O Planeta Ganja é uma loja temática de roupas e acessórios, como aquelas dedicadas ao surfe, skate ou rock. Mas o objeto de culto no sobrado de fachada grafitada é outro: maconha. A marca na etiqueta de uma camisa à venda resume as apresentações: “Mujicannabis” – trocadilho de cannabis, gênero de plantas com que se produz a maconha, e José Mujica, presidente que tornou o Uruguai o primeiro país a oficializar a produção e o consumo de maconha para uso recreativo, em 2014. “A liberação completa é um passo novo”, disse a ÉPOCA o professor de Direito Hans-Joerg Albrecht, diretor do Instituto Max Planck, da Alemanha, dedicado à questão das drogas. Outros lugares que liberaram a droga, como Holanda, Portugal e parte dos Estados Unidos, vivem uma inconsistência lógica – ou hipocrisia: permitem consumir, mas proíbem cultivar. De onde vem a erva, ninguém sabe, ninguém viu. A hesitação desses países, ricos e organizados, dá a medida da dificuldade de terminar a guerra às drogas. Por cinco décadas, o mundo construiu leis, burocracias estatais e costumes em torno da proibição. O Uruguai – país modesto com 3,3 milhões de habitantes, equivalentes à metade da população da cidade do Rio de Janeiro ou a um sexto da região metropolitana de São Paulo – tenta desbravar o caminho da liberação. É uma tradição dos uruguaios, pioneiros também na legalização do divórcio e na liberação do álcool.
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O caminho da liberação não é fácil nem curto – e a experiência uruguaia está apenas no começo. “Estamos em uma trilha de experiência. Vamos ver se cresce o número de consumidores, se o peso do narcotráfico aumenta ou diminui, o que ocorre nas prisões”, disse Mujica em 2014, ao decretar a regulamentação. Para o sociólogo Marcos Baudean, autor de um estudo sobre os impactos da liberação da maconha, ainda é cedo para declarar o sucesso ou fracasso da iniciativa. “Precisamos esperar de dois a cinco anos para fazer uma avaliação preliminar. Uma avaliação razoável não oorrerá em menos de dez anos.” Das três formas legais de obter maconha anunciadas há dois anos, a principal (e mais complicada) não entrou em vigor: a venda em farmácias, com produção em larga escala concedida a empresas privadas, que inicialmente começaria em seis meses. O presidente Tabaré Vázquez, que sucedeu a Mujica em março, considera a ideia “insólita” e adiou sua implementação por prazo indeterminado. “Não temos pressa. Queremos fazer bem feito”, disse Milton Romani, secretário da Junta Nacional de Drogas. Por enquanto, só estão liberados o cultivo caseiro, limitado a seis pés de maconha por pessoa registrada, e a produção coletiva de até 99 pés, por clubes com até 45 sócios maiores de idade.
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Essa janela aberta pelo Estado, porém, já faz florescer um pequeno mercado capaz de investir, pagar impostos, gerar empregos e de fornecer ao governo, universidades e ONGs dados mais confiáveis sobre o consumo. Um sobrado na Rua Maldonado, na capitalMontevidéu, virou um monumento à maconha e lugar de trabalho de dez pessoas. No térreo, está a loja Planeta Ganja. No subsolo, há um centro de estudos. No terceiro e quatro pavimentos fica a produção do Clube Canábico Sativa. Em estufas com lâmpadas que reproduzem o sol da primavera e do verão, dia e noite, crescem as plantas dos 32 sócios que pagam cerca de US$ 80 por mês pelo direito de levar para casa, a cada 30 dias, um carregamento de 40 gramas de erva. Os sócios mais ansiosos podem acompanhar o crescimento das plantas dentro da estufa através de uma janela, como se fosse uma maternidade. “Evitamos entrar na estufa, para não correr o risco de contaminar a produção”, diz Joaquín Fonseca, presidente do clube. “Quando é inevitável, vestimos macacões de laboratório.” Após passar 15 anos no departamento de marketing da fábrica de cigarros Phillip Morris, Fonseca viu no decreto de Mujica a oportunidade de passar de empregado a concorrente. “Minha vida mudou muito”, diz, atrás do balcão da loja. “Conheço muita gente nova, converso mais, tenho mais tempo livre para ficar com meus dois filhos.” Na sala ao lado, o filho de 3 anos vê na televisão a um desenho do Mickey Mouse, ainda com o uniforme da escola, à espera da hora de voltarem para casa. “Ele conta aos amiguinhos que o pai cultiva plantinhas e ajuda outras pessoas a cultivar”, diz. “Vai crescer sem o fantasma que por tantos anos construímos em torno da maconha.”
Para Juan Vaz, sócio de Fonseca, a ilegalidade da maconha representou mais que um fantasma. Em 2007, Vaz foi preso por cultivar a planta. Casado, pai de três filhos, aos 40 anos ele passou 11 meses isolado da família. Ficou com dez presos numa cela, feita para três, do Complexo Carcerário Santiago Vázquez. “Não gostava que fossem me visitar. Era um lugar lúgubre, com cheiro de putrefação permanente, sobretudo no verão.” Com a nova lei, o ex-inimigo público tornou-se consultor do governo e abriu a empresa. “Agora tenho um escritório e posso trabalhar com o que gosto”, diz. “Estou vivendo um sonho.” Ou, poderia dizer, vivendo outros tipos de pesadelo.
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Recém-chegada ao mundo da legalidade, a nascente indústria da maconha uruguaia está sendo apresentada à burocracia local. Dos cerca de 40 clubes canábicos em atividade no Uruguai, 25 pediram alvará de funcionamento – e, após dois anos da lei em vigor, apenas dois conseguiram. “Está vendo esse papel? É meu comprovante do seguro social. Agora sou oficialmente jardineiro de uma empresa, ganho salário e recolho aposentadoria”, diz Diego García, responsável pelo pioneiro Clube Canábico El Piso. “Trabalho por seis horas de segunda a sexta-feira, às vezes também aos domingos. As ervas não crescem só nos dias úteis.”
Ex-cozinheiro, García assumiu a jardinagem quando o clube ainda era proibido. “Alugamos essa casa sem fiação elétrica, com tudo quebrado. Já investimos entre US$ 15 mil e US$ 20 mil”, diz. Quando a lei foi publicada, o grupo pediu registro no Ministério de Educação e Cultura. “Um funcionário do ministério disse ‘oh, não sabemos o que fazer, voltem em 15 dias’”, diz. “Quando voltamos pela terceira vez, exigimos: aceitem ou recusem.” Depois de mais um mês, o ministério aceitou. “Um mês e meio depois de aceitarem, recebemos os primeiros pedidos de revisão no estatuto do clube”, diz. Após quatro meses, o ministério autorizou a associação civil – mas ainda sem permissão para cultivar maconha. O grupo buscou o Instituto de Regulação e Controle do Canabis (Irca), criado para controlar a nova atividade. “Eles demoraram um mês e meio até fazer a primeira inspeção”, diz García. Vinte dias depois, mandaram um e-mail com exigências como a instalação de alarme anti-incêndio e a etiquetagem das plantas com nome e data de cultivo. Após um ano desde o primeiro pedido de registro, o clube conseguiu autorização para o plantio. “Quando saiu o documento, perguntei quando seria a próxima inspeção”, diz. “‘Acho que nunca’, me respondeu uma funcionária.” O Irca não tem pessoal próprio. “Aqueles fiscais eram emprestados, ninguém queria estar ali.”
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De produto clandestino com qualidade incerta, traficado de países como Paraguai e Bolívia, a maconha uruguaia segue agora o caminho já trilhado por carnes, queijos e vinhos do país: a gourmetização. “Quando abrimos uma lojinha de 10 metros quadrados, dois anos atrás, não havia ninguém”, diz Juan Andres Palese, um dos três sócios da Urugrow, loja de artigos de jardinagem “premium”. “Agora estamos nesta casa maior, com sofá na entrada. Temos 30 concorrentes no país, metade em Montevidéu.” A Urugrow recebe por dia pelo menos 40 visitantes. Muitos são turistas interessados em comprar maconha – tantos que motivaram os sócios a colar um aviso por escrito. A venda de maconha está proibida, mas a venda de apetrechos não. As estantes exibem dezenas de estimulantes de crescimento em potes de plástico – o cenário lembra as lojas que no Brasil vendem produtos para fisiculturistas. Uma diferença está no rótulo dos produtos. Há preciosidades que parecem saídas do laboratório de uma bruxa de conto de fadas, como adubo de fezes de morcego (o pote com 1 litro custa R$ 68). “Como os nutrientes variam conforme a dieta do morcego, o fabricante combina fezes de animais da Tailândia, da Jamaica, Indonésia… É o melhor fertilizante que há”, diz Palese. Outra diferença é a voz mais tranquila daqueles que cultivam plantas, em vez de músculos.