SÃO GONÇALO DO AMARANTE RN-A culpa da política que acha que Vale “progresso” a qualquer preço
Há tanta groselha política sendo postada sobre a questão do caos ambiental provocado pela Samarco (=Vale + BHP) a partir do rompimento de uma barragem de resíduos da exploração de minério de ferro em Mariana (MG), que resolvi resgatar algumas reflexões. Enquanto governo federal e oposição vomitam discursos pré-fabricados e hipócritas de choque diante de uma realidade de Casa da Mãe Joana que ambos ajudaram a instalar no meio ambiente brasileiro, a onda de lama mudou completamente a vida em Minas Gerais, no Espírito Santo e, agora, segue livre para criar problemas para a costa do Atlântico.
Sim, porque a ideia de que Vale crescimento acima de qualquer coisa (o trocadilho com o nome da empresa está permitido enquanto a bacia do rio Doce não estiver devidamente limpa até a última gota), que norteia uma ideia bizarra de desenvolvimento professada pelos principais partidos políticos do Brasil, PT e PSDB, está também na gênese das catástrofes. Desta. Das que já aconteceram. E das que virão.
Por isso, não creio que a grande diferença virá de partidos políticos ou mesmo de pessoas que já estão aí há um bom tempo e sim de formas de organização que passam ao largo da política institucional tradicional. A discussão pode parecer estranha em um momento em que parte da esquerda parece ter vergonha de se declarar assim (ou mudou de ideia, passando para o outro lado) e parte da ultradireita sai do armário e não tem medo de mostrar a cara – o que é ótimo, porque traz o debate para a rua, que é o seu lugar por excelência.
Há um problema entre a velha e a nova esquerda, forjado no contexto histórico em que seus atores foram criados. Não adianta mostrar uma nova luz para a interpretação da realidade: há grupos que fecham e não abrem com o padrão de desenvolvimento da ditadura. A meu ver a solução se dará através de renovação geracional, ou seja, os mais antigos se retirando com a idade para dar lugar aos mais novos, como veremos adiante.
Não sei se todos se deram conta, mas estamos vivendo tempos interessantes – para usar a expressão do finado professor Hobsbawn – no que diz respeito ao “ser” de esquerda no Brasil. Um período de mudanças em que um dos efeitos é a falta de entendimento entre grupos que, teoricamente, defendem o mesmo objetivo. A questão ambiental é um dos palcos principais dessa batalha, em que a razão tem sido morta e enterrada – principalmente pelo grupo que está no poder, auxiliado indiretamente pelos grupos que estão fora dele e não conseguem apresentar alternativas dignas.
Tivemos três grandes ciclos da esquerda no país durante o século 20. Grosso modo, o primeiro deles, anarquista, foi fomentado pelos imigrantes europeus que vieram trabalhar na então nascente indústria paulista e difundiram seus ideais. O segundo, com os movimentos comunistas e socialistas, da intentona à resistência à ditadura militar dos anos de chumbo. O terceiro veio com o processo de redemocratização do país e a liberdade de organização civil e tem um forte tom partidário.
Ou seja, a esquerda durante o século 20 variou de acordo com a relação que firmava com o Estado. Do anarquismo, que não acreditava que ele fosse fundamental para o desenvolvimento da sociedade, passando pelo comunismo, que defendeu a necessidade de destruir o Estado para depois reconstruí-lo sob a direção do proletariado, até o momento em que a esquerda acreditou que seria possível tomar o Estado dentro das regras do jogo da classe dominante, ou seja através da disputa político-eleitoral.
Veio o século 21 e uma das poucas certezas que tenho é que o paradigma do sistema político representantivo está em grave crise por não ter conseguido dar respostas satisfatórias à sociedade. Bem pelo contrário, apesar de ser uma importante arena de discussão, ele não foi capaz de alterar o status quo. Apenas lançou migalhas através de pequenas concessões, mantendo a estrutura da mesma maneira e a população sob controle. O Estado, assim como há 100 anos, continua servindo aos interesses de alguns privilegiados detentores dos meios de produção. E a maioria das disputas relevantes no seio do Estado são eminentemente intra-classe, no caso a elite.
Os atores desse terceiro ciclo da esquerda, que tem seu cerne no petismo, fracassaram (ou abandonaram, conforme é confessado na Carta ao Povo Brasileiro, já em 2002) em sua idéia original de mudar o Estado por dentro. Grande parte do PT (deixando claro que há notáveis exceções) adotou práticas que ele mesmo abominava. Bem, todos conhecem a história.
Onde está a força transformadora da esquerda hoje? Em novos movimentos sociais e em grupos de base. Ou seja, atores que dialogam com o Estado, mas que estão fora dele, atuando na transformação da sociedade pelo lado de fora. Creio que isso deve-se à desilusão com a política partidária tradicional, à incapacidade dessa velha esquerda em dar alternativas para os jovens e ao fortalecimento de grupos que nunca adentraram no sistema partidário por não acreditarem em sua natureza ou por serem dele alijados. A discussão não é, portanto, apenas criar um novo partido, mas se partidos são capazes de suprir os anseios por participação direta.
A incapacidade do sistema representativo de gerar respostas satisfatórias levou ao fortalecimento da luta da sociedade civil em frentes, como trabalho, comunicação, direitos humanos e meio ambiente. Mais recentemente e, com grande força, vieram à cena novos movimentos urbanos pela mobilidade, a legalização da maconha e contra a violência de gênero e o assédio sexual.
Ressalte-se, apenas, que sociedade civil não é a mesma coisa que organizações não-governamentais, pois, a despeito das tantas e tantas ONGs comprometidas com mudanças estruturais, muitas delas apenas reforçam as condições atuais.
O interessante é que esse quarto ciclo de esquerda, dos movimentos e da sociedade civil organizada ou não, tem muito a ver com o primeiro, lá no início do século 20. Ao questionar o papel do Estado e agir por conta própria, adota nuances de anarquismo.
Alguns podem falar que o que chamo de nuances de anarquismo seria, na verdade, um processo de aprofundamento do Estado mínimo em que o governo se exime de suas responsabilidades entregando ao mercado a gestão da sociedade. Há, por isso, de se ter cuidado e não confundir programas como “Amigos da Escola do Joãozinho” – que, na verdade, são mais daquelas migalhas que falei acima – de um processo sério de organização popular pela transformação da realidade social, econômica, cultural, política. Mas essa separação é fácil de ser feita, basta verificar quais são os impactos da ação de determinado grupo. Se elas não se encaixam em um panorama maior, de transformação real, e limitam-se à sua pontualidade, estamos falando de migalhas.
Por exemplo, ocupações de escolas por estudantes, de espaços midiáticos por movimentos feministas, de avenidas por ciclistas, de prédios abandonados por sem-teto têm um objetivo muito maior do que apenas obter concessões de curto prazo. Elas não servem apenas para impedir que escolas fechem, garantir a voz que é de direito das mulheres, criar ciclovias ou destinar um lar a quem pouco tem. Os problemas enfrentados pelos movimentos envolvidos nesses atos políticos não são pontuais, mas sim decorrência de um modelo de desenvolvimento que deprecia a coisa pública (quando ela não se encaixa em seus interesses) ou a privatiza (quando ela se encaixa) e transforma a cidade no maior e mais integrado espaço de exploração do trabalho, de concentração de renda e de favorecimento de classes de abastados.
Ou seja, as ocupações são uma disputa de poder feita simultaneamente em âmbito local e global cujo fracasso ou sucesso, no horizonte histórico, poderá levar à manutenção da pilhagem econômica, social e cultural da grande maioria da sociedade ou levar à implantação de um novo modelo – mais humano e democrático.
O problema é que toda mudança leva a um enfrentamento. No caso da questão ambiental, por exemplo, há uma disputa sendo travada entre pessoas da velha e da nova esquerda via mídia. O discurso de que o desenvolvimento é a peça-chave para a conquista da soberania (o que concordo) e que, portanto deve ser obtido a todo o custo (o que discordo) tem sido usado por pessoas que foram comunistas, tornaram-se petistas e hoje fazem coro cego ao PAC do governo federal.
Mantém viva a ideia de que, na prática, é necessário sacrificar peões para ganhar o jogo. E, até agora, não vi por parte de nenhuma partido político que ergue a bandeira ambiental um discurso de mudança estrutural, o que inclui bater de frente com o próprio capitalismo. Porque, convenhamos, “capitalismo verde” é banqueiro com camisa do meu eterno Palmeiras. Dá para obter concessões com muita pressão, mas o principal causador de impactos ainda é o próprio modo de produção.
Do outro lado, os movimentos sociais e ONGs sérias que atuam nesse campo defendem que o crescimento não pode ser um rolo compressor passando por cima de pessoas e do meio ambiente. Por suas ações, que impedem um laissez-faire generalizado, são taxados de entreguistas e de fazerem o jogo do capital internacional. Nos últimos tempos, presenciamos isso nas críticas levantadas contra os movimentos que protestaram contra a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte ou da do rio Madeiro, nos impropérios lançados às comunidades que protestaram contra as obras de transposição de parte das águas do São Francisco e na lentidão para que a responsabilização dos grandes atores envolvidos na tragédia de Mariana (Vale e BHP) não seja cosmética.
O Congresso Nacional está discutindo um novo Código de Mineração que deveria ser rigoroso na responsabilidade das empresas, nas ações de prevenção, na garantia de estrutura para fiscalização e nas situações em que a proibição de exploração é o único caminho. Sim, porque às vezes para manter o interesse da maior parte do público, o minério deve ficar onde está até que se encontre uma maneira verdadeiramente racional de extraí-lo. Mas muitos políticos, do Executivo e do Legislativo, da base a aliada e da oposição, foram eleitos com recursos da Vale e de outras mineradoras. Daí, fica difícil.
É claro que os países do centro querem que nós arquemos com o ônus da preservação do planeta. O mercado de carbono, na prática, é isso: compra-se créditos de terceiros (que vão adotar práticas ou projetos que absorvam carbono da atmosfera) para que se possa poluir. Ao mesmo tempo que isso acontece, esses países se beneficiarão do alargamento da já grande distância de desenvolvimento entre o centro e a periferia.
Mas o atual modelo, em plena vigência no Brasil, tem um potencial destruidor muito grande, além de ser extremamente concentrador. Ou seja, o resultado da pilhagem dos recursos naturais e do trabalho humano, mantendo o padrão adotado até aqui, continuará nas mãos de poucos, sejam eles brasileiros ou estrangeiros. Distribuição real é uma ideia que pouco se ouve por aqui.
Como se resolve esse enfrentamento? Na minha opinião, não se resolve. O problema entre a velha e a nova esquerda está no contexto histórico em que seus atores foram formados. Para alguns desses atores, simplesmente mudar de partido não resolve nads, continuam sendo as mesmas pessoas.
Não adianta mostrar fatos novos ou uma nova luz para a interpretação da realidade, há grupos que fecham e não abrem com o padrão de desenvolvimento forjado na ditadura – paradoxalmente a mesma ditadura que os torturou. A meu ver a solução se dará através de renovação geracional, ou seja, os mais antigos se retirando com a idade para dar lugar aos mais novos. É triste que seja assim, mas tendo em vista os últimos embates, não acredito em conciliação possível.
E, provavelmente, partidos políticos, novos ou velhos, não serão a estrutura adotada por aqueles que construirão esse quarto ciclo. Eles trabalham junto com o Estado de forma tática, mas possuem discordâncias gritantes de longo prazo que ditarão outras formas de agir e pensar.
Tudo o que foi discorrido aqui, é claro, diz respeito aos grupos que se vêem como progressistas. Agora, como diria o mestre GARRINCHA, Manuel (1958), falta combinar com o inimigo.
Porque a história mostra que apesar da esquerda ter capacidade de influenciar a realidade no país, ela não foi capaz de transformá-la radicalmente.
E a menos que algum dos novos ciclos traga respostas para romper com a estrutura atual, continuaremos vendo eles se repetirem nos fracassos.
E a lama de Mariana será apenas mais uma foto triste em um livro de história do futuro, mostrando como o Brasil se tornou inviável no século 21.
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