SÃO GONÇALO DO AMARANTE RN-Vestígios de uma guerra, por Felipe Costa


Vestígios de uma guerra, por Felipe Costa

Vestígios de uma guerra

por Felipe Costa

Nas últimas décadas, o Oriente Médio – termo comumente utilizado para uma região localizada a leste do mar Mediterrâneo, envolvendo ao mesmo tempo duas zonas de transição entre três continentes: Europa e Ásia, ao norte, e África e Ásia, ao sul – tem se caracterizado pela instabilidade política e pelos conflitos bélicos. É compreensível, portanto, que se levantem dúvidas sobre a presença humana na região.

Por que palestinos e israelenses vivem em conflito há tanto tempo? Transcorridos quase 70 anos desde a criação do estado de Israel (1948), por que ainda não há um estado da Palestina igualmente reconhecido? É viável manter populações humanas não belicosas e autossustentáveis na região? É factível trabalhar em prol da construção de uma sociedade transnacional, na qual cidadãos de origens, etnias e crenças religiosas diferentes possam vir a conviver de modo civilizado?

A espuma não explica a onda

A imprensa costuma oferecer ‘explicações’ para os conflitos no Oriente Médio com base em argumentos de natureza religiosa ou étnica, a exemplo, aliás, do que faz hoje para explicar a crise brasileira, evocando ‘os males da corrupção’ – em ambos os casos, esse tipo de raciocínio ‘invertido’ equivaleria a querer explicar as ondas do mar a partir da espuma… O grande público pareça ter uma predileção pela espuma, mas o fato é que as narrativas habitualmente divulgadas pela imprensa são muito frágeis, incapazes de resistir a qualquer análise minimamente criteriosa. Para início de conversa, ainda que todo e qualquer conflito intergrupal tenha uma carga ideológica própria, a ideologia por si só não é suficiente para explicar a origem e manutenção de conflitos bélicos dessa magnitude. Deve haver algo mais substantivo por trás dos adjetivos que israelenses e palestinos vivem a lançar uns contra os outros.

Qualquer explicação consistente para o que se passa no Oriente Médio deve ter uma base material – e.g., o uso recursos naturais. A exploração das reservas de petróleo existentes na região seria um exemplo. Todavia, um recurso particularmente crucial naquela região são as fontes de água. A esse respeito, aliás, cabe registrar aqui os comentários de um observador:

Veja o conflito na bacia do rio Jordão. Em 1990, o rei Hussein declarou que a água era a única questão que o levaria à guerra com Israel. A retórica é recíproca: o antigo ministro da agricultura de Israel, Ben-Meir, disse basicamente a mesma coisa. Não é difícil entender o porquê. Já com seus tamanhos populacionais atuais, Israel, Jordânia e Síria são importadores de cereais. Os três países têm um crescimento populacional explosivo. Israel está tentando abrigar um milhão de imigrantes vindos da antiga União Soviética. A população da Jordânia vai dobrar em 20 anos e a da Síria em 18.

Israel e a Jordânia têm quantidades semelhantes de terras cultivadas (cerca de 4.000 km2) e de população (cerca de 5,5 milhões de habitantes). Israel irriga 42 por cento de suas terras cultivadas, enquanto a Jordânia irriga, com metade do mesmo volume de água, apenas 16 por cento. As expectativas de um maior crescimento econômico da Jordânia teriam um grande impacto no uso da água, mesmo se a população não estivesse crescendo; o consumo de Israel já excede o seu suprimento de água doce renovável.

O sonho palestino de uma Cisjordânia independente já seria difícil o bastante se fosse apenas uma questão de terras, idioma e religião. Cerca de 25 a 40 por cento do abastecimento de água doce de Israel vem de um aqüífero localizado em subsolo da Cisjordânia – as terras ocupadas por Israel após a Guerra de 1967. Durante sua ocupação, Israel tem feito sérias restrições ao volume de água que os árabes da Cisjordânia podem bombear. Todavia, Israel tem superutilizado o aqüífero para uso próprio.

Israel também ocupa as Colinas de Golan, uma parte da Síria. O controle dessa área dá a Israel acesso às encostas que drenam água para o rio Yarmük. Esse é o último rio inalterado que deságua no mar da Galiléia, definindo a fronteira entre Síria e Jordânia. O mar da Galiléia é a principal fonte de águas superficiais de Israel e dele parte uma rede de canais e dutos, o aqueduto Kinneret-Negev, levando água para o sul. A Síria e a Jordânia têm planos de represar o Yarmük, em Maqarin. Israel já anunciou que destruirá o reservatório, caso seja construído, temendo que ele reduza o volume de água que Israel pode extrair do mar da Galiléia. O belicoso Comitê dos Moradores de Golan, armado com brochuras em inglês e endereço eletrônico, deixa clara sua posição em relação ao território ocupado: ‘Não há lugar para negociação territorial… Golan controla 30 por cento dos recursos hídricos de Israel’. – Stuart Pimm, Terras da Terra (Editora Planta, 2005).

Trocando em miúdos, os conflitos no Oriente Médio – como, de resto, em qualquer lugar do mundo – têm causas materiais. Na verdade, há quem diga que, em função da deterioração nas fontes de água e outros recursos vitais, os conflitos bélicos devem se intensificar ainda mais.

De Berlim à Guerra do Vietnã

Além da perda absurda de vidas humanas, o legado das guerras é insano também por outros motivos. É o caso das doses elevadas de desperdício e deterioração de recursos. Além de um país depauperado, os sobreviventes que após o conflito voltam a morar em zonas de guerra herdam uma paisagem degradada, hostil e quase sempre perigosa.

A II Guerra Mundial (1939-1945), por exemplo, terminou há mais de 70 anos. Ainda hoje, no entanto, há riscos para quem mora em antigas zonas de guerra. Esse é o caso de uma parcela da população alemã. O legado que essa gente herdou dos tempos da guerra inclui uma infinidade de artefatos bélicos não detonados (bombas, minas etc.), os quais continuam encravados, enterrados ou de algum outro modo escondidos em áreas habitadas do país. Trata-se de um legado não só potencialmente letal, mas de uma ameaça que se torna mais perigosa a cada dia, pois com a deterioração dos artefatos os riscos de acidente aumentam.

Além disso, em algumas regiões da antiga Alemanha Oriental, há uma herança macabra adicional: restos de artefatos usados em seções de treinamento pelas tropas da antiga União Soviética. Na partilha pós-guerra, a ex-URSS ficou com a parte oriental do território alemão, ocupando-o militarmente até a queda histórica do Muro de Berlim, em novembro de 1989. As autoridades alemãs têm dedicado esforços para localizar e neutralizar esses artefatos, mas isso ainda não foi o suficiente para acabar com o problema. Em todo caso, a Alemanha é um país rico e dinheiro e pessoal deverão continuar sendo alocados até que um nível zero de risco – ou ao menos algo socialmente aceitável – seja alcançado. (Localizar e neutralizar esses artefatos custa caro. Entre 1991 e 2007, por exemplo, uma equipe de aproximadamente 70 técnicos recolheu quase 11 mil toneladas de munição, e isso só nas proximidades de Berlim. Custo da operação: 259 milhões de euros.)

Algo bem diferente se passa em paíse pobres. Veja o caso do Vietnã, por exemplo, país igualmente populoso e que também foi palco de uma guerra. Os danos ambientais causados diretamente pelas forças estadunidenses, entre 1964 e 1973, durante a chamada Guerra do Vietnã, ainda não foram devidamente sanados ou reparados. Sabe-se que mais de 20 milhões de galões de herbicidas – incluindo os famigerados ‘agente laranja’ e ‘agente azul’ – foram despejados pelas forças invasoras. O objetivo era não só revelar a posição de alvos militares, mas também destruir as áreas utilizadas para cultivo de alimentos, promovendo a fome e tentando assim jogar os camponeses pobres contra o governo vietnamita.

A aplicação repetida de venenos químicos sobre uma área limitada resultou na completa erradicação da vegetação local. Com o tempo, certos hábitats foram tomados por plantas invasoras, algumas das quais prosperaram e se estabeleceram de modo permanente. Em muitos lugares, a vegetação arbórea nativa ainda não se restabeleceu. Além dos desfolhantes químicos, cerca de 14 milhões de toneladas de bombas foram despejadas sobre o Vietnã e países vizinhos (Laos e Camboja), produzindo entre 10 e 15 milhões de crateras de médio e grande porte. Assim, embora as tropas estadunidenses tenham batido em retirada há mais de 40 anos, os efeitos visíveis da guerra perduram até hoje.

O Vietnã tem um rico patrimônio biológico. Com 332 mil km2 de área territorial (pouco menor que o Maranhão), o país abriga comunidades biológicas particularmente valiosas, incluindo uma mistura incomum de espécies de regiões tropicais e temperadas. Toda essa biodiversidade, no entanto, só começou a ser estudada em detalhes nos últimos anos. Na década de 1990, por exemplo, um gênero inteiramente novo de mamífero ungulado (Pseudoryx) foi encontrado em florestas de uma região montanhosa do país. Todavia, diferentemente do que ocorreu na Alemanha após o fim da II Guerra e, mais recentemente, após a queda do Muro de Berlim, a restauração plena do Vietnã – o que incluiria a restauração de seus hábitats naturais – ainda é um sonho distante.

[Nota: versão original deste artigo foi publicada no sítio La Insignia, em 19/11/2008. Para detalhes sobre o livro mais recente do autor, O evolucionista voador & outros inventores da biologia moderna (2017), veja aqui.]

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Levany Júnior

Levany Júnior é Advogado e diretor do Blog do Levany Júnior. Blog aborda notícias principalmente de todo estado do Rio Grande do Norte, grande Natal, Alto do Rodrigues, Pendências, Macau, Assú, Mossoró e todo interior do RN. E-mail: [email protected]

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