NATAL RN-“Passamos medo, não respeito”
Cledivânia Pereira
Editora executiva
Aura Mazda
Repórter
A função policial está muito mais ligada a um cenário de violência, que de proteção. E essa carga negativa é transferida para homens e mulheres que escolheram – ou foram levados por circunstâncias da vida – para a carreira que tem como objetivo manter a ordem pública. Aqui no RN, a Polícia Militar vê cada vez mais ampliado o leque de inimigos a combater. Corrupção interna, falta de estrutura, falha no treinamento, baixa remuneração e falta de apoio e respeito social disputam com bandidos a atenção diária dos praças.
Casos como o da ‘Viatura 924’ mancham as fardas dos policiais como um todo e, de tão repugnantes, os atos de corrução e violência praticados por quem deveria proteger a população dificultam o possível filtro entre bons e maus PMs. A Tribuna do Norte conversou com um policial que trabalha em uma viatura da PMRN há mais de 15 anos e que se orgulha de ser visto – pelos filhos, amigos e parentes – como um herói. Um policial que tem uma postura bem parecida com a de um dos PMs abordados pela dupla de ‘corruptos’ exposta nas investigações da ‘Viatura 924’, mas que não aceitou participar de ‘esquemas´ alegando que o bem mais valioso que possuía era a honra pela farda.
O fato do policial entrevistado não querer se identificar justamente por ter uma boa conduta policial, mostra a inversão de valores dos tempos atuais: “Somos invisíveis para a sociedade (…). Mas, quem não gosta de polícia, paga nas mãos de bandido”, ressalta. Abaixo, a rotina, as impressões e a vida da PM nas ruas de Natal.
Começo
“Estou na Polícia Militar há 16 anos. Antes, passei pelo Exército e me identifiquei com o serviço militar. Além da estabilidade profissional, eu sabia que na PM, se eu trabalhasse certo, só dependia de mim mesmo. Na época em que entrei na PM, o treinamento foi bom… com exceção da parte de tiro… o treinamento de tiro é pouco”
Rotina
“Você sai de casa sem saber se volta. Não sabe se volta bem…”
Perigo
“Minha primeira experiência de trabalho na PM foi em uma base policial. Passei seis meses nessa função e foi tudo bem tranquilo. Mas, há 15 anos, a realidade da violência em Natal era outra. Naquela época, trabalhar em uma base de polícia era bem tranquilo. Hoje, a violência cresceu… as bases fixas não possui estrutura para dar segurança aos PMs e quem trabalha nessa posição fica muito exposto. Hoje, trabalhar em viatura é perigoso, mas trabalhar em base, é mais ainda.”
Rua
“Na polícia, a gente sempre diz: PM que não trabalhou na rua, não tem experiência… é um civil fardado. Por isso que eu logo pedi para trabalhar em uma viatura, na patrulha. Inicialmente queria ganhar experiência… mas, confesso, que me identifiquei com o trabalho… e já dura 15 anos”
Equipe
“Trabalhar em equipe não é um problema. Mesmo porque os policiais se juntam por identificação. A equipe é formada por três PMs. Dificilmente, dois policiais corretos vão se unir a um terceiro com comportamento duvidoso e vice-versa. Pode ser que ocorra de um PM ainda novato e sem experiência de rua cair em uma equipe de maus policiais… E é possível que os dois façam ‘esquemas’ sem o conhecimento do terceiro da equipe. Isso pode ocorrer. Mas uma situação dessa não dura muito tempo”
Bons e Maus
“Dentro da corporação, todo mundo sabe quem é o bom e o mau policial. Há uma convivência profissional entre todos… mas todos sabem quem é quem. Eu nunca fui abordado por nenhum companheiro para fazer algo de errado. Por que? Porque sempre deixei clara a minha postura profissional. Mas, todo mundo sabe quem faz ou não coisa errada na rua. O oficial sabe… o comando sabe… Mas o sistema está preso pela burocracia… não adianta apenas ‘ouvir dizer’ que alguém faz algo errado… é preciso provar… e provar é muito complicado… Por isso, há vista grossa para o problema”
Assédio
“A população também assedia muito o policial na rua… Quando a gente flagra um dito ‘cidadão de bem’ com algo errado, ele pede pra gente aliviar, não levar para a delegacia… quando a gente leva, eles ficam com raiva. De qualquer forma, ele vai falar do nosso trabalho: se a gente levar pra delegacia, ele fica com raiva; se a gente deixar passar, ele vai relatar o episódio para amigos. Eu prefiro que ele reclame porque eu fiz o certo… é melhor do que ele sair falando que aliviei a situação. Todo policial passa por isso”
Ganhar lanche
“Tem uns comerciantes que dizem: passe aqui, que eu dou o lanche. Se a gente aceitar, amanhã ele vai cobrar esse lanche ou sob forma de segurança ou pedindo para a gente aliviar algo errado que ele venha cometer. Você fica preso a alguém por causa de um lanche…”
Desarticulação
“Há uns 10 anos, o Comando da PM fazia troca de PMs de determinadas áreas para desarticular redes de influência… Mas hoje, isso ocorre pouco”
Minoria
“Digo sem medo de errar: os maus policiais são minoria. O problema é que quando eles erram e esses erros são encontrados, ganham proporção que desmancham qualquer trabalho que fazemos de bom. Por exemplo: ninguém mostra quantos crimes conseguimos evitar, quantos bandidos a gente tira de circulação. Agora é mais raro, mas antes da implantação do Samu aqui na Grande Natal, quem transportava mulher grávida para ter filho, mediava conflito de pessoas com doenças mentais, por exemplo, era a Polícia Militar. Esse trabalho é silencioso… a rotina do bom policial é a de mediar conflitos… dos simples aos mais complexos conflitos. Mas, esse trabalho diário é silencioso”
Corrupção
“Quando surge um caso de corrupção ou violência praticado por PM, toda a corporação paga o preço. Tenho vergonha. Até os meus amigos comentam comigo… ‘E aí, conhece aqueles policiais? Viu aquela matéria?’… todos apontam o dedo como se essas práticas ruins fossem generalizadas. Acho que a integração sociedade/polícia é muito difícil de ser recuperada. Hoje, somos profissionais invisíveis para a população. Não conseguimos mais passar respeito… conseguimos passar medo, não respeito… também somos vistos como cidadãos inferiores… como se não tivéssemos o direito de viver com dignidade, com boa estrutura de trabalho… Já ouvi questionamentos sobre o motivo de a polícia precisar de um carro maior para patrulhar. Como se a gente tivesse sempre que trabalhar com o pior carro”
Preconceito
“Hoje, o que mais me incomoda é o fato da população não reconhecer o trabalho que fazemos. Sofremos muito preconceito da sociedade. É igual aquele ditado: ‘Quando a polícia está perto, incomoda, quando está longe, faz falta’. E acho que esse preconceito vem aumentado com o tempo”
Violência
“Quem não gosta de polícia, paga na mão de vagabundo. Esse ditado é sempre repetido nos quarteis. Acho que a sociedade já está pagando na mão de vagabundo. A criminalidade está crescendo, a polícia se sente acuada… É difícil saber que as pessoas que a gente defende têm outra impressão do nosso trabalho. Desestimula”
Cidadão ‘de bem’
“Hoje, quem mais atrapalha e prejudica o trabalho do bom policial é o cidadão de bem. Devido ao preconceito que existe contra a gente, o cidadão não entende ou aceita que a abordagem policial é justamente para garantir a segurança das pessoas de bem. E quando nós, bons policiais, chegamos para uma abordagem, as pessoas vão dizendo: somos trabalhador… Ora, não está escrito na testa que alguém é um trabalhador. É preciso entender que estamos fazendo o nosso trabalho… Se não encontrarmos nada na abordagem, esse cidadão de bem será liberado”
Plantão
“Nosso dia a dia é bem puxado. A gente chega às 8h no quartel pronto para trabalhar. Não tem hora certa para almoço, para jantar… São 24 horas dentro de um carro. Temos alguns pontos de apoio… as bases, o batalhão. Nossas refeições dependem das ocorrências. Se tudo for tranquilo, dá até para tomar banho durante o plantão. Mas, se tiver ocorrência, não temos tempo de nada…”
Polícia Civil
“Se eu disser que todas as ocorrências que chegam em uma delegacia de plantão após as 5 da manhã são feitos os flagrantes, eu estaria mentindo. Após esse horário, as delegacias não querem receber as ocorrências, mesmo com o plantão deles também só acabando às 8h. O delegado diz: “Não… essa hora, leve para a delegacia do bairro”. As delegacias de bairro abrem 8h, isso quando chega um agente. Muitas vezes a gente fica com uma pessoa detida rodando até que alguém receba e faça esse flagrante… Com isso, é comum que o nosso plantão – que deveria terminar às 8h – se estenda até meio dia, uma hora da tarde. Depois que a gente pega alguém na rua, a responsabilidade por essa pessoa é da equipe da viatura, até que a gente consiga uma delegacia que receba. É por isso que muitas vezes quando vai amanhecendo o dia e que tem um chamado ou a equipe vê um suspeito, se faz vista grossa. Porque as equipes sabem que essa abordagem pode resultar em muitas horas além do horário. Há outros delegados que fazem a gente rodar de uma delegacia para outra… a gente fica gastando combustível e o nosso tempo…”
Estrutura
“Quem faz a manutenção das viaturas, muitas vezes somos nós, policiais. Pneu de viatura… quem dá são os borracheiros… os pneus recauchutados… Já tirei dinheiro do bolso para trocar lanterna de viatura, outras peças… Isso é comum”
Conflito
“Convivemos bem, mas tem alguns policiais que ninguém quer entrar em uma viatura… dividir o trabalho”
Salário
“A questão da ética vem de berço. Muita gente passa o mês todinho com um salário mínimo e de forma digna. Mas, dependendo da índole da pessoa, ele pode ganhar até um milhão de reais que vai continuar fazendo coisa errada. Mas, porém, se o policial ganhar melhor, os bons policiais vão ter mais dignidade. Hoje, no plantão, a gente recebe R$ 10 para cada refeição… Então a gente é obrigado a procurar um lugar que tenha alimentação nesse valor, por exemplo”
Dever
“É gratificante chegar em casa, depois de um plantão de 24h, e dormir tranquilo. Imagino que, quem faz algo errado, não consegue dormir quando chega em casa. Mesmo que alguém vá denunciar você por algo, se você fez o certo, você consegue se explicar”
Herói
“Meus filhos gostam da Polícia, mesmo porque eu sou o reflexo da PM dentro da minha casa. E eu sempre quis manter essa boa visão que meus filhos têm da PM. Meus filhos me têm como herói… Eles acham a profissão bonita… e eu alimento isso neles”
Efetivo
“Quem entra na PM, hoje, quer um emprego estável e conseguir alguma forma de ficar fora das ruas… fazer um trabalho burocrático. A maioria entra para passar um tempo enquanto não consegue ser aprovado em outro concurso… Mas muitos nunca saem da corporação e nem conseguem se transformar em bom policial. A maioria não quer ser polícia, quer um emprego”
Futuro
“Ainda tenho 10 anos de polícia. Quero ir para um batalhão especializado… estudar mais e ir para um batalhão especializado. Já fiz alguns cursos.
Desejo
“Gostaria muito que quando a população olhasse para um PM dissesse ‘Vá com Deus’… Quem sabe se naquele momento a gente não está indo ajudar um parente, um amigo de quem nos vê, não é? Só espero isso, um ‘Vá com Deus!’”
Qual a sua sensação quando encontra um Policial?
“Eu até acredito no policial, mas o que deixa a desejar são as leis .O PM trabalha, mas na mesma hora a justiça destrói tudo que ele faz, porque na maioria das vezes solta o bandido”.
João Araújo da Silva, 68, vigilante aposentado
“Eu me sinto mais protegida, porque quando eu não vejo um policial na rua, sei que estou sujeita a ser assaltada. Quando sei que a policia está por perto, fico bem mais relaxada”.
Suzete Gomes Dantas, 60 anos, aposentada
“Eu sinto ironia e hipocrisia, pois sei que estou vendo um policial hoje e sei que só vou ver de novo muito tempo depois. É sempre uma coisa esporádica, pra meramente fingir que faz aquele papel. Eu não me sinto protegida, acho é engraçado”.
Juliana Braz, 22 anos, psicóloga
“Dependendo do local, se for no centro da cidade, por exemplo, o sentimento é de segurança, mas se não for eu não confio na polícia. Já passei por situações em que fui confundido com bandidos e não foi fácil, levaram o meu dinheiro do trabalho, que era honesto”.
José Aldeci Gomes, 31 anos , comerciante
“Totalmente seguro eu não me sinto. Principalmente pelas últimas reportagens e entrevistas sobre o tema. Mas também acredito que isso não acontece com todos. A polícia tem que se dar mais o valor, respeitar e saber o seu papel desde quando ele passou na prova, fez um curso e jurou ser honesto e proteger a população”.
Lucas Felipe, 16 anos, estudante
“Eu não me sinto seguro, fico desconfiando de quem é policial de bem e quem não é. Se ele vem pegar o dinheiro da gente, dar segurança a sociedade ou não. Mas ainda acredito que 90% é do bem, e o restante não é correto. A noite é o horário que eu me sinto mais inseguro”
Carlos Alberto Formiga, 56 anos, vendedor ambulante
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