Jornal GGN – No artigo a seguir os especialistas em economia e relações internacionais, Emilio Chernavshy e Rafael Dubeux, respectivamente, avaliam um dos objetivos centrais da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) encaminhada pelo governo interino ao Congresso que pretende limitar os gastos do Estado brasileiro, incluindo as áreas de Saúde e Educação. Para os pesquisadores, se consumada, a proposta poderá se tornar uma das medidas com maiores danos potenciais ao bem-estar social já tomadas num governo recente.
“Ao se afastar das práticas internacionais e adotar uma regra singularmente severa e inflexível dos gastos primários por um período especialmente longo, a proposta revela um outro objetivo, central, embora disfarçado: redesenhar o Estado para que a parcela do gasto público na renda nacional seja cada vez menor e, com isso, também cada vez menor sua capacidade de atuar reparando injustiças históricas e promovendo uma sociedade menos desigual”, pontuam.
Atalho para um Estado mínimo?
O governo interino enviou ao Congresso proposta que limita por vinte anos as despesas primárias da União em termos reais aos valores de 2016 com o objetivo declarado de reverter a médio e longo prazo o desequilíbrio fiscal do Governo Federal. A depender de seu desenho, a introdução de um limite ao aumento dos gastos pode de fato contribuir para uma melhor administração das finanças públicas, ao elevar a previsibilidade da política fiscal e evitar o aumento excessivo de gastos em momentos favoráveis que acentua o ciclo econômico.
Para isso, nos países em que existe, o limite para os gastos geralmente é definido de modo a compatibilizar sua evolução com a do crescimento do PIB ou, diretamente, da receita que deve custeá-los, ou da dívida pública que se pretende reduzir ou estabilizar. Quando definidos em termos reais, por outro lado, os limites se aplicam tipicamente a um período curto, que frequentemente equivale ao da legislatura, o que permite adaptar a política fiscal a choques adversos e a mudanças nas preferências da sociedade de forma clara e transparente.
Ao se afastar das práticas internacionais e adotar uma regra singularmente severa e inflexível dos gastos primários por um período especialmente longo, a proposta revela um outro objetivo, central, embora disfarçado: redesenhar o Estado para que a parcela do gasto público na renda nacional seja cada vez menor e, com isso, também cada vez menor sua capacidade de atuar reparando injustiças históricas e promovendo uma sociedade menos desigual. Com efeito, ao congelar as despesas reais nos valores atuais, ela concentra todo o aumento da renda resultado do crescimento da economia nos próximos anos em mãos privadas e impede que parte dele possa custear transferências para estratos mais vulneráveis da sociedade e fornecer mais e melhores serviços públicos para uma população que cresce em número e em demandas.
Se essa redução pretendida pela proposta na capacidade de atuação do Estado já estivesse em vigor desde 2003, os recursos hoje disponíveis para o gasto público seriam cerca de um terço menores do que são, impactando diretamente serviços públicos como os de saúde e de educação. Ao projetar à frente, se a proposta for aprovada e o Brasil crescer nos próximos vinte anos à taxa média dos anos 1980 e 1990 o gasto público, hoje em torno de 40% do PIB segundo dados do FMI, o que o situa próximo à média dos países desenvolvidos, cairia a 26%, como na Zâmbia. Se o crescimento igualar o dos anos 2000, chegaria a 19%, como no Nepal.
A proposta do governo interino traça um caminho contrário ao perseguido pela maioria dos países emergentes, que, em paralelo à elevação da renda per capita, têm aumentado – não diminuído – a participação dos gastos públicos no PIB. Ela inviabiliza o Estado de bem-estar inscrito em nossa Constituição e adotado pela ampla maioria dos países desenvolvidos. Em seu lugar, resgata um modelo de sociedade em que o Estado pouco gasta e pouco faz, o Estado mínimo vigente na maioria dos países onde a população permanece na pobreza. Para quem não utiliza quotidianamente serviços públicos, esse Estado pode parecer ideal. Para a ampla maioria da população que deles depende para educar seus filhos e cuidar de sua saúde e para quem almeja uma sociedade mais justa, a proposta constitui um imenso retrocesso.
Emilio Chernavsky é doutor em economia pela USP
Rafael Dubeux é doutor em relações internacionais pela UnB