Por Edmundo Carlos de Moraes

Eu não gosto da expressão “complexo de vira-latas”. Essa expressão foi criada por Nelson Rodrigues quando analisava as possibilidades da seleção brasileira de futebol no campeonato mundial da Suécia em 1958. Escrevia ele naquela oportunidade: “Por “complexo de vira-latas” entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol”.

Eu não gosto da expressão “complexo de vira-latas”. Em primeiro lugar, porque considero um demérito e uma injustiça com os vira-latas. Eu já tive cachorros vira-latas e não os trocaria por nenhum outro cachorro “de raça”. Em segundo lugar, e o mais importante, porque essa expressão nos levaria a considerar que, comparando-nos aos vira-latas, nós brasileiros não teríamos uma raça definida, nos colocando em posição inferior a outros humanos que seriam de “raça”. Entretanto, as evidências científicas indicam que, do ponto de vista biológico, não existem raças entre os seres humanos.

O desenvolvimento da genética molecular permitiu estudar em profundidade a variabilidade genética humana. Estudando-se populações das supostas “raças humanas”, pôde-se verificar que a variabilidade genética ocorre principalmente dentro de cada uma das populações e não entre as populações. Esses dados são compatíveis com o fato de que existimos há muito pouco tempo no nosso planeta e não houve tempo suficiente para as diferenciações que levassem ao surgimento de raças. Assim, não existe sustentação científica para a existência de raças entre os humanos. Entre nós humanos não existem “vira-latas”!

A ideia de raças humanas é uma construção social e cultural e tem sido utilizada para justificar desigualdades que têm origem no modelo de sociedade vigente e não nas supostas diferenças raciais. O que efetivamente diferencia uma pessoa da outra são as nossas visões de mundo constituídas pelo conjunto de pressupostos que nós utilizamos para interpretar o mundo e agir nele.

Eu não gosto da expressão “complexo de vira-latas”. Descartando as supostas diferenças raciais, eu entendo o que Nelson Rodrigues queria dizer com essa expressão, mas discordo totalmente dele quando identifica a origem desse sentimento de auto descrédito como uma atitude voluntária do brasileiro. Longe de ser uma postura voluntária, longe de ser algo inerente ao brasileiro, o sentimento de inferioridade demonstrado por uma boa parte da nossa população tem sido despertado e estimulado, historicamente, por aqueles que não têm interesse num Brasil soberano e protagonista. Ele tem sido induzido por aqueles que tiram proveito de um país submisso e dependente. Eu me refiro a pessoas, corporações e instituições. Eu me refiro a agentes externos e internos ao nosso país: agentes internos que se beneficiam econômica e politicamente ao defenderem os interesses econômicos, políticos e geopolíticos de agentes externos.

Na atual situação do nosso país, as vantagens econômicas, políticas e geopolíticas obtidas pelos referidos agentes, externos e internos, estão sendo ocultadas da grande maioria da população brasileira pelo biombo criado supostamente em nome do combate à corrupção. O foco no biombo impede a percepção do que está por trás dele. Mais do que isso. Ao convencer as pessoas de que a corrupção é o nosso maior problema, com a consequente desmoralização da política como um meio de controle social do destino da nossa nação, alimenta-se mais uma vez o sentimento de inferioridade. Com isso, cria-se a possibilidade para a implantação de medidas que comprometem seriamente o presente e o futuro do nosso país.

O sentir-se inferior expressa-se em considerações como “o Brasil é uma pátria de corruptos”, “o Brasil é assim mesmo”, “o Brasil não tem jeito” e coisas semelhantes. Cria-se uma visão determinista e fatalista que não se justifica diante de um mundo caracterizado pelas constantes transformações. Nada indica que devemos aceitar a atual situação como inevitável e irreversível. As causas da nossa situação atual não estão na nossa suposta inferioridade. O sentimento de inferioridade está sendo mais uma vez usado na imposição de um caminho que não corresponde aos interesses da nossa nação.

A minha experiência de vida, viajando e morando em outros países, mostrou-me que a nossa maior riqueza não são as nossas florestas, o nosso petróleo, a nossa água ou os nossos minerais. A nossa maior riqueza são as nossas pessoas, o povo brasileiro, o nosso modo de ser, a nossa cultura em todas as suas formas de expressão.

A corrupção não é exclusividade dos brasileiros. Os corruptos brasileiros constituem uma parcela pequena do total da população brasileira. O suposto combate à corrupção é na sua essência hipócrita pois não questiona a sua origem: o modelo de sociedade em que vivemos, injusto, excludente e explorador.

A partir da minha visão de mundo, eu acredito que as novas gerações estão vindo com tudo para reconstruir este país e criar as condições para uma nação que expresse todas as nossas potencialidades. Eu acredito que isso será inevitável. É só uma questão de tempo. Não considero esse posicionamento expressão de um otimismo ingênuo que poderia ser uma fuga da realidade. Ao contrário, é uma estratégia para o enfrentamento da crise. Neste momento precisamos olhar para dentro e para frente. É preciso descobrir quem somos para agir projetando no futuro as consequências das nossas ações. Estamos sendo bombardeados por uma visão superficial da situação que nos mostra um caos e é claro que não é nessa situação que iremos encontrar a saída para a crise. A visão superficial, simplificadora e fragmentária não permite encontrar as soluções para a crise, pois essa visão faz parte da crise. Albert Einstein já afirmava que não podemos resolver um problema usando o mesmo tipo de raciocínio que o criou: precisamos ver o mundo de um modo diferente.

Não é repetindo as mesmas coisas que nos levaram à crise que iremos superar a crise. A sabedoria milenar dos orientais nos diz que um momento de crise também é um momento de renovação. Esse modo de ver o mundo é compatível com a ciência contemporânea. A partir de trabalhos realizados por pesquisadores de diversas áreas do conhecimento, sob a inspiração do trabalho pioneiro do pesquisador canadense Crawford Holling, a ciência contemporânea nos mostra que é possível descrever a evolução de um sistema complexo, como a nossa sociedade, mediante ciclos adaptativos. Em uma das fases desses ciclos, o sistema torna-se susceptível a mudanças de modo que os estímulos que ele recebe pode leva-lo a uma renovação, o que torna possível que ele retome o seu ciclo em uma melhor situação do que ele se encontrava anteriormente.

A atual situação do nosso país nos mostra que possivelmente estamos caminhando para uma fase como a descrita acima. Podemos pensar que estímulos adequados possam ser renovadores, nos levar à superação da crise e possibilitar que o sistema entre numa fase de reorganização e subsequente expressão das suas potencialidades. Como encontrar esses estímulos adequados?

Superando a visão superficial que só nos mostra a crise, podemos avançar a nossa percepção e buscar as experiências já em andamento que se contrapõem às condições que nos conduziram à atual situação. A visão superficial nos mostra a intolerância como um dos principais fatores que alimentam a crise. Entretanto, existem no nosso país, milhares de experiências que se alicerçam na solidariedade e mostram que é definitivamente possível a construção de alguma coisa com base na ação solidária. Experiências na área da economia solidária, reunindo pessoas em cooperativas, grupos e associações para produzir alguma coisa ou prestar serviços, em benefício de todos. Experiências de instituições que atuam na área da saúde, na área da educação, no esporte, nas atividades com crianças, jovens e idosos, nas atividades culturais, nas atividades com os mais desfavorecidos da nossa sociedade. Com essas experiências, a solidariedade deixa de ser uma utopia para se transformar em uma realidade alternativa para a construção de uma nova sociedade.

É claro que essas experiências não aparecem nas visões superficiais que nos são passadas pela grande imprensa do nosso país, pois elas são transformadoras e se contrapõem aos interesses daqueles que detêm o poder da veiculação da informação.  Uma possibilidade seria trazer essas experiências à tona para servir de exemplos e permitir que as pessoas de um modo geral tomassem conhecimento do que somos realmente como uma nação. O desconhecimento do que somos alimenta o sentimento de auto descrédito.

Definitivamente não somos inferiores e nós podemos neste momento agir para pavimentar o caminho das novas gerações na construção de uma nação justa e soberana.

 

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