que esse PM foi solto, e sim de saber que ele já tinha matado um morador de rua – a justiça não vale para essas pessoas?”, indagou.
Segundo o jovem, que disse não ter ainda encontrado condições de voltar à ativa, ele apanhou do soldado antes de ser derrubado ao chão – o que teria despertado a indignação de colegas que sequer ficavam naquele ponto da 12 de outubro, como era o caso de Braga.
“Já apanhei desse mesmo soldado, e naquele dia, quando ele me rendeu, me xingava de vagabundo, ‘nóia’, ladrão. Não é segredo para ninguém aqui na região que os PMs desrespeitam ambulante e correm atrás, para pegar mercadoria, com arma em punho, dando tapa na cara da gente – eu mesmo já registrei boletim de ocorrência por abuso de autoridade, mas a coisa não melhora”, constatou.
Fonte: Terra