Do Justificando
Realidade e Ideologia no Sistema de Justiça Criminal
Rubens Casara
A percepção da realidade não é neutra. O que cada um de nós identifica como “realidade” é o resultado de uma trama simbólico-imaginária: o indivíduo (ser-no-mundo) ao nascer é lançado na linguagem/no simbólico (o que sempre antecipa sentidos) e passa a produzir imagens-ideias a partir dela. Há, na percepção da realidade, um conteúdo coletivo, algo “comum”, imagens construídas socialmente, mas também a contribuição de dados individuais, das imagens-ideias criadas em razão da experiência de cada um e dos desejos que são, por definição, infungíveis. Assim, por exemplo, quem acredita no uso da força, tem menos recursos intelectuais ou tem medo da liberdade tende a uma visão mais autoritária da realidade.
Tanto o aspecto “coletivo” quanto o “individual” da formação da percepção da realidade sofrem diversos condicionamentos, alguns inconscientes. Para entender como a realidade do Sistema de Justiça Criminal é construída, ou mais precisamente, como se dá a percepção da realidade pelos atores jurídicos que atuam (e constroem) o sistema de justiça criminal é importante estudar esses fatores condicionantes, dentre os quais destaca-se a ideologia.
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Poucos termos são tão polissêmicos e objeto de tanta controvérsia, ambivalência e arbitrariedade quanto “ideologia”. Diferentes sentidos são atribuídos por autores de correntes de pensamento distintas e até no seio de uma linha de pensamento, ou na produção teórica de um mesmo autor. Terry Eagleton , por exemplo, elenca seis diferentes significados para “ideologia”. Karl Mannheim , por sua vez, em sua principal obra, utiliza a palavra ideologia em mais de um sentido, como estrutura categorizada ligada a uma determinada posição social e como sistemas de representação que buscam a estabilização e a reprodução da ordem vigente (em oposição ao conceito de utopia). Contudo, trata-se de conceito fundamental para os problemas que se põem a partir da relação entre conflito social e conhecimento, ou entre objetividade científica e ponto de vista de classe. O conceito de ideologia está no centro do debate epistemológico e metodológico, além do que se revela fundamental também em perspectivas contrametodológicas.
Em breve resumo da história do conceito, Michael Löwy esclarece que a palavra foi inventada por Destut de Tracy, dentro de uma perspectiva metodológica positivista, para significar uma nova ciência das ideias e, em seguida, utilizada contra ele por Napoleão que, em polêmica com os neoenciclopedistas, chamou Tracy e seus colegas de “ideólogos” com o objetivo de desqualificá-los taxando-os de pessoas alheias à realidade. A palavra ideologia voltou a adquirir relevância, ao ser resgatada por Marx e Engels, vez que foi na teoria marxista que se construíram as mais importantes concepções de ideologia. Para entender a utilização do termo por Marx, para além de uma leitura sincrônica dos seus textos, cabe relacionar esse conceito com as várias fases do desenvolvimento intelectual desse autor. Antes mesmo de utilizar o termo, os elementos que integram esse conceito já se encontravam na crítica de Marx à religião e à concepção hegeliana de Estado. Marx e Engels, ao contrário do pensamento crítico anterior, que já se preocupava com distorções provocadas pela religião ou pela filosofia da consciência, passaram a relacionar as distorções com condições sociais específicas, com a existência material dos homens. Eles deslocaram a análise da questão para o campo histórico-social.
A crítica à religião e o desvelamento das formas econômicas mistificadas e dos princípios capitalistas e burgueses, que se afirmavam libertários e igualitários, forneceram a base para a construção do conceito marxista de ideologia. Em linhas gerais, costuma-se afirmar que a tradição marxista apresenta duas concepções da palavra “ideologia”: como imaginário social e como relação de poder, uma de caráter marcantemente pejorativo/negativo (que se aproxima da forma utilizada por Napoleão) e outra, de viés positivo, ligada à posição de classe. Em um primeiro momento, portanto, a palavra ideologia assumiu a conotação, para Marx, de ilusão, distorção da consciência que, segundo sua hipótese, se originava das contradições sociais. A segunda concepção de Marx e Engels para essa palavra, que se encontra, tanto no Manifesto Comunista, quanto em Miséria da Filosofia, a identifica como uma força material a ocupar um “lugar definido no sistema das instâncias (superestrutura), e investida em relações de poder, a serviço da classe dominante”. Não por acaso, Marx e Engels defendem que a ideologia da classe dominante tende a ser a ideologia assumida por determinada formação social. É possível, ainda, considerar O capital como fruto de terceiro momento da reflexão de Marx sobre ideologia. Nele, “Marx passa de uma simples crítica da ideologia para uma verdadeira teoria da ideologia, em que a análise do fetichismo se combina com a do condicionamento das idealidades pelos interesses sociais”.
Percebe-se, pois, que a ideologia, a partir de Marx, passou a ser vista como conceito que implica ilusões, velamentos, inversões da realidade, ou ainda, como falsa consciência a serviço da classe dominante que se insere, portanto, também no campo das relações de poder. Marx e Engels também se referem às formas ideológicas (religião, filosofia, direito, etc), à superestrutura ideológica e às esferas ideológicas, sempre como formas de consciência , ou como formas que produzem ideias dominantes, “no sentido de ideias que produzem uma dominação e no sentido das ideias que justificam uma dominação”.
Deve-se a Lenin a principal modificação/ampliação do conceito de “ideologia”. E isso ocorreu porque, a partir das lutas políticas das últimas décadas do século XIX, sobretudo na Europa Oriental, surgiu a necessidade de uma teoria da prática política, através da qual se associou o conceito de ideologia à luta de classes e também à questão da organização partidária. Para Lenin, em uma teoria da prática política, a palavra ideologia serve para designar as concepções da realidade social e política que se vinculam a determinadas classes sociais . Logo, ao lado da ideologia burguesa, existiria também a ideologia do proletariado, a ideologia dos “de cima” não excluiria a dos “de baixo”. Ainda no campo marxista, merecem relevo as contribuições de Antonio Gramsci, que, a partir da leitura de Marx, também vislumbra a possibilidade de as formas ideológicas servirem à luta de classes , rumando em direção de um conceito e de uma teoria da ideologia em termos positivos. Para Gramsci, a ideologia é uma realidade objetiva e operante, criada pela realidade social (na sua estrutura produtiva): ao mesmo tempo, concepção de mundo e lugar de constituição da subjetividade coletiva. As ideologias, a que Gramsci chama de “orgânicas” em oposição às “arbitrárias”, seriam as concepções de mundo manifestas implicitamente na arte, na religião, no direito, no folclore e no senso comum. É a ideologia que constitui o terreno em que se constrói o conhecimento e é em torno dela que se dá a “guerra de posições” e a luta pela hegemonia, isso porque cada camada social tem sua consciência e sua cultura; ou seja, tem sua ideologia, o que, por si só, revela a importância dos aparelhos ideológicos (instituições de ensino, meios de comunicação, etc.) na manutenção ou transformação da realidade social.
Como ressaltou István Mészáros , a verdade é que em “nossa cultura liberal-conservadora, o sistema ideológico socialmente estabelecido e dominante funciona de modo a apresentar – ou desvirtuar – suas próprias regras de seletividade, preconceito, discriminação e até distorção sistemática como ‘normalidade’, ‘objetividade’ e ‘imparcialidade científica’”. Por isso, práticas e teorias distanciadas da Constituição da República ainda subsistem no sistema penal brasileiro, posto que compatíveis com a ideologia dominante (na esfera penal, a ideologia da defesa social), com o conjunto de caracteres coerentes com a tradição jurídico-penal: a linguagem, o ambiente compreensivo, em que se dá a atuação das diversas agências estatais que concretizam a justiça penal. A ideologia , além de condicionar as hipóteses em que o poder estatal (em termos marxistas, “a violência organizada”) será exercido, também exerce a função de legitimar o exercício desse poder. Como ressaltou Wolkmer , o Direito “enquanto instrumentalização ideológica do poder pode ser visto como materialização da coerção, opressão e violência. O Direito tem representado, historicamente, a ideologia da conservação do status quo e da manutenção de um poder institucionalizado”.
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A ideologia está presente em cada decisão, em cada manifestação, dos atores jurídicos. Porém, uma das características da ideologia é nunca ser percebida como tal. A ideologia percebida, criticada e, não raro, demonizada é sempre a do outro, aquela que retrata a visão de mundo com a qual o ator jurídico não se identifica.
É essa ignorância sobre a função encobridora da ideologia que permite compreender a manifestação (diga-se: flagrantemente ideológica) de centenas de juízes afirmando a necessidade de um Poder Judiciário “neutro” e “técnico” ao criticar o caráter “ideológico” daquelas associações de juízes (AJURIS e AJD) que se pronunciaram contra as distorções que davam ares de golpe ao procedimento de impeachment instaurado por Eduardo Cunha.
Também é ideológica tanto a visão que naturaliza o afastamento de direitos e garantias fundamentais em nome do “combate à criminalidade” ou da “guerra à corrupção”, quanto o “primado da hipótese sobre o fato”, no qual o juiz, convencido de uma versão, passa a produzir e selecionar provas, de modo a construir uma “verdade” em detrimento dos fatos.
A ideologia também está presente na representação contra a juíza Kenarik Boujikian por, antes do julgamento colegiado, restabelecer a liberdade de indivíduos, presos provisórios, que já estavam encarcerados há mais tempo do que a pena imposta na sentença em primeiro grau (em típico exercício da tutela da liberdade individual – no que vulgarmente se chama de “habeas corpus de ofício”). Apenas a cegueira imposta pela ideologia (palavra aqui empregada em seu sentido negativo) explica o fato de alguns desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo não perceberem o ridículo que é pretender a punição administrativa de um magistrado que, em decisão jurisdicional fundamentada, buscou dar concretude a um direito fundamental.
Rubens Casara é Doutor em Direito, Mestre em Ciências Penais, Juiz de Direito do TJ/RJ, Coordenador de Processo Penal da EMERJ e escreve a Coluna ContraCorrentes, aos sábados, com Giane Alvares, Marcelo Semer, Marcio Sotelo Felippe e Patrick Mariano.
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