ALTO DO RODRIGUES RN-Um pacote de equívocos que gera e mantém o caos’
Entrevista – Julita Lemgruber
Socióloga
Leslie Chaves
Instituto Humanitas Unisinos
A combinação entre uma legislação que agrava penas e contribui para a superlotação dos presídios e a morosidade judicial que obstrui o fluxo de entrada e saída de encarcerados dos presídios é o principal fator que gera e sustenta a situação caótica do sistema prisional brasileiro. A análise é da socióloga Julita Lemgruber, que desde os anos 1980 estuda o tema e afirma que esse cenário se mantém inalterado ao longo de décadas. De acordo com a pesquisadora, os principais punidos por esta estrutura são os que estão na base da pirâmide social do país. “Aqui quem acaba sendo penalizado com a pena de prisão, com raríssimas exceções, são os pobres, os negros, aqueles que moram nas periferias, enfim, quem não tem voz nem poder nessa sociedade”, aponta.
A socióloga destaca que os presídios não são e nunca foram espaços de ressocialização e nem a solução para oferecer segurança. “É uma hipocrisia dizer que se privará alguém de liberdade para que essa pessoa aprenda a viver em liberdade. É uma contradição em termos e uma forma de justificar a existência da pena de privação da liberdade”, constata. E ainda afirma com veemência que “não há relação de causa e efeito entre aumento do número de presos e queda do número de crimes, em nenhum país do mundo”.
De que maneira a senhora avalia o sistema prisional hoje no Brasil?
O punir o pobre no Brasil é caótico e essa é uma realidade de décadas, isso não é novidade. Eu particularmente já dei depoimentos em três CPIs [1], uma nos anos 1980, outra nos anos 1990 e outra nos anos 2000. Entre 1980 e 2010 houve três CPIs e agora recentemente houve uma quarta, só nesse período em que eu me dedico a esse assunto. Nessa última CPI me convidaram para dar um depoimento, mas eu me recusei porque eu já depus em três CPIs com quase dez anos de intervalo entre uma e outra e é impressionante, se você ler as análises e as conclusões finais dessas CPIs, elas são rigorosamente as mesmas: reconhecem o fracasso e caos absoluto do funcionamento do sistema penitenciário no Brasil. Então isso não é novidade para ninguém, é uma realidade de décadas e não se faz absolutamente nada. Acho que a gente chegou a essa situação por várias razões, mas é evidente que o sistema de justiça criminal não funciona. Mas, vendo de uma outra perspectiva, dentro dos objetivos a que esse sistema se propõe numa sociedade como a brasileira, extremamente hierarquizada e desigual, o sistema penitenciário está aí para criminalizar a pobreza, e ele cumpre esse papel muito bem, pune muito bem. Aqui quem acaba sendo penalizado com a pena de prisão, com raríssimas exceções, são os pobres, os negros, aqueles que moram nas periferias, enfim, quem não tem voz nem poder nessa sociedade.
Em alguns de seus trabalhos a senhora aponta que o sistema prisional é a expressão de uma guerra contra a pobreza. Poderia falar um pouco sobre o que significa essa guerra?
O sistema penitenciário é a maior prova de que o sistema de justiça criminal funciona de forma a criminalizar a pobreza. O sistema penitenciário é o último momento desse ciclo de funcionamento. Na verdade, se fizéssemos uma análise ainda mais ampla, eu diria que o sistema de justiça criminal funciona de acordo com as leis vigentes nesse país, que também são normas que desde a sua origem têm o objetivo de deixar no claro aquelas ações que se deseja deixar no claro e criminalizar as ações de quem não tem poder e não tem voz na sociedade.
Há um estudo belíssimo de um jurista, já falecido, chamado Augusto Thompson. Ele escreveu o livro Quem são os criminosos? O crime e o criminoso: entes políticos (Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2007) e nessa pesquisa ele mostra como tudo isso funciona de modo que o resultado final seja criminalizar os pobres e os sem poder. Desde o momento em que são feitas as leis há uma série de ações do cotidiano que acabam sem ser criminalizadas porque não interessa que se as criminalize. Então, as leis também são desenhadas de forma a proteger os interesses de uns e não de outros. É todo um sistema que funciona, sim, é eficaz, sim, para os objetivos a que se propõe, se for considerado que esses objetivos são os de criminalizar a pobreza. Isso acontece aqui e em qualquer país do mundo.
O sistema penal se propõe a atender o binômio punir/ressocializar os apenados. É possível a coexistência desses dois objetivos? De que forma?
São dois objetivos absolutamente antagônicos e é uma hipocrisia a gente insistir na possibilidade de que a privação da liberdade possa contribuir para reformar alguém. Sabemos que o sistema penitenciário está aí para punir o pobre, e pune muito bem. Esses sistemas não foram feitos para transformar criminosos em não criminosos. É uma hipocrisia dizer que se privará alguém de liberdade para que essa pessoa aprenda a viver em liberdade. É uma contradição em termos e uma forma de justificar a existência da pena de privação da liberdade.
O que eu tenho insistido é que a gente precisa ter clareza também de que no Brasil há problemas adicionais graves. Temos uma explosão do número de presos; hoje há mais de 600 mil encarcerados e só tem lugar para aproximadamente metade deles. Isso é resultado também de legislações inadequadas e funcionamento absolutamente caótico na entrada e na saída do sistema.
A primeira legislação, ainda nos anos 1990, instituindo os crimes hediondos, fez com que se oferecessem mais restrições na obtenção de qualquer possibilidade de benefício legal aos condenados por delitos dessa categoria. Esse foi o primeiro momento em que se agravaram penas, sempre com a ideia equivocada a que os juristas chamam de legislação do pânico.
O que aconteceu é que nos anos 1990 houve uma onda de sequestros, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, e aí surge a lei dos crimes hediondos com a expectativa de que isso pudesse inibir os sequestros. Depois, a filha da Glória Peres [2], Daniella Peres, foi assassinada e aí se considerou que também os homicídios seriam crimes hediondos. Em seguida, o tráfico de drogas também passou a ser considerado um crime hediondo. Então, hoje esse pacote de crimes hediondos é muito diverso, inclui crimes que vão do sequestro ao tráfico de drogas. Isso realmente contribuiu com a limitação dos benefícios legais que pessoas condenadas por esses crimes poderiam obter e também contribuiu muito para a superlotação do sistema.
Piora ainda mais em 2006, quando entrou em vigor a lei do tráfico e agravou essa situação porque tínhamos como pena mínima três anos para o tráfico de drogas, e a partir dessa legislação aumentou para cinco anos o mínimo para condenações por este delito, além do que não houve a distinção entre usuário e traficante, abrindo uma margem enorme para a rotulação de pessoas pobres, negras, faveladas como traficantes. Essa lei não ajudou.
Sabemos que nos últimos 15 anos a população prisional em geral triplicou, mas a população presa especificamente por tráfico de drogas mais do que triplicou nos últimos cinco anos. Então, essa lei claramente piorou a situação dos presídios. Tem-se de um lado legislações que contribuíram para a explosão do número de presos, e por outro lado tem dois momentos do funcionamento do sistema de justiça criminal que também contribuem para isso. Cerca de 40% dos nossos presos são provisórios, e isso é um número impensável em alguns países do mundo. O máximo admitido é que se tenha 15% dos presos como provisórios, isto é, aqueles que ainda não estão condenados e aguardam por julgamento. Pense, no Brasil 40% do contingente de 600 mil presos são provisórios, isso é um escândalo, e ninguém se assusta com isso! E por que isso acontece? Porque essas pessoas não têm quem as defenda, e ficam mofando nas cadeias ou nas delegacias aguardando julgamento. É uma vergonha para o país.
Temos um problema grave na entrada do sistema penitenciário e também na saída, porque grande parte dos presos já condenado poderia ter algum benefício legal, como progressão de regime e livramento condicional. Entretanto, esses benefícios atrasam muito porque o sistema não está preparado para fornecer ao judiciário toda a documentação necessária para que sejam concedidos. Por sua vez, o judiciário e as varas de execução estão repletos de processos e não conseguem dar encaminhamento a tempo para as solicitações desses benefícios. Assim se tem um estrangulamento do sistema na entrada e na saída.
Então temos um sistema estrangulado e ainda, como pano de fundo, legislações que agravaram as penas, e — importante que se diga — que não contribuíram para diminuir a criminalidade.
De que modo a senhora avalia o campo de estudos acadêmicos que trata das discussões sobre segurança e sistemas punitivos? Que papel tem a academia nesses debates?
Lamentavelmente o sistema penitenciário jamais foi um assunto de interesse da academia, pelo menos ao longo dessas décadas que eu acompanho esse tema. Isso é muito triste porque uma das coisas que poderia propiciar avanços nessa área é o compromisso de estudiosos, tanto alunos quanto professores, em discutir essas questões e buscar alternativas, seja para o funcionamento da prisão, seja para o aperfeiçoamento de algumas das estratégias que compõem a atividade do sistema penitenciário. Hoje, se formos procurar livros sobre prisões no Brasil, não encontraremos nem uma dúzia. Ao contrário, eu diria que nos últimos 20 anos a temática da segurança pública, por exemplo, vem despertando muito interesse na academia. Atualmente estão espalhados pelo Brasil vários centros de estudos dedicados aos temas da segurança pública, da violência, das polícias. Mas, lamentavelmente, o sistema penitenciário não foi um ponto que seduziu os estudiosos do sistema de justiça criminal. Se essa situação fosse diferente, talvez tivéssemos mais avanços.
De que forma a senhora vê as discussões sobre a proposta de privatização dos presídios? Qual a questão de fundo em torno destas privatizações?
Acho que claramente nesse momento há muitos interesses em jogo. A própria discussão da redução da maioridade penal e a possibilidade do aumento significativo no número de presos que essa decisão implicaria vão, necessariamente, provocar a discussão sobre a necessidade de criação de mais vagas nos presídios. A inclinação para uma medida que num primeiro momento parece mais fácil e rápida, que é a privatização, costuma surgir nesses momentos.
Ninguém para e pensa que se atentássemos para as questões que eu apontei antes, como o estrangulamento do sistema penal na entrada e na saída dos presos e a legislação equivocada que agrava penas, talvez tivéssemos metade do número de apenados que temos hoje no país. Então, nesses momentos em que há superlotação, em que há riscos de redução da maioridade penal, essa discussão da privatização é muito presente. Eu sou radicalmente contra, tenho várias ressalvas quanto a isso. A primeira diz respeito a uma questão ética, política e ideológica, com a qual geralmente ninguém está muito preocupado. É o Estado que priva alguém de liberdade, então é ele quem tem que administrar essa privação da liberdade, não pode entregá-la para a iniciativa privada cuidar. Isso seria um absurdo do ponto de vista ético, moral, político e ideológico. Mas esse debate não é feito.
Outro ponto importante é que prisões privadas não custam mais barato. O custo per capita de um preso em uma prisão privada é até três vezes maior do que em uma prisão pública. Os contratos desse tipo de presídio são de até de 30 anos. Na verdade, se tivéssemos um funcionamento adequado do sistema penitenciário, não haveria a preocupação com a criação de novas vagas.
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