A PALAVRA DO DIA-O amor do pai ajudou o filho a refazer o caminho de volta


Quaresma: tempo de transformar e ser transformado
Logo estaremos celebrando mais um domingo da Quaresma. A Quaresma é um tempo marcado de paixão, insistência, possibilidades e revisão. É tempo de “crise”, tempo de avaliar, ser avaliado, perceber que os óculos estão sujos ou embaçados precisando de limpeza ou que já chegamos num “tempo” (cronológico, mas também “kairótico”) em que precisamos forçar mais a vista para enxergar melhor, ou usar óculos, quem sabe.
É tempo de mudanças e conversões, como toda paixão provoca. Somos convidadas/os a mudar. E mudamos porque nos damos conta da paixão e compaixão que nos invade e nos impulsiona. Na Festa da Encarnação, celebramos a decisão da divindade de fazer-se corpo, tornar-se limitada e comunicar-se em nossa linguagem. Rebaixando-se, elevou-se (Filipenses 2,5-11). Exemplo de movimento espiritual e prático que devemos seguir. Por amor, naturalmente fazemos isso. Por isso, a tarefa fundamental desse tempo é o de ajudar a perceber (revelar) o amor e a paixão que movimentam a vida e impulsionam excentricamente o que é “de dentro” para fora, indo longe, onde não enxergamos nem seremos capazes de controlar.É tempo de deixar-se abraçar e afetar pela “vulnerabilidade nossa de cada dia”. Tempo de ajudar e de reconhecer, sem medo nem vergonha, de que precisamos de ajuda. E tempo de oferecer, sem receber recompensas ou elogios, o nosso “eu mesmo” para o mundo em necessidade e que “grita e geme de dores”.

Por isso, na Igreja Antiga, a Quaresma é tempo privilegiado de catequese para jovens e adultos. É tempo de nos tornarmos crianças e jovens de novo, curiosas/os com novidades e mudar de vida sempre. É tempo de abrir-se e de desaprender para aprender novidades, de arriscar-se e de aventurar-se (bem-aventurados…), de entregar-se a novas relações e de jogar-se para fora de si mesmo, de aproximar-se de outras pessoas, de reconhecer nossos erros e de pedir ajuda, de intrometer-se nas brincadeiras e de alegrar-se quando gente nova (ou antiga que tinha sumido) aparece para a roda que é de todas as pessoas: Vem, entra na roda com a gente… É tempo de catequese: “fazer ecoar a Palavra que habita em nós”. Por isso, é tempo de solidariedade radical, amante e transgressora (Mateus 15,21-28; Lucas 10,25-37; João 5,1-18; entre tantos exemplos). Tempo de transformar e ser transformados.

Parábolas revelam uma imagem de Deus que provoca mudanças

A liturgia comum de várias igrejas nos propõe uma parábola para o próximo domingo. Parábolas não são somente comparações que visavam um ensinamento. Parábolas são palavras que curam, que nos oferecem um pouco de sanidade/saúde. São terapêuticas e cuidadoras. Por isso, profundamente relacionais, transformadoras. Elas querem, de algum modo, inserir-nos no contexto da “contação de histórias” para nos envolver de tal maneira com a cena e com as personagens que provoquem na gente uma mudança de perspectivas sobre nós mesmos e sobre Deus. A imagem de Deus está muito em foco nas parábolas. E o que pensamos e falamos sobre Deus (nossas teologias) marca nosso modo de ser e de agir. Define nossos compromissos ou nossa apatia, nossa energia vivificadora ou nosso marasmo herético, tendo em vista o chamado evangélico para “revelar Deus e sua misericórdia” (Oseias 6,6).

O amor do pai ajudou o filho a refazer o caminho de volta

O texto desse domingo situa-se na caminhada ou subida de Jesus e seus discípulos da Galileia para Jerusalém (Lucas 9,51-19,28). Neste bloco, no Evangelho de Lucas, acontecem muitas coisas importantes e controversas para a comunidade e que merecem nossa atenção para a vida cotidiana. O que devemos aprender? E o mais importante: o que devemos desaprender, a fim de mudar nossas perspectivas da vida, de nós mesmos e da revelação de Deus para que “seja feita sua vontade assim na Terra como no Céu”?

No capítulo 15 deste evangelho, temos três parábolas. Em muitas Bíblias, os negritos (que não fazem parte da “palavra de Deus”) apresentam as parábolas, focando nos “perdidos”: “a ovelha perdida, a moeda perdida e o filho pródigo, que estava perdido e voltou”. Para começarmos nossa reflexão sobre a parábola do Pai Misericordioso, nosso texto de domingo, sugiro pensarmos e convidarmos a comunidade a pensar no que andamos perdendo, o que está perdido em nossas vidas e em nossas sociedades? Que caminhos equivocados andamos tomando? Que erros andamos cometendo?

Nosso texto em foco conta a história de três personagens. O pai, o filho mais novo e o filho mais velho. A fala contida nesta parábola quer nos ajudar a curar nossa imagem de um Pai duro e carrasco, de um filho invejoso e incapaz de alegrar-se com quem retorna e de um filho teimoso, egoísta e autocentrado, que descobriu mais da vida do que ele tinha em mente e é capaz de mudar (converter-se) para procurar suas origens.

O pai tem algumas posses. Parece ser alguém estabelecido na vida. Tem terras, empregados, dois filhos e os proverá com alguma herança quando fizer sua Páscoa. O filho mais novo resolve que a vida é curta e precisa ser vivida intensamente. Por isso, pede para o pai a sua parte na herança. O filho está pedindo o que lhe é de direito, sua parte. O pai lhe dá. Este filho vai embora com sua parte da herança e a torra toda. Acaba fazendo opções erradas na vida e termina empobrecido e mendigando. De filho de dono de terra torna-se pedinte e encontra-se numa situação de desumanização total. Muitas das escolhas que fazemos na vida acabam nos prejudicando e prejudicando as pessoas com quem nos relacionamos. Essa escolha do filho mais novo fez com que ele perdesse a si mesmo.

Depois de passar por muitas dificuldades, o rapaz reflete sobre o que passou na vida e, num momento de vulnerabilidade física, psicológica e espiritual, reconhece o erro (pecado) que fez escolhendo esse caminho. Entra num processo de depressão. Olha para si mesmo e não enxerga mais um filho, mas um empregado, objeto do seu patrão, sem voz e nem lugar apropriado na família. Mas, mesmo assim, ele decide voltar para casa, seu porto seguro. Ele, de alguma maneira, sabe que “sempre pode voltar”. Ele não perdeu a esperança de que o pai o escutaria e o acolheria. Ele aprendeu bem quando esteve em casa. Parece que essa história quer ajudar a mudar nossa visão de que os erros ou pecados são capazes de mudar a opinião de Deus sobre nós. O pai do rapaz não mudou sua opinião sobre o filho, mesmo depois das opções dele, causando sofrimento e prejudicando economicamente a família: o pai teve que ver seu filho partir, deu-lhe a sua herança, o que significa que ele ficou com menos terras e posses. Mas o filho volta, deseja novamente um lugar na casa do pai. Não como filho, mas como servo. A “parte dele” foi gasta e desperdiçada, e o pai não deve recebê-lo mais como um igual. Ele reconhece que errou (cometeu um pecado = errar o alvo) e decididamente quer mudar de vida. O amor do pai, nunca esquecido pelo rapaz, ajudou-o a refazer o caminho de volta.

Quando o filho refaz o caminho de volta, o pai não o espera dentro de casa. Ele SAI do seu território e VAI AO ENCONTRO do rapaz e o acolhe fervorosamente. Não faz perguntas, não o critica, não o repreende. A atitude do pai é de escutar a voz e a experiência do filho que errou e fez escolhas equivocadas. É urgente aprender a escutar novamente as pessoas que procuram a comunidade. Também nós somos chamados a sair atrás daquelas pessoas que precisam falar e querem ser escutadas, sem julgamento nem moralismos.

Comunidade como espaço de perdão e de festa

O resultado desse movimento de pai e filho é uma festa, alegria e novamente conversão. A casa do pai converteu-se em lugar de festa, perdão e acolhida.

Parábolas são para nossa cura, para nossa melhora e para nosso retorno a nós mesmos e para Deus. Sofrimentos e amarguras são superados quando nos dispomos a SAIR AO ENCONTRO de alguém (estar em relação) que procura espaços seguros, carinho e cuidado. De alguma maneira, muita gente sabe e espera que nossas comunidades ainda são espaços para voltar, mesmo para pessoas que “não vivem de acordo com as regras, gastam tudo e resolvem sair de casa e viver uma vida desregrada”. Infelizmente, ainda há quem considere um prejuízo o retorno delas para a comunidade. No entanto, a comunidade precisa voltar a ser um espaço de perdão e de festa. Precisamos nos alegrar com quem volta. Precisamos, a exemplo do pai, ir ao encontro e perceber que há muita gente que está perdida e desorientada e quer voltar, mas não encontra o caminho ou, muitas vezes, não encontra acolhida. Precisamos tomar atitudes “fora do comum”. Ninguém precisa mais de recriminações ou lições de moral. O que muda e transforma é a misericórdia e o amor.

O amor transpõe as regras, reinterpreta-as

Mas alguém não estava no espírito disso tudo. Já pensamos se fosse o irmão mais velho que o recebesse? O irmão mais velho não é capaz de alegrar-se com novidades, com mudanças nem com festa. Tem gente que está preocupada com sistemas de privilégios e clientelismo e não consegue perceber que a comunidade é espaço de ressurreição e de atitudes “não normais”.

O filho mais velho reage do jeito esperado. Ele não entende e não aceita a atitude de misericórdia do pai. Ele não está disposto a ESCUTAR nem a entrar no “outro vocabulário” que o filho mais novo tem a dizer. Ele é o filho que sempre viveu obediente sob as regras (ele é “normal”) e as encara como muito importantes e normativas para a vida das outras pessoas também. Ele não entendeu que, embora importantes, as regras não devem desumanizar ou suspender as pessoas de amarem. O amor transpõe as regras, ou melhor, as reinterpreta. A atitude do irmão lembra abertamente o que não se deve fazer: achar-se melhor do que ninguém, eximir-se de escutar outros contextos e outras experiências, achar que a sua visão e experiência é a única e deve ser a norma. Quantas famílias seriam mais felizes e quantas comunidades seriam mais espaços de ressurreição se essa atitude do filho mais velho não estivesse ainda tão presente?

O pai, no entanto, continua na sua atitude de misericórdia e de olhar carinhoso para o filho mais velho, que segue “murmurando”. Ele não o repreende tampouco. Ao contrário, quer dar mais uma chance para a vida. O pai convida o rapaz para uma festa. Quer fazê-lo entender que festejar é mais importante do que recriminar ou amargar-se. Não sabemos se o filho aceitou festejar com a família toda. Esperemos que sim.

Nesta Quaresma, somos mais uma vez convidadas/os para VOLTAR e para IR AO ENCONTRO e RECEBER quem volta para nosso meio. Para isso, precisamos mudar nossas imagens de Deus, de filhas/os pecadoras/es e de irmãos certinhos. Precisamos aprender a fazer festa sempre e reconhecer que, na festa e na alegria, estão sementes de transformação. A comunidade é convidada a ser uma parábola do Reino, onde a misericórdia e o cuidado são a expressão da vontade de Deus, mesmo para com aquelas/es que SAÍRAM e nos prejudicaram. É necessário advogar por um mundo onde tanto quem vive pelas regras quanto quem as quebra tenham um espaço garantido e que ambos os grupos precisam de alguma forma reconectar os laços perdidos.

*Por Paulo Ueti, biblista.

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