Blog do Levany Júnior

“Amor” é única saída contra vício, diz ex-traficante dos EUA

Donnell Ross que chegou a lucrar US$ 200 mil por dia, hoje faz palestras motivacionais contra analfabetismo e gangues


Colagem a partir das fotos de Mastrangelo Reino/A2img e Apu Gomes

Jornal GGN – Um ex-traficante que chegou a lucrar US$ 200 mil por dia, nos Estados Unidos, hoje faz palestras motivacionais contra o analfabetismo e as gangues, os dois componentes que o levaram para o mundo do crime. Antes de ser adotado pelo tráfico, ainda muito jovem, Richard Donnell Ross perdeu uma bolsa de estudos na universidade para jogar tênis, o seu maior sonho, porque descobriram que não sabia ler. Algum tempo depois, no início dos anos 1980, e com 19 anos, o norte-americano nascido e criado em South Central Los Angeles era um dos traficantes mais proeminentes na região.

Sua história virou tema de livro e documentário após a descoberta de que a cocaína que comprava da Nicarágua era negociada a partir de um esquema que tinha o apoio da própria CIA para ajudar rebeldes anticomunistas naquele país. Ainda jovem, Ross foi detido e condenado a prisão perpétua, onde aprendeu a ler e estudar direito, descobrindo uma brecha no direito que reduziu sua pena para 20 anos. Em entrevista à Folha de S.Paulo, o ex-traficante destacou que “não se para um vício com a guerra, mas com amor”.

Folha de S. Paulo
“Não se para um vício com guerra, mas com amor”, diz ex-traficante dos EUA
FERNANDA EZABELLA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE LOS ANGELES, EUA
Foi no bairro em que Richard Donnell Ross cresceu, em South Central Los Angeles, que a epidemia de crack começou nos EUA, no início dos anos 1980. E seu envolvimento foi crucial: aos 19, ele foi o primeiro a criar um império com a droga, atingindo diversas cidades do país e arrecadando US$ 200 mil por dia.
“Freeway Rick”, como era conhecido, produzia a pedra em Los Angeles, com cocaína que comprava de nicaraguenses, num esquema que mais tarde seria conhecido por levantar fundos para rebeldes anticomunistas na Nicarágua, com o apoio da CIA.
Ross, 57 anos, foi tema do documentário “Freeway: Crack in the System” (2015) e é retratado no filme “O Mensageiro” (2014), sobre o jornalista Gary Webb, que revelou em 1996 a relação da CIA com o tráfico nos EUA.
Condenado à prisão perpétua ao ser pego com 100 kg de cocaína, Ross aprendeu a ler e escrever na cadeia e achou a brecha jurídica para diminuir sua pena para 20 anos.
Ao sair, em 2009, publicou o livro “Freeway Rick Ross: The Untold Autobiography” de forma independente, criou uma linha de camisetas e passou a dar palestras motivacionais contra analfabetismo e gangues.
A Folha conversou com Ross num restaurante vegano do bairro, seu predileto. Ele usa óculos de grau amarrado por cordinha no pescoço e deixa dois celulares na mesa, os quais atende sempre que toca. É casado e tem dois filhos, com quem espera realizar seu sonho: ir ao torneio de Wimbledon.
Antes das drogas, Freeway jogava tênis e chegou a ganhar uma bolsa para universidade por causa do esporte, mas perdeu quando descobriram que não sabia ler.
*
Folha – Como foi seu primeiro contato com cocaína?
Ross – Contato físico foi em 1979 ou 1980, um amigo me apresentou e não acreditei, era como uma fantasia se realizando. Porque antes só tinha visto em filme, era coisa de Hollywood, muito cara, uma grama era uns US$ 300. A primeira vez que vi foi no filme “Super Fly” [1972], foi o que atiçou minha mente, aprendi que era algo glamoroso, que tinha que ser feito. Eu não tinha dinheiro para nada, nem para gasolina no carro, e olha que a gasolina era 75 centavos o galão.
Por que resolveu vender crack e não cocaína?
Por volta de 1983, poucas pessoas queriam crack porque elas gostavam de preparar elas mesmas. Montamos uma linha para agilizar a fabricação porque tinha gente que vinha de manhã, antes do trabalho, reclamando que não tinha tempo de cozinhar, não tinham os utensílios. Então a gente começou a fazer o que chamávamos de ‘ready rock’ [pedra pronta]. Era mais conveniente e os clientes descobriram que podiam confiar em nós.
Nunca pesou sua consciência por vender drogas?
Não… Levou anos para a gente perceber a deterioração [dos bairros]. Não foi em uma semana. E para nós, era progresso, olhávamos para o dinheiro. A primeira coisa que notamos foram as ruas virando quarteirões do crack, com gente esperando nas esquinas vendendo a droga. Gente que não conseguia um emprego, agora via o dinheiro fluir. Era festa o tempo todo. Mas depois as pessoas começaram a perder suas casas, seus empregos, as mulheres se prostituíam. Foi um processo gradual.
Como era o processo para fabricar crack?
Começamos cedo com os caras da Nicarágua. Crescemos juntos. Era um ou dois quilos no início e depois 200 quilos. Tudo virava crack, não era difícil. No auge, tinha umas 30 ou 40 propriedades em Los Angeles e alguns pontos com fornos, panelas industriais, das usadas para fazer feijão nos restaurantes. Tinha umas dez pessoas para me ajudar, cozinhávamos 20 ou 30 quilos de uma vez.
Como as autoridades reagiam com a epidemia de crack?
A polícia sempre foi violenta, mas ficou ainda mais com o noticiário, com as mentiras de que nós éramos membros de gangues. Traficante não se mistura com gangue, não quer violência. E os policiais tinham inveja da gente também. Eram brancos, mais velhos e viam os negros com dinheiro para comprar suas casas, seus carros. Eu fazia num dia o que eles faziam num ano.
A polícia tratava usuário diferente de traficante?
Tratava traficante pior. Na cabeça de todo mundo, o traficante é pior que o usuário. O usuário é sempre a vítima, mas será mesmo? Não acho que usuário seja diferente do traficante. Ambos têm responsabilidades iguais. Se você tira o usuário, acabou o traficante. Ele acabava na cadeia para dedurar o traficante. Caso contrário não deduraria porque ele gostava do traficante, era alguém de confiança.
Quem eram seus clientes? Que tipo de usuários você lidava?
Maioria negros, não lidava com brancos. A cocaína me deu a chance de me misturar com gente que nunca se misturaria comigo, médicos, advogados, cientistas, empresários, cantores. Todo mundo estava envolvido. Mas só lidei com usuários por um período curto porque logo fiquei grande. Vendia US$ 2.500 em cocaína. Ninguém me procurava para comprar US$ 50, US$ 100. Só quem era muito amigo.
Algum cantor famoso?
Ike Turner, marido da Tina. Comprava pó e depois crack. Ele era cool. Fomos parar na mesma cela por um tempo. Fiquei feliz porque na cadeia você quer ficar perto de gente com cabeça parecida, que corre atrás do dinheiro. Acho que falamos sobre música, mas não sobre drogas. Era uma coisa muito particular na época, não aberta como hoje, ninguém se vangloriava como os rappers fazem hoje. O rap realmente contaminou a mente dos jovens, promove as gangues de maneira como nunca foi feito.
Quando foi para a prisão, o que aconteceu com seus negócios?
Foi confiscado ou as pessoas pegaram as casas, eu não colocava no meu nome. Chegou fácil, foi embora fácil, como dizem. Lembro do momento quando, na cadeia, percebi que estava zerado. Não podia fazer mais ligações, não recebia mais dinheiro no correio para comprar sabão, pasta de dente. Foi assustador, mas a melhor coisa, porque comecei a me reconstruir. Enquanto tinha mulheres para falar no telefone, era tudo o que eu fazia. Quando acabou, tive que pensar no que fazer da vida.
O que diria para políticos no Brasil que tentam acabar com a epidemia de crack?
Trate estas pessoas como se fossem seus filhos. O que você faria se seu filho estivesse viciado em crack? Vai colocar a polícia com suas armas e cachorros atrás dele? Você não para um vício com uma guerra. É melhor mostrar amor. Se você me odeia, eu te odeio e nós temos guerra. Mas se você me mostrar amor, eu tenho que te mostrar algum amor. É como estão lidando com a epidemia de heroína agora nos EUA, é um problema médico. Você pode ir para uma clínica, e o governo paga o tratamento. Na minha época, você ia para a prisão.
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