A impressionante má qualidade da atual Constituição não foi ainda devidamente ressaltada pela história política brasileira. A 6ª constituição do País é, de longe, a pior pela sua completa ausência de base conceitual, um hibrido de presidencialismo com parlamentarismo, sem os alicerces de sustentação de cada um desses modelos. Na cobertura dessa falta de alicerces, um telhado de temas inteiramente alheios a uma Constituição, há nela matérias de leis ordinárias, de regulamentos que deveriam ser tratados por decretos, de regras administrativas de terceiro nível, de detalhes de direitos trabalhistas que caberiam em portarias de Ministério.
Há normas de funcionamento de órgãos que jamais poderiam entrar em um sistema constitucional. Como muro circundante de todo esse edifício, uma interminável lista de direitos de todo tipo e categoria, sem especificar quem é a parte concedente desses direitos de tudo e para todos. Para completar o quebra-cabeça, grande parte dos temas depende de lei ordinária a ser elaborada no futuro sem data.
Como fecho geral, a criação de um poder independente além dos três Poderes clássicos do Estado democrático de direito, um Ministério Público como poder de direito e, de fato, sem que se saiba qual a fonte originária desse poder novo, que nas grandes democracias é uma função e não um Poder no mesmo nvel que os demais três poderes.
A Constituição deu um peso muito maior a direitos de minorias do que à construção de um Estado Nacional como força unificadora de toda uma população. O Estado é a síntese das raízes da formação do povo como nação’, mais os interesses do total da população atual, mais as expectativas de sobrevivência das gerações futuras. Esse Estado é o fim maior, máximo, de uma Constituição, não direitos transitórios e detalhados, cuja capacidade de serem concedidos nem foram cogitados pela Constituição.
A Constituição é tão defeituosa e imperfeita, que antes de completar trinta anos está sendo remendada continuamente por Emendas uma atrás da outra, transformando-se em colcha de retalhos de cada vez mais difícil interpretação e quando leis, da maior à menor, necessitam muita interpretação se engrandece desmedidamente o poder do Supremo Tribunal Federal em detrimento dos demais poderes.
O descaso com a construção do Estado Nacional se reflete hoje no enfraquecimento geopolítico do Pais, que não consegue se impor sequer na sua vizinhança. Ninguém teme o Brasil, e o Estado que não é temido não é respeitado.
A afirmação do Estado Nacional não é cogitada como algo necessário. Promíscuas colaborações de agentes do Estado brasileiro com o Departamento de Justiça dos EUA são oferecidas gratuitamente para se voltarem no momento seguinte contra o próprio Estado que sustenta esses agentes, sem que estes atentem quais os interesses geopolíticos do Estado brasileiro. Um país periférico, como a Bolívia, ousa nacionalizar propriedades de uma estatal brasileira sem nenhum receio de represálias, algo que o Império e a República na sua formação jamais tolerariam. O Brasil é convidado a ser um dos participantes de Conferência Internacional de potências sobre a questão síria, sem que respondesse afirmativamente, sendo o Brasil o país onde vive a maior diáspora síria entre todos os países do planeta.
Absteve-se de participar de um momento crucial de seu fortalecimento geopolítico, como país-potência, enquanto, ao mesmo tempo, pleiteia ser membro do Conselho de Segurança, como se isso fosse apenas uma posição honorífica e não implicasse em responsabilidades ativas de ser um player das questões globais, correndo riscos e definindo posições claras e assumindo suas consequências.
Essa afirmação do Estado Nacional é afastada hoje, mais do que nunca, pela transferência de importante parcela do poder político do Congresso para o Poder Judiciário e para o Ministério Público, ativos como nunca em ocuparem vácuos de poder que foram abandonados pelo Executivo e pelo Legislativo. Essa invasão de competências pela máquina judiciária significa um esfacelamento do Estado Nacional cada vez menos poderoso e mais esfacelado em ilhas de poder que ocupam espaços, que desde a formação do Estado, em 1822, foram detidos pelo Chefe de Estado.
Hoje, o eixo das decisões cruciais sobre o futuro do País foi transferido para o Poder Judiciário sob o olhar apalermado, frouxo e passivo dos demais poderes, conformados em terem suas vidas reguladas por decisões que não vem de Brasília.
Não haverá futuro para a grande população brasileira com um Estado fraco e indeciso, essa será a grande questão nacional dos próximos anos. A reação contra a desintegração do Estado costuma ser violenta. Getúlio, em 1937, e as Forças Armadas, em 1964, reagiram a esse enfraquecimento com medidas fortes porque há uma capacidade reativa latente que pode irromper a partir dessa percepção de que o Estado Nacional está afundando.
A única instituição que tem plena consciência da importância do Estado Nacional são as Forças Armadas, treinadas exatamente para defender a integridade desse Estado, do qual foram formadoras ancestrais juntamente com a Coroa Portuguesa e a Igreja Católica. Vale registrar a profunda revolta do Exército com a irresponsável criação referendada pelo STF da Reserva Indígena Raposa do Sol, em plena área de fronteira, algo que só o desprezo pelo Estado Nacional pode conceber, tal a leviandade dessa decisão sem pé nem cabeça, sem lógica econômica ou social.
Na realidade, o substrato da Constituição de 88 foi criar uma barreira anti-militar como reação ao regime de 1964. Erraram na dose, criaram uma usina de direitos infinitos e nenhum dever. O resultado está nesta crise absurda, em grande parte produto dessa Constituição que montou uma plataforma onde qualquer Presidente jamais terá base parlamentar própria e, para tentar governar, precisa se compor com duas ou três dezenas de partidos, retalhando em pedaços um Governo que não funcionará com um mínimo de organicidade e eficiência.
A esse monstrengo, um político medíocre denominou de “Constituição-cidadã”, muito bonita. Mas se esqueceram que uma Constituição precisa de um Estado para sustentá-la.