Blog do Levany Júnior

GUAMARÉ RN-Leve Leite: como a subnutrição intelectual ataca a subnutrição orgânica

Leve Leite: como a subnutrição intelectual ataca a subnutrição orgânica

O espanto do presidente do Banco Mundial Jim Yong Kim, com a destruição, no Brasil, de políticas sociais bem sucedidas, é recorrente nos círculos mundiais envolvidos com a questão da miséria.

Nesse processo de demolição, há a inegável contribuição dos jornalões, e sua acachapante dificuldade em tratar de temas contemporâneos com um mínimo de profundidade. Na era rápida da Internet, das opiniões fluidas e das ideias encapsuladas, cria-se uma miscelânea conceitual, muitas vezes um simulacro de intelectualismo, com algumas expressões da moda a serviço de nenhum raciocínio, que contribui para a má imagem dos jornais nos círculos acadêmicos e para o trabalho de desmonte de políticas públicas bem sucedidas..

É o caso do artigo de título impactante (“Leve Leite é fóssil de teoria ultrapassada) de Vinicius Mota, na Folha de hoje. Ou se está diante de uma abordagem revolucionária, um artigo da Nature que acabou publicado pela Folha, ou de um caso típico de jornalismo fast-food.

A Pesquisa Nacional sobre Demografia em Saúde indicava, no Brasil, desnutrição crônica entre menores de dez anos, algo entre 8,1% e 27,3%.

A Conferência de Alma Ata, da Organização Mundial de Saúde, em 1978, apontava que a conquista da saúde exige a intervenção de muitos setores sociais e econômicos, além da saúde.  “A Promoção da Saúde na abordagem que resultou desse processo envolveria desde as ações desenvolvidas dentro do âmbito dos cuidados de saúde, até a execução de políticas saudáveis”, segundo dados do Ministério da Saúde em 2002.

Por essa ótica, o envolvimento da educação com saúde – através da merenda escolar, das refeições na escola, dos conceitos transmitidos para a família – é peça acessória, porém essencial no combate à desnutrição infantil.

Estudos acadêmicos – muito complexos para merecerem cobertura de jornal – indicam a desnutrição energético-protéica (DEP) como um dos principais problemas de saúde em países em desenvolvimento. Estima-se em 800 milhões de desnutridos crônicos em todo o mundo, dos quais 200 milhões de crianças moderadamente desnutridas e 70 milhões severamente desnutridas.

Segundo o trabalho “Desnutrição infantil: um problema a ser enfrentado”, de Roberto Porto Silva, da Universidade Federal de Minas Gerais (https://goo.gl/8iGhBe):

“O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), já em 1992, ressaltou que “existem abundantes evidências demonstrando que a desnutrição nas crianças menores de cinco anos pode comprometer irreversivelmente o desenvolvimento físico e mental da criança”, trazendo, portanto, a noção de que a desnutrição ultrapassa as influências físicas e chega ao âmbito psicossocial da criança (UNICEF, 1992, p. 60)”.

De que maneira Vinicius tratou o tema de tal relevância, para justificar a redução do Leve Leite pelo novo prefeito de São Paulo:

Leve Leite é fóssil de teoria ultrapassada

SÃO PAULO – O Leve Leite, cujo escopo foi agora reduzido pela Prefeitura de São Paulo, é um fóssil das teorias de combate à pobreza que prevaleceram na virada do século 20 para o 21. Elas culpavam a desnutrição pela chaga da renda baixa.

Sem as calorias mínimas necessárias, as pessoas não conseguem desempenhar um trabalho produtivo o suficiente para alimentar-se melhor no dia seguinte. Ficam, desse modo, presas numa arapuca que as condena à indigência vitalícia.

O desenvolvimento de teorias, especialmente no campo social, demanda tempo, análises, experimentos, levantamento estatísticos. Vinicius trata como “fósseis” todas as teorias que vicejaram até 17 anos atrás. Alvíssaras! E para tratá-las como fósseis, certamente está em linha com todas as teorias de corte, que sepultaram tão rapidamente a passagem do século 20 para o 21.

A teoria é elegante e inatacável, mas na prática poucas situações de “armadilha da pobreza” foram identificadas, mesmo nas regiões mais empobrecidas do planeta.

Uma teoria inatacável e fossilizada. 

Enquanto a renda dos mais pobres cresceu fortemente na Índia nas últimas décadas, o consumo de calorias per capita caiu. Numa pesquisa controlada no Quênia, famílias que receberam um incremento em sua renda não elevaram seu consumo de alimentos na mesma proporção.

O Leve Leite entrega… leite. Ele compara com políticas de renda que entregam… renda. E constata que só a renda, em si, não é suficiente para melhorar a alimentação, pois pode ser utilizada para a compra de outros bens. O que as teorias fósseis do final do século 20 dizem é que não basta renda, mas atuações focadas em alimentação e em educação alimentar. Que é justamente o que o Leve Leite se propõe. Como não se sabe de casos de crianças trocando leite por celulares, qual a lógica do argumento?

As ações mais eficazes de combate à pobreza, à luz do acúmulo sem precedentes de estudos desse tipo, parecem hoje mais associadas a intervenções contextualizadas de precisão. Que as crianças recebam profilaxia contra vermes na escola, que gestantes e filhos pequenos obtenham nutrientes, como ferro, vitais para o pleno desenvolvimento físico e intelectual.

Leve Leite nada mais é do que uma “intervenção contextualizada de precisão”, no palavrório sofisticado de Vinicius. Em lugar de leite, Vinicius propõe que gestantes e filhos pequenos obtenham nutrientes como ferro.  A única diferença do que existe hoje é que o Leve Leite entrega cálcio; e Vinicius propõe o ferro. Em vez de Leve Leite, Leve Ferro.

Nas políticas de largo espectro, reduzir as faltas de professores e agentes de saúde é crucial. Consagraram-se os repasses diretos de renda aos mais pobres, inclusive os que não condicionam o dinheiro a frequência escolar ou visitas ao médico. Saneamento é como sangue nas veias.

As mais abrangentes políticas de transferência de renda, como o Bolsa Fam[ilia, impõem contrapartidas, como a frequencia escolar das crianças. O que ele quis dizer com esse “consagraram-se” repasses sem contrapartidas? Certamente quis se referir, de orelhada, aos Benefícios de Prestação Continuada, criados pela Constituição de 1988, que amparam idosos miseráveis e miseráveis com deficiência. Como a condição básica para a criança tomar leite na escola é estar na escola, o argumento invocado por Vinicius – para combater o Leve Leite – não tem pé nem cabeça e apenas exige estômago de ferro e cálcio para ser absorvido.

O Brasil ainda tem problemas associados à etapa básica do desenvolvimento humano, mas seu principal desafio é a superação de uma outra armadilha, a da renda média. Nesse caso, infelizmente, teoria e prática coincidem ao apontar que a maioria das nações não consegue chegar ao estágio superior.

Apresente uma tese a ser defendida; inclua um conjunto de argumentos genéricos sem nenhuma relação com a tese a ser defendida; e encerre com um fecho genérico, sem relação nem com a tese nem com os argumentos intermediários. Pronto: tem-se um artigo profundo de jornal.

O trágico nessa história é que, no estágio atual de imbecilização da opinião pública, parte do público aceitará piamente que o Leve Leite é programa “fóssil”.

O que mais impressiona é a incapacidade de articulistas como Vinicius de pesar os impactos do que escrevem nos jornais na vida de milhares de pessoas. É como se tudo não passasse de um imenso rococó  literário.

 

 

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