Falta de macas traz caos ao atendimento de emergência pelo país
Edição do dia 10/08/2014
10/08/2014 23h00 – Atualizado em 11/08/2014 00h27
Falta de macas traz caos ao atendimento de emergência pelo país
Macas de ambulâncias ficam retidas em hospitais públicos superlotados.
Sem o equipamento, socorristas têm que esperar na porta dos hospitais.
Os serviços públicos de socorro são o tema da reportagem especial desta noite. Ambulâncias modernas, equipes treinadas, tudo pronto, mas falta uma coisa fundamental: a maca. E essa falha grave afeta diversas cidades brasileiras. Os atendimentos urgentes são situações de vida ou morte, onde nada pode dar errado. Mas muitas vezes dá.
Gleice Kelly tem 20 anos. No fim de junho, sofreu uma forte crise de asma.
“A menina tem problema de asma e ela tomou um remédio. Ela é alérgica ao remédio e não sabia”, diz um familiar.
A família pediu ajuda para o Samu, o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência.
“A menina está aqui morrendo, já desmaiou duas vezes!”, declara um familiar
E esperou.
“Uma hora a gente está esperando ela aqui para ser atendida, rapaz. Eu não quero desistir, não, eu quero que vocês mandem um carro!”, reclama o familiar.
Enquanto ela espera por socorro, a menos de quinze minutos de distância, equipes do Samu também esperam as suas macas.
Socorrista: Estamos aguardando aqui o médico atender o paciente e fazer a reposição da maca.
Enfermeira: Essa maca não foi encontrada, copiado? A viatura continua ainda sem maca.
Central do Samu: Positivo.
As macas das ambulâncias estão sendo improvisadas como leitos hospitalares comuns. Sem a maca, que é o equipamento mais básico de atendimento, a central do Samu é obrigada a pedir uma equipe que está longe, na estrada.
Central do Samu: Paciente asmática, apresentando crise aguda.
Socorrista: Central, por gentileza avise que a gente vai demorar pelo menos um pouquinho.
Central do Samu: Positivo, positivo, já foi feito o contato com o solicitante informando-o.
Fantástico: Você ligou de novo para ambulância?
Mulher: Liguei.
Fantástico: E ele falaram o quê?
Mulher: Que já está no caminho.
Finalmente, o socorro chega, mas só duas horas depois da primeira ligação.
O que ocorreu com a Gleice Kelly não é um caso isolado. Acontece todos os dias em várias cidades do país. As macas do Samu, que deveriam ser usadas apenas durante os atendimentos de emergência, acabam retidas dentro de hospitais públicos superlotados. E, os socorristas são obrigados a esperar.
Com uma microcâmera, entramos no Hospital de Urgência de Sergipe, em Aracaju, o principal do estado. Lá dentro, superlotação. Pacientes aguardam em cima das macas do Samu.
“A retenção da maca impede o correto funcionamento da ambulância. Então, isso não é permitido, isso não é admitido”, afirma Fausto Pereira dos Santos, secretário de Atenção à Saúde do Ministério de Saúde.
O Samu foi criado em 2004 pelo Governo Federal para prestar socorro em casos de emergência. Mais de 70% dos brasileiros têm acesso ao serviço, por meio do telefone gratuito 192.
O Ministério da Saúde define as regras para o seu funcionamento. E, dependendo do lugar, são as prefeituras ou os governos estaduais que fazem a coordenação no dia a dia.
“O Samu faz o primeiro atendimento e leva o paciente para o hospital mais adequado para aquela condição. E deve imediatamente retornar ao seu ponto de origem para fazer um novo atendimento”, diz o secretário de Atenção à Saúde do Ministério de Saúde.
Não é o que acontece em Aracaju. Do lado de fora do hospital de urgência, as equipes estão paradas. Sem saber que estavam sendo gravados, os socorristas contaram os bastidores do atendimento na cidade.
Fantástico: Há quanto tempo a sua maca tá parada aqui?
Socorrista: Rapaz, a minha já tem uns 40 minutos. Mas eu tenho colegas aqui que já está há no mínimo aqui três, quatro horas.
Fantástico: A sua maca tá desde que horas aqui?
Socorrista: Uma hora da tarde.
Fantástico: Agora são quase sete.
Socorrista: Isso.
Fantástico: Mais de cinco horas parada a maca, é normal?
Socorrista: Normal, normalíssimo.
Fantástico: Das viaturas que estão paradas sem maca, quantas aqui?
Socorrista: Cinco aqui na porta e duas lá na frente. Sete viaturas.
Fantástico: Paradas?
Socorrista: É. Por falta de maca.
Ao todo, a cidade de Aracaju, com 570 mil habitantes, tem 12 ambulâncias do Samu.
Fantástico: E se acontece uma ocorrência agora?
Socorrista: O que que a gente vai fazer?
Os atendentes do Samu não podem nem voltar para a base. Têm que esperar na porta do hospital.
“Se a gente se deparar com um acidente no meio do caminho. Como é que a gente vai pegar a vítima sem a maca?”, questiona um socorrista.
No rádio, as reclamações são constantes.
Socorrista: Estamos aqui agora na saga da procura de macas.
Socorrista: Como sempre nossa maca está presa na área de trauma.
Socorrista: A viatura continua ainda sem maca.
Socorrista: Aguardando maca aqui, estamos presos também.
O problema existe faz tempo. Há um ano, na cidade de Salgado, a 60 quilômetros de Aracaju, o marido de dona Ana Maria teve um infarto. O socorro foi chamado, mas não chegou a tempo.
“Não tem o carro vai fazer o quê? Quando chegou já estava morto”, conta a viúva Ana Maria Ribeiro.
Arnaldo estava na ambulância que foi para a casa de dona Ana Maria, mas ele não é da cidade.
“A viatura do município de Salgado, que deveria atender, estava retida, sua maca, no Hospital de Urgência em Aracaju”, afirma Arnaldo Chagas Jr., socorrista do Samu.
A equipe de Arnaldo é do município de Lagarto, a 30 quilômetros de distância, e, para atrasar ainda mais, já estava atendendo um paciente.
“Demoramos algo em torno de uma hora e dez para poder conseguir chegar a esse atendimento. Infelizmente, o paciente já estava em óbito”, diz o socorrista.
“Na grande maioria das vezes ou quase na totalidade das vezes, é de responsabilidade da administração do hospital”, afirma Fausto Pereira dos Santos, secretário de Atenção à Saúde do Ministério de Saúde.
Em Sergipe, o governo estadual é responsável tanto pelo Samu, quanto pelo Hospital de Urgências. Para a representante da Secretaria de Saúde, a retenção de macas acontece, porque pacientes que poderiam ir para unidades de atendimento mais simples superlotam o hospital de urgências.
“O paciente clínico pode e deve ser atendido na unidade de pronto atendimento”, diz Luciana Prudente, da Secretaria de Saúde de Sergipe.
Segundo ela, o hospital tenta devolver as macas o mais rapidamente possível. “A gente tem como política nossa o foco na liberação rápida dessas viaturas”, afirma.
Em Campina Grande, na Paraíba, o Fantástico encontrou a mesma situação.
Fantástico: Não tem maca para levar ela?
Enfermeira: Sem maca, sem cadeira, sem nada.
Hospital superlotado e macas de emergência usadas como leitos. Enquanto isso, no lado de fora.
“Teve dias de a gente chegar aqui por volta de meia noite, sair daqui dez horas da manhã, onze horas, meio dia. Já várias, várias vezes”, afirma Silvia Santa Cruz, enfermeira do Samu.
A equipe flagrou uma ambulância que ficou uma hora parada sem maca. Ao mesmo tempo, na BR-230, um motoqueiro também esperava.
“Quando chegamos aqui, o pessoal disse que tinha mais de uma hora e meia que tinham ligado lá para o Samu. Disseram que não tinha ambulância”, diz o sargento Clementino, da Polícia Militar.
“Esse acidente foi aqui ainda estava claro, sabia? A gente chamou a Samu, mas a Samu não veio, não. Disse que não tinha ambulância lá, não”, afirma Rose Silva, testemunha do acidente.
O carro que finalmente chega é o mesmo que o Fantástico flagrou há pouco parado, esperando maca na porta do hospital.
“Acabou de ser liberada nesse momento a maca. Cada vez mais que o Samu leva um paciente para o trauma, fica uma maca presa”, diz o socorrista Edson Nunes.
No começo de julho, a retenção de macas levou à morte de um senhor em Campina Grande.
“Perdi meu pai. Eu não gosto nem de pensar. Eu me humilhando, entendeu? E só escutando, só escutando, escutando e nada. Pedindo ambulância”, conta Francisco Rodrigues Filho, filho da vítima.
O drama dessa família começou quando o pai de Francisco teve um infarto em casa. A primeira a ligar para o Samu foi a nora.
Nora: Ele está sentindo muitas dores.
Central do Samu: Senhora, olha. No momento eu estou sem nenhuma ambulância. Sem UTI móvel, sem unidade básica. Eu tenho algumas com maca presa no Hospital de Traumas e as outras estão em ocorrência.
A família esperou três horas e desistiu.
“Coloquei meu pai em cima de uma camionete para trazer para o hospital. Quando eu cheguei aqui, cinco ambulâncias da Samu que eu vi. Todas sem maca”, conta o filho da vítima.
O Seu Francisco foi trazido para o hospital, que, além de Campina Grande, atende a mais de 270 municípios de quatro estados diferentes. É o único hospital de referência da região.
Fantástico: O que vocês estão fazendo aqui?
Socorrista: Aguardando a maca, liberação
Fantástico: Há quanto tempo?
Socorrista: Há mais de uma hora.
“Ao invés de estar ali socorrendo, você está aqui na porta do hospital, no lado de fora, esperando para prestar um atendimento que a gente sabe que a gente podia estar lá, resolvendo o problema da população, e não pode”, afirma a socorrista.
Em Campina Grande, o Samu é coordenado pelo município.
Fantástico: Você tem, atendendo a população de Campina Grande, quantas ambulâncias?
Hermano Barbosa de Lima (coordenador médico do Samu de Campina Grande): Dez ambulâncias.
Fantástico: E você já chegou a ficar com quantas paradas por falta de maca?
Hermano Barbosa de Lima: Dez ambulâncias paradas. Para cada unidade, nós temos uma reserva. Quando o serviço fica 100% inviável, é porque, além das dez macas reservas, ficaram também as dez macas oficiais da unidade retidas no hospital.
Fantástico: Ou seja, você já chegou a ter 20 macas retidas dentro do Hospital de Traumas?
Hermano Barbosa de Lima: Rotineiramente.
Fantástico: Vocês já entraram em contato com o hospital para falar sobre esse problema?
Hermano Barbosa de Lima: Sim. Além disso, uma vez a maca ficando presa, a equipe que se encontra presa sai do hospital, vai para a delegacia, faz um Boletim de Ocorrência para documentar.
O Hospital de Traumas é de responsabilidade do governo da Paraíba. O secretário diz que as macas ficam presas, porque o Samu manda pacientes para lá que poderiam ir para unidades mais simples e não avisa os médicos.
“Na medida em que você tem uma ambulância direcionada a qualquer serviço sem ter a regulação médica, sem preparar o hospital, obviamente que essa ambulância, ela terá que esperar a liberação da maca. Essa responsabilidade não pode ser do hospital, ela não deve ser do hospital. É como se você tivesse preparado para receber cinco pessoas na sua casa para almoçar e chegar 50”, afirma o secretário de Saúde da Paraíba, Waldson de Sousa.
“Eles acham que a gente sempre coloca o paciente lá, o que não é uma verdade. Nós trabalhamos aqui com uma grade de referência hospitalar. A gente tenta poupar a todo momento, colocar paciente que pode ficar em outro hospital ao invés de colocar lá no trauma”, afirma o coordenador do Samu de Campina Grande, Hermano Barbosa de Lima.
No Sudeste do país, em Mogi das Cruzes, interior de São Paulo, a mais de dois mil quilômetros de distância de Campina Grande, Viviane também perdeu a mãe por falta de maca.
Dona Maria Terezinha morreu no terminal de ônibus, a dois minutos do hospital mais próximo. “Pelo telefone, eu consegui escutar a minha mãe chorando, gritando: ‘Ai que dor! Que dor!”, disse Viviane Cristina Santos, filha da vítima.
Para o jurista Sérgio Guerra, da FGV-RJ, quem não recebe atendimento de urgência por falta de macas, pode entrar na Justiça. “A pessoa deve, nesses casos, registrar tudo que aconteceu durante aquele episódio para que tudo isso seja levado posteriormente ao Judiciário”, explica.
Foi o que a Jandira, que viu tudo, fez. Ela gravou imagens quando viu a dona Maria Terezinha passando mal.
“E ela pedia: ‘Pelo amor de Deus, gente! Socorro, socorro!’. E nisso, foi aglomerando gente falando: ‘Cadê o socorro? Cadê o socorro?’”, conta a cobradora de ônibus Jandira da Silva.
O secretário de saúde da cidade, Marcelo Cusátis confirma que não havia ambulâncias para atender dona Maria Teresinha naquele momento. “Teve uma superlotação hospitalar na cidade. Macas ficaram retidas, sete ambulâncias, paradas, e acabou demorando um pouquinho mais que o comum o atendimento”, afirmou.
Os hospitais são a Santa Casa e o Luzia de Pinho Melo, que é administrado pelo governo estadual.
“Não há retenção de macas. O que acontece é, como o Samu é um serviço de urgência, ele traz o paciente a qualquer momento, a qualquer hora, não quer dizer que a qualquer momento nós temos vagas. Então, o paciente tem que aguardar uma vaga naquele momento para ser atendido. Em média, é uma espera de 30, 40, até uma hora”, afirma o diretor do Hospital Luzia Pinho Melo, Luiz Carlos Viana Barbosa
Em nota, a Santa Casa disse que não retém ambulâncias do Samu e que tem o objetivo de não ter nenhum paciente no hospital em macas.
Em São Paulo, capital, um paciente fez imagens de macas usadas como leitos nos corredores do Hospital Vereador José Storopoli, na Zona Norte, de responsabilidade da prefeitura. Do lado de fora, socorristas afirmaram que a retenção de macas é frequente.
Socorrista: Normalmente eles prendem maca.
Fantástico: Quantas macas estão presas lá dentro agora?
Socorrista: De reserva são onze.
Fantástico: Tem onze macas lá dentro?
Socorrista: Que a gente leva de reserva. Oficial a gente não sabe.
Enquanto acompanhávamos a rotina do hospital, sete ambulâncias estavam estacionadas esperando maca. Uma delas passou oito horas parada. Eram 18h e a ambulância que chegou às 10h15 continuava em frente ao hospital esperando a maca ser liberada.
Enquanto essas viaturas esperavam, Augusto ligava para o Samu pedindo socorro para o primo, José, de 51 anos.
Central do Samu: Samu da cidade de São Paulo, a ligação é gravada.
Augusto: Meu primo, recentemente, fez um tratamento pro câncer e ele está desmaiando agora.
Vinte e cinco minutos depois, uma nova chamada.
Augusto: Eu acabei de ligar, só que tá demorando a viatura. Não tá conseguindo respirar, tá desmaiando.
Central do Samu: Estou pedindo uma brevidade, uma urgência no seu chamado, ok, senhor?
Desesperado com a demora, o primo, Adriano dos Santos, foi a pé até um posto de saúde próximo. “Tinham duas ambulâncias. Uma estava com um caso fatal também que era uma mulher e tinha outra lá que estava sem maca. Eu pedi ajuda, ele falou que não podia sair de lá porque estava sem maca, não tinha como transportar”, conta.
Uma hora e dez minutos depois da primeira chamada, a ambulância do Samu chegou.
Em nota, a Secretaria municipal de Saúde de São Paulo informou que o primeiro chamado sobre o caso de José foi classificado como não urgente e que, assim que a emergência foi detectada, uma viatura do Samu chegou em dez minutos.
A secretaria também disse que orienta os hospitais para não reterem macas e que está trabalhando na criação de mais leitos.
José dos Santos Neto morreu no hospital.
“Quando eu vi que ele deu um suspiro assim, acho que ele deu um último suspiro e não respirou mais, aí eu peguei, saí daqui e fui pra janela, estava quase, estava, não sabia mais o que fazer”, lembra o primo da vítima Augusto Fernandes.
Gleice Kelly, a jovem com a forte crise de asma que você viu no começo desta reportagem, teve sorte: ela sobreviveu. “Me entubaram no oxigênio e ali começaram a fazer as minhas medicações. E ali me salvaram. n Eu pensei realmente que eu não ia mais sobreviver naquela noite”, conta a cabelereira Gleice Kelly.
Fantástico: A quem você culpa pela morte do seu pai?
Francisco Rodrigues Filho: Negligencia médica. Por falta de Samu. No caso, uma maca. Falta de maca.
“E quando eu voltar agora pra outra ocorrência, quando eu voltar, ela fica presa de novo. Não tem onde a gente colocar os pacientes”, diz uma socorrista.
PUBLICIDADE
Descubra mais sobre Blog do Levany Júnior
Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.
Comentários com Facebook