Em uma noite de 2017, dois assassinatos em sequência durante uma “social” — como são chamadas as festas ao ar livre realizadas nas comunidades — acenderam o alerta no então gerente do tráfico de drogas do bairro Mario Quintana, em Porto Alegre. Integrante da facção Bala na Cara, ele estava convicto da inocência de um comparsa e amigo que deveria ser morto como responsável pelo sumiço de uma arma. Também não aceitava a execução de uma jovem, sua protegida, que deveria ocorrer na mesma noite. A garota foi condenada por ter curtido um post dos rivais no crime.
“Vamo arrastar ele agora.” O aviso dado nas ruas do Mario Quintana foi a senha para o primeiro assassinato. Minutos depois, o amigo do gerente do tráfico foi alvejado na cabeça e jogado dentro de um porta-malas. A ordem teria partido de dentro da Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc). Coube ao gerente dar o último disparo no amigo, que agonizava dentro do veículo.
Horas depois, a garota foi morta com três tiros no rosto. Teve o corpo jogado dentro do mesmo carro onde estava a vítima anterior.
As duas mortes abalaram o sujeito, mesmo que ele fosse acostumado a conviver e a praticar a barbárie. Contrariado com as execuções, achou que era melhor abandonar o crime, antes de merecer um fim igual. Uma semana depois, avisou que sairia da facção. Pretendia mudar de bairro. O pedido foi aceito. Mas, na sequência, tomou conhecimento da ordem que já esperava: deveria ser assassinado. Sabia demais.
Decidiu que, antes de morrer, entregaria os crimes que havia presenciado ou praticado, além de todo o esquema de funcionamento da facção. Em uma madrugada, entrou em uma delegacia de Porto Alegre e perguntou a um policial:
— O que tu quer saber sobre Os Bala?
Consequências
O gerente virou, então, delator. Fez acordo de colaboração premiada com a Justiça, foi inserido em um programa de proteção a testemunhas e deixou para trás não apenas o bairro ou a Capital: mora fora do Rio Grande do Sul, sob proteção federal, aguardando o julgamento dos processos em que é réu. Por continuar jurado de morte pelo grupo criminoso, muda-se com frequência de Estado, usa colete à prova de balas e, aos 23 anos, acredita que já fez “hora extra na Terra”. Sem dizer o local onde se encontrava e sem fornecer informações judiciais, em respeito às cláusulas do acordo de colaboração, ele contou sua história à reportagem.
Foi a maior delação da história do crime organizado no Estado.
À polícia, ele revelou detalhes sobre o funcionamento da facção e sobre sequestros e esquartejamentos. A confissão gerou, nos últimos dois anos, pelo menos 60 processos por homicídios envolvendo a facção. Um membro do Judiciário afirma:
— Foi a grande fonte de informação para atacar a facção. Ele estava jurado de morte e resolveu falar. O medo faz com que a maioria se cale.
A reportagem teve acesso a 24 processos, sendo que em 18 o delator é réu e em seis a colaboração serviu de embasamento para apurar o caso. Há detalhes de crimes bárbaros, como um esquartejamento em 2016, enquanto a pessoa estava viva. Em decisão judicial do primeiro trimestre de 2018, o homem é citado como antigo gerente do tráfico, sob comando de José Dalvani Nunes Rodrigues, o Minhoca — que se tornou réu e continua sendo investigado, suspeito de ter ordenado outros homicídios.
Ele estava jurado de morte e resolveu falar. O medo faz com que a maioria se cale.
INTEGRANTE DO JUDICIÁRIO
Com ajuda da delação, pelo menos três líderes da facção foram isolados. Em março de 2017, Minhoca foi transferido para a penitenciária federal de Campo Grande (MS).
Em julho do mesmo ano, outros 27 chefes do crime organizado foram encaminhados para unidades de segurança máxima fora do Estado, entre eles Fábio Fogassa, o Alemão Lico, e Marcio Oliveira Chultz, o Alemão Márcio.
Revelações
Quando um criminoso resolve delatar, é natural que haja desconfiança — os relatos precisam ser confrontados com fatos. Para comprovar a veracidade do que falava, o ex-gerente do tráfico, em fevereiro de 2017, possibilitou à polícia a descoberta de um depósito usado pela facção em Canoas, próximo à BR-386. Foram encontrados 142 quilos de maconha em uma fábrica de fachada.
Os bandidos compravam centenas de quilos de café para disfarçar o cheiro da droga que emanava do local. Ali também ficavam armas e munições. Fuzis eram obtidos a partir de negociações com o Comando Vermelho, facção do Rio de Janeiro. Um ônibus foi apreendido.
O veículo seria usado para transportar a maconha de Foz do Iguaçu, na fronteira com o Paraguai, até Porto Alegre. Em outra comprovação às autoridades, o delator indicou onde existiria um cemitério clandestino.
Um desembargador descreve que o delator “relatou, com riqueza de detalhes, a estrutura, hierarquia, divisão de tarefas da organização criminosa, além de diversas práticas ilícitas realizadas pela facção”. Soube-se, por exemplo, que o grupo criminoso lucrava cerca de R$ 200 mil por semana no bairro Mario Quintana. Por mês, o Judiciário estima que a arrecadação no Rio Grande do Sul é de R$ 10 milhões a R$ 15 milhões.
Origens
No fim da década de 1990, o filho de uma dona de casa corria pela zona norte de Porto Alegre dizendo que, quando crescesse, seria policial. Aos 13 anos, já fora da escola (largou na sétima série), pegou pela primeira vez em arma, um revólver 38, mas pela mão de bandidos. Aos 15, ganhou uma pistola e o status de segurança do tráfico no Mario Quintana, bairro que, desde 2011, registrou pelo menos 217 assassinatos (é o quinto mais violento da Capital). Desfilava com colete à prova de balas e posava para fotos com armas automáticas e fuzis.
Aos 18, recebeu um carro do padrasto, que tentava afastá-lo do crime. Uma semana depois, era preso com o veículo. Dentro, havia uma pistola 9 milímetros e drogas.
No fim de 2016, ele virou gerente do crime. Recolhia o dinheiro que chegava do Interior e organizava remessas de maconha. Participou da disputa sangrenta entre grupos criminosos e, segundo seu relato, era um dos poucos que executavam esquartejamentos, selvageria que virou rotina na intimidação dos desafetos. Afirma que recebia ordens diretas de um dos líderes, hoje preso no Estado.
“Desce na Pedrinha (bairro Passo das Pedras) ou na Timbaúva e tenta sequestrar alguém para esquartejar. Se não der, mata ali mesmo.” Recados assim eram frequentes na guerra entre os Bala na Cara e a facção rival, os Anti-Bala. Criminosos carregavam o rival até o outro lado da Avenida Protásio Alves e o torturavam até a morte.
Os revides eram habituais. O sangue corria dos dois lados do chamado “corredor da morte”.
Certa vez, uma garota de 12 anos foi morta por suspeita de ter repassado informações aos rivais. Estava na casa de um traficante quando teve o telefone confiscado.
Na manhã seguinte, espancaram a guria e a levaram a um morro no bairro Jardim Protásio Alves. De joelhos, foi decapitada.
A cova onde ela foi enterrada ficava em cemitério clandestino no meio da mata. Usar esses pontos para depositar cadáveres é estratégia comum — havia corpos que deveriam ser expostos, como forma de impor terror; outros, não.
A morte da garota atormentou o gerente do tráfico na época. Ele dizia ter sonhos e visões. Acabou se suicidando. Foi sucedido no cargo por seu segurança — o mesmo homem que, tempos depois, abalaria o poder das facções criminosas ao se tornar delator.
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