SÃO GONÇALO DO AMARANTE RN-A batalha contra o vírus será longa


Novos estudos realizados em dois dos países mais atingidos pela pandemia de Covid-19, França e Espanha, trazem dados essenciais para desvendar o principal mistério que ainda cerca o novo coronavírus Sars-CoV2: sua capacidade de matar. Aparentemente simples, o cálculo até da letalidade da doença tem se revelado até agora tão sorrateiro e fugidio quanto o próprio vírus (leia mais neste post).

Há enormes diferenças na quantidade de infectados que morrem em vários países – de 0,08% em Cingapura a 13,1% na Itália (no Brasil, 6,9% pelos últimos dados do Ministério da Saúde). Uma doença que mata menos de 0,1%, como gripes sazonais, tem impacto bem menor que outra que mata dez ou vinte vezes isso. Num país como o Brasil, pode ser a diferença entre menos de 100 mil e mais de 1 milhão de mortos.

A principal dificuldade para medir a letalidade da doença é avaliar a extensão da contaminação na população. Só temos certeza a respeito daqueles que apresentaram sintomas e foram testados. Quase metade dos infectados, contudo, não é diagnosticado. Muitos nem percebem que pegaram o vírus. Mas quantos? Se soubéssemos com exatidão, seria possível conhecer a proporção dos mortos em relação à parcela da população infectada – e saber com precisão quão letal é o Sars-CoV2.

É por isso que vários estudos recentes têm tentado medir não a letalidade diretamente, mas aquilo que os cientistas chamam de “prevalência”, ou a proporção, numa determinda população, daqueles que já pegaram ou estão com o novo coronavírus. Tal medida é feita não por testes para detectar a presença do Sars-Cov2, mas pelo que detectam a presença de imunidade ao vírus, conhecidos como “testes sorológicos” (são exames de sangue) ou “testes de anticorpos”.

Estimar a prevalência da doença equivale a medir o grau de imunidade já atingido na população. Quanto mais gente tiver sido contaminada, menos letal o vírus e mais difícil será sua propagação, pois menos pessoas estarão suscetíveis à infecção.

Defensores do relaxamento no isolamento social argumentam que é preciso deixar o vírus se espalhar para atingir o patamar de imunidade suficiente para, sozinho, extinguir a epidemia, estimado entre 40% e 70% da população. Conhecer a prevalência permite saber quão próximos estamos dessa imunidade coletiva capaz de proteger a todos, também conhecida entre os epidemiologistas como “imunidade de rebanho”.

Estudos sobre a prevalência têm a vantagem de retratar a própria realidade com base em ferramentas estatísticas, não estimá-la com base nas premissas de um modelo matemático (como o usado pelo Imperial College, revelado aqui em primeira mão). De acordo com um levantamento do pesquisador dinamarquês Henrik Jarlov, já havia até a última quarta-feira pelo menos 72 estudos sobre a prevalência do Sars-CoV2 em diferentes populações do planeta (seis etimativas no Brasil – três no Rio de Janeiro e três no Rio Grande do Sul).

A maior parte desses estudos – os melhores exemplos são os realizados no condado californiano de Santa Clara e no estado de Nova York, que receberam atenção da imprensa –padece de problemas nas amostras que prejudicam qualquer conclusão. Ainda assim, eles trazem sinais que não devem ser desprezados. Na média, os resultados reunidos por Jarlov estimam a infecção em 6,7% das populações estudadas, nível bem inferior ao necessário para a imunidade de rebanho.

O novo estudo do governo espanhol é bem mais robusto. Testou o vírus em mais de 60 mil pessoas distribuídas pelo país, para calcular a prevalência do anticorpo conhecido como “imunoglobulina G” (ou IgG), em princípio um marcador de imunidade duradoura para o novo coronavírus (embora a duração e qualidade dessa imunidade ainda seja objeto de debate acalorado entre os cientistas).

“A prevalência estimada dos anticorpos IgG para o Sars-CoV2 na Espanha é de 5%”, afirma o informe preliminar com os resultados, divulgado nesta semana. Nas cidades grandes, com mais de 100 mil habitantes, chega a 6,4%. Mesmo assim, é um patamar muito aquém do necessário para garantir qualquer tipo de imunidade de rebanho. Ele revela que o Sars-CoV2 parece ser mais letal do que as estimativas otimistas levam a crer.

O estudo francês, publicado na edição desta semana da revista Science, corrobora o resultado obtido na Espanha. Não se trata de um estudo sorológico, mas de uma estimativa realizada com base em modelos matemáticos, aplicados aos dados de morte e hospitalização, para tentar avaliar o impacto da quarentena na imunidade.

Os pesquisadores estimaram que 3,6% dos infectados são hospitalizados e 0,7% morrem, valor compatível com estimativas anteriores em populações isoladas, como a Islândia ou o navio de cruzeiro Diamond Princess. Trata-se de uma letalidade superior a dez vezes a verificada para as gripes sazonais (inferior a 0,1%). A prevalência na França, estima o estudo, está entre 2,8% e 7,2%.

“Em 11 de maio, quando as intervenções começarem a ser aliviadas, projetamos que 2,8 milhões de pessoas, ou 4,4% da população, terão sido infectados”, afirma o estudo. “A imunidade parece insuficiente para evitar uma segunda onda, se todas as medidas de controle forem aliviadas no final da quarentena.”

No Brasil, os estudos do Rio Grande do Sul constataram prevalências inferiores a 0,22%. No Rio de Janeiro, ela ficou em 3,8% na pesquisa mais recente – que reuniu apenas doadores de sangue e não pode ser estendida ao resto da população.

Por qualquer ângulo que se olhe, seja no Brasil, seja nos outros países mais atingidos pela pandemia, a prevalência está bem distante da imunidade de rebanho ou de qualquer patamar que nos garanta alguma tranquilidade no combate à Covid-19.

Pelo positivo, isso significa que as quarentenas deram certo: serviram para evitar que o vírus se espalhasse e matasse ainda mais gente. Pelo negativo, que ele é muito mais letal do que qualquer “gripezinha” – e continuará a impor por um bom tempo um desafio sem paralelo a hospitais, sistemas de saúde e governos em todo o mundo.

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