ALTO DO RODRIGUES RN-‘Entre a tradição e a modernidade’


167066O ponto delicado dos debates do Sínodo dos Bispos sobre a Família gira em torno de aceitar duas posições: de um lado, que não devemos desistir de nada relativo ao evangelho da família, mas, de outro, que não devemos confundi-lo com uma estrutura histórica particular, diz Andrea Grillo à IHU On-Line. Ao sugerir uma união entre essas duas posições, o teólogo pontua que a Igreja não pode perder de vista que a “história muda, e a mudança não é apenas uma perda, uma crise, a falta… as coisas mudam também para melhor, para progredir, para refinar a experiência”.

Gregorio BorgiaEspecialista em liturgia e pastoral comenta sínodo dos bispos sobre a famíliaEspecialista em liturgia e pastoral comenta sínodo dos bispos sobre a família

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Grillo sugere que se faça o seguinte exercício: se fossemos olhar para as famílias de 100 anos atrás, poderíamos afirmar que à época existiu “uma verdadeira unidade familiar”? Se a resposta for positiva, sugere, a pergunta a ser feita é: “a que preço isso acontecia? Muitas vezes os indivíduos (talvez as mulheres, ou os filhos que não eram primogênitos) pagavam um preço muito alto para esta unidade. Deviam abandonar a sua identidade, a sua formação, a sua educação, a escolha do parceiro… para o ‘bem comum’. Hoje não é possível alcançar o bem comum a esse preço. E aqui há o desafio da Igreja e da sociedade”.

Em que aspectos considera que a Igreja é autorreferecial?
O tema da autorreferencialidade, como questão subjacente, foi criado pelo Papa Francisco imediatamente após sua eleição. Na verdade, poderíamos dizer que esta é a questão fundamental, que também marcou o discurso que Jorge Mario Bergoglio fez na Congregação dos Cardeais, durante a preparação do Conclave. Talvez seja a característica decisiva do seu pontificado. Isso indica a necessidade de superar uma tendência que podemos observar como base da relação da Igreja Católica com o mundo moderno. Tanto com a “primeira modernidade”, no conflito com o protestantismo, como na “segunda modernidade”, no conflito com a sociedade liberal. Uma Igreja antiprotestante e antimoderna, inevitavelmente, aumentou em grande parte uma “síndrome de fechamento” que a levou a perder quase toda a confiança no “outro”. Assim, fechando-se gradualmente em si mesma, a Igreja perdeu não só a sua identidade, mas também a sua vocação. A solução para a autorreferencialidade é a “saída”, outra palavra-chave de seu pontificado.

O Sínodo está refletindo essa imagem autorreferencial?
Por si só, o Sínodo deveria ter sido a continuação da experiência em conciliar a “abertura ao outro”. Esta foi a sua função original. Mas deve-se dizer que a sua disciplina e a sua gestão, no período pós Conciliar, fez do Sínodo dos Bispos um instrumento de autorreferencialidade progressiva, pelo menos de duas maneiras. Principalmente por causa da falta de liberdade que caracterizou o trabalho das várias sessões, onde quase tudo foi predeterminado com antecedência. Em segundo lugar, por “falta de autoridade”: fazendo uma retrospectiva, hoje o Sínodo dos Bispos tem de fato menos poderes do que qualquer Conselho Pastoral Diocesano. Esta falta de autoridade parece uma questão básica, que deve ser enfrentada com a determinação necessária.

Muitos veem a Igreja como autorreferencial e afirma que ela deveria ser mais aberta às transformações do mundo. Quais são as vantagens e desvantagens de a Igreja “se modernizar”, digamos assim, abrindo mão, inclusive, do seu entendimento acerca de alguns sacramentos, como o matrimônio?
Gostaria de salientar que neste plano, ou seja, em relação à compreensão da autorreferencialidade, muitas vezes cria-se um equívoco perigoso. A autorreferencialidade certamente se manifesta como uma “distância do mundo”, progressiva e grave, mas também — e eu diria ainda mais arriscada — como uma distância de Deus, da sua imprevisível autoridade e da liberdade do seu Espírito. Se uma igreja é autorreferencial, antes de tudo se fecha a Deus e a sua Palavra. Uma Igreja fechada em si mesma é falha porque não se deixa mais guiar pelo Espírito, mas pelos seus códigos, suas regras e hábitos. No entanto, para poder ouvir as palavras de Deus, a Igreja deve viver a experiência de homens e das mulheres, até o fim e sem medo. Não há possibilidade de compreender os mesmos sacramentos separando-se da experiência dos homens e das mulheres. Por isto, a autorreferencialidade é um problema para a teologia, bem como para a pastoral.

É possível a Igreja abrir mão dos seus sacramentos e ainda assim manter suas posições?
É claro que a tradição eclesial tem uma grande urgência em repensar todos os sacramentos, o batismo, a eucaristia e o casamento. Pode manter as suas posições somente se for capaz de se deixar iluminar pela Palavra de Deus e pela experiência dos homens e das mulheres. Em outras palavras, a Igreja pode permanecer fiel às suas tradições se, de certa forma, for capaz de lê-las de forma diferente, de forma mais nítida e mais profunda. A mera repetição não salva a tradição, mas a afunda. A Igreja não é um museu, mas um jardim.

O senhor critica o fato de a Igreja lidar com temas, como os presentes na discussão do Sínodo, fazendo referência para si mesma, no sentido de recorrer ao Magistério e a documentos anteriores. Que papel o recurso ao Magistério deve ter no debate sobre o Sínodo?

Como é evidente, a Igreja não pode deixar de se basear em uma tradição que o Magistério interpreta com grande autoridade. Então não se deve estranhar o fato de que, mesmo no Sínodo sobre a família, há um forte apelo à tradição do magistério, antiga e recente. O problema é bastante representado por aquelas formas de referência ao magistério que gostariam de “fossilizar” a experiência da fé e da vida das pessoas nas categorias estabelecidas pelo Magistério, mas não de forma inalterável. Hoje, temos de admitir, existem posições do Magistério antigo e recente que não resolvem os problemas, ao contrário, complicam ou tornam absolutamente impossível uma solução. Darei apenas dois exemplos.

O primeiro é a “identificação do contrato e sacramento”, com o qual a tradição tardia moderna tentou salvar não apenas a verdade do matrimônio, mas também a competência da Igreja sobre o assunto. Hoje, esta solução não somente parece forçada, mas é a causa de muitos embaraços jurídicos e pastorais. Assim como o uso casual do “misticismo nupcial”, usando a linguagem dos profetas, mas para servir aos interesses do rei. Muitas vezes esta referência “mística” serve somente para dar uma aparência de argumentação para regras ou para disciplinas nascidas em mundos ultrapassados e privados de realismo.

O senhor mencionou, em artigo recente, que para compreender melhor a experiência familiar, no que se refere ao Sínodo, seria bom elaborar categorias mais adequadas, as quais poderiam ser aplicadas também à experiência litúrgica. Que categorias seriam essas?

As categorias com as quais muitas vezes falamos do casamento tiveram origem nos interesses e em questões de tipo jurídico e moral. É por isso que a linguagem por eles utilizada, muitas vezes sofre por causa desta origem. Não podemos perder esta riqueza, mas reformular estas linguagens, talvez menos claras, mas muito mais poderosas e radicais.

A experiência litúrgica da “comunhão” não é uma experiência jurídica ou moral, mas a experiência de “alimento”, de “palavra”, de “encontro”, de “cuidar uns dos outros”. Em minha opinião, é inútil questionar a experiência da família com a ajuda destas categorias-limite: a mesa, o tálamo e o banheiro (sic!) como lugares de comunhão familiar. Isso ajuda muito a não ideologizar a família, para reconhecê-la como um lugar de comunhão elementar, comendo juntos, dormindo juntos, cuidando da limpeza dos outros!

Especificamente em relação ao matrimônio, o senhor diz que as “categorias clássicas em torno do matrimônio já não são mais capazes de elasticidade”. Por quê?
Nesta tarefa de reformulação não devemos começar do zero. A história da teologia é a longa história do esclarecimento progressivo das categorias com que a Palavra de Deus sobre a união entre o homem e a mulher se torna habitável, se torna cultura, em relação à natureza e à realização em Deus. Eu gostaria que não se pensasse — como acontece muitas vezes — que por 2000 anos tivemos sempre as mesmas palavras, e agora gostaríamos de mudá-las. Não é assim. Na história as categorias de compreensão do casamento evoluíram várias vezes. O modo “romano” de compreensão logo foi acompanhado pela leitura “bárbara” do casamento. A primeira síntese destas duas “culturas” teve lugar na Idade Média. Mas, em seguida, com Trento deu-se valor à “forma canônica”, para então, com o Código de 1917, uma formulação total e rigorosa da relação entre o contrato e o sacramento. Mas, em paralelo, houve uma crescente necessidade de dar espaço à “pessoa”, ao “sujeito”, ao “sentimento”, testemunhado pelo Concílio Vaticano II. Tudo isso aconteceu no contexto de uma sociedade que, sobretudo na Europa, criava novos estilos de vida, descobria a mobilidade, os direitos dos indivíduos (e das mulheres) e repensava as formas de comunhão.

O senhor também comenta que a categoria de matrimônio entrou em crise desde o século 19. Essa crise indica, em parte, que não há mais uma adesão completa à concepção cristã de matrimônio por parte da sociedade. Entretanto, o que essa crise diz ou deveria dizer sobre o valor de verdade do matrimônio em si mesma?
Eu acho que é importante distinguir bem as questões. Em primeiro lugar, há um desenvolvimento de formas civis de vida que não podem ser reduzidas meramente à “adesão aos valores”. Fidelidade entre os casais, por muitos séculos, não era apenas um valor, mas uma necessidade. Devemos lembrar que, até o século XX, a condição de “separação” entre os cônjuges determinava para um dos dois — e muitas vezes para ambos — a impossibilidade de viver. A ideia de “autonomia financeira” de cada indivíduo é muito recente e condiciona estruturalmente a possibilidade do “segundo casamento”. Falar em “a verdade do casamento” significa dar os instrumentos ideais, materiais, psicológicos e experienciais para tornar possível a fidelidade, a indissolubilidade e a fecundidade em condições de uma sociedade “aberta” e até mesmo “líquida”. Por outro lado, o mundo não é uniforme. Por isso, é inevitável que a Igreja diferencie a sua disciplina, pelo menos, nos “grandes continentes”, ou pelo menos nas grandes regiões eclesiásticas, onde a relação entre a natureza, a cultura e a fé sofre inevitáveis diferenças, relacionados com a história e as tradições culturais.

Quem
Andrea Grillo é filósofo e teólogo italiano, leigo, especialista em liturgia e pastoral. Doutor em teologia pelo Instituto de Liturgia Pastoral, de Pádua, é professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona. Também é membro da Associação Teológica Italiana e da Associação dos Professores de Liturgia da Itália.

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Levany Júnior

Levany Júnior é Advogado e diretor do Blog do Levany Júnior. Blog aborda notícias principalmente de todo estado do Rio Grande do Norte, grande Natal, Alto do Rodrigues, Pendências, Macau, Assú, Mossoró e todo interior do RN. E-mail: [email protected]

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