SÃO GONÇALO DO AMARANTE RN-O que dizer sobre a tragédia de Janaúba?, por Rita Almeida


RITA ALMEIDA

SEG, 09/10/2017 – 21:33

Foto UOL

O que dizer sobre a tragédia de Janaúba?

por Rita Almeida

Nos últimos dias, muitas pessoas, por saberem que sou psicóloga, que trabalho no campo saúde mental e que escrevo, têm me pedido para falar alguma coisa sobre a tragédia em Janaúba. Na verdade, o que me veio depois do ocorrido foi um vazio imenso, uma topada num real tão absurdo e grotesco, que a escrita nem mesmo conseguiu comparecer para contornar. Por vezes, é assim mesmo. Por vezes, o que existe é apenas o imponderável, o inexplicável e o incontrolável. Por vezes, se trata só de olhar com assombro e horror para o abismo.

Quase na mesma semana, também tivemos o ataque do atirador em Las Vegas, com um triste saldo de 59 mortos. A tragédia de lá pode não ter sido tão doída para nós quanto a de cá, mas é tão intrigante quanto: O que leva uma pessoa a um ato tão cruel e insano? Será que poderíamos ter feito alguma coisa para evitá-lo? São as questões que todos estamos querendo responder.

Hoje tive vontade de escrever alguma coisa, mas, já aviso, o que consigo dizer não tem a pretensão de acalmar o coração de vocês ou o meu. Em situações desse tipo não é possível tapar o buraco, apenas bordeá-lo, talvez. No entanto, o que todos esperam é algo que nos faça entender o motivo e perfil dos assassinos e que, por conseguinte, nos ajude a identificá-los, antevendo e evitando tragédias como essas.

Impossível não se lembrar do filme Minority Report dirigido por Spielberg, lançado em 2002 e que já se tornou um clássico. A trama se passa no ano de 2054, num futuro no qual seria possível prever e evitar crimes de homicídio, antes que eles aconteçam – graças ao auxílio de indivíduos, conhecidos como precogs, capazes de ver o futuro. O paradoxo é que o sujeito pode ser condenado por um crime que jamais cometeu, mas, apenas por que foi impedido de fazê-lo pela divisão policial chamada pré-crime. É a suposta infalibilidade do sistema que autorizaria a condenação do sujeito, pela certeza de que ele irá cometê-lo adiante. Assim sendo, o sujeito não é condenado pelo seu ato criminoso, mas pela capacidade irrefutável de cometê-lo.

A narrativa fictícia do filme, entretanto, não se encontra tão distante da nossa realidade, especialmente quando se trata de crimes bárbaros, que causam grande comoção social, e que os autores não ficam vivos para relatarem sua versão da história. Nosso desejo, nesses casos, é capturar o sujeito antes que o crime tenha acontecido, a fim de buscar no seu passado indícios que demonstrem que ele iria acontecer de qualquer modo. Um gesto, uma palavra, um grupo virtual, uma mania estranha, uma consulta psicológica, um diagnóstico psiquiátrico, uma desavença familiar, uma crença ideológica ou religiosa, tudo serve de pista que, tanto justifica, quanto direciona para a conclusão do ato subsequente. Ou seja, todo o passado do sujeito adquire um sentido que é dado à posteriori, significado a partir do seu ato insano. No entanto, é bastante provável que todos esses indícios passassem despercebidos, caso não houvesse o crime que lhes sucedeu, ou seja, um diagnóstico psiquiátrico, por exemplo, só é capaz de se tornar explicação cabal de um crime, depois que este for consumado.

E o diagnóstico de doença mental – que ainda é uma hipótese para o caso do assassino de Janaúba – é uma explicação bastante satisfatória, o suficiente para tapar o abismo que se abre diante de nós e nos acalmar diante de tanto horror. Aliás, existem duas explicações que, ultimamente, nos acalmam muito nesses casos: quando se trata de um doente mental e quando se trata de um adepto do islamismo. São duas categorias que definem bem onde está aquilo que eu conheço e entendo e onde está o outro-estranho. Ah, mas era louco!  Ah, mas era terrorista islâmico! São significantes que, de certa forma, nos fazem dormir tranquilos. Afinal, depois de delimitado os campos, basta que nos apartemos do estranho – nos afastando dele ou afastando-o de nós – e tudo está resolvido. A outra possibilidade seria curá-lo ou convertê-lo, transformando-o em um de nós; um igual.

Mas eu sinto dizer que, ao contrário do que supomos, o estranho não está apartado nós, numa outra religião ou numa outra constituição psíquica – isso só para utilizar os dois exemplos que eu dei. O estranho está aqui mesmo, faz parte do que somos. O humano contém esse componente avesso, demoníaco, capaz de cometer atrocidades e insanidades inimagináveis. Como já nos alertava o velho Freud, nosso eu não é previsível e nem unívoco, já que serve a dois senhores. E essa divisão que não permite que nossa razão esteja sempre no controle, não é atributo apenas dos considerados insanos.

Para corroborar tal afirmativa, cito o casal Nardoni, Suzane Von Richthofen e Guilherme de Pádua, alguns criminosos que causaram grande comoção pública, famosos por seus crimes insanos e que não conseguiram nenhum diagnóstico psiquiátrico que justificasse ou qualificasse seus atos.

Assim sendo, é difícil admitir, eu sei, mas o que nos difere do criminoso de Janaúba ou do atirador de Los Angeles é apenas o ato cometido por eles, mais nada. Se isso faz a diferença entre nós e eles? Sim! Só que não tanto quanto gostaríamos.

 

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Levany Júnior

Levany Júnior é Advogado e diretor do Blog do Levany Júnior. Blog aborda notícias principalmente de todo estado do Rio Grande do Norte, grande Natal, Alto do Rodrigues, Pendências, Macau, Assú, Mossoró e todo interior do RN. E-mail: [email protected]

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