SÃO GONÇALO DO AMARANTE RN-Belchior, uma morte anunciada, por Jorge Hélio Chaves de Oliveira


Foto: Gustavo Pellizzon/ Rádio Verdes Mares 810

Morreu, aos 70 anos e meio, o cantor e compositor cearense Belchior, o mais complexo letrista da MPB. E o corpo do autor de “Coração selvagem” cumpre um estranho ritual de volta. Sai de Santa Cruz do Sul, no interior dos Pampas, para a Sobral de sua infância, na região norte do seu Ceará natal. Faz o caminho inverso daquele que as charqueadas empreenderam no final do século XVIII, quando um certo Pinto Martins tangeu suas últimas cabeças de gado rumo às campinas do extremo sul da então colônia portuguesa. Foram, ele e seu gado, os precursores da BR-116.

Nestes tempos de profunda apreensão nacional – para ficar apenas no território do eufemismo -, a morte de um pensador urbano, um contumaz leitor de clássicos da literatura nacional e mundial, um cronista musical da migração Nordeste-Sudeste, um repórter das inquietações típicas da juventude universal soa emblemática em ambiente de tanta desesperança. Partiu, sendo o mais importante de seus parentes, sem dinheiro no banco, de volta pro interior. “Acreditou no sonho da cidade grande e, enfim, se mandou um dia. E (v)indo, viu e perdeu”, como vaticinou em “Notícia de terra civilizada”, parceria sua com Jorge Mello, o mais presente de seus parceiros em sua discografia.

Suas composições foram gravadas por mais de 150 artistas, rol que inclui Gigliola Cinquetti, que gravou uma versão italiana de sua “Paralelas” em seu disco de 1978, no qual há, também, outra raridade, esta desconhecida no Brasil: a música “Frutaflor matutina” (originalmente, “Tu sei di me”), a única versão de que se tem conhecimento que Belchior fez para a língua de Camões e Guimarães Rosa.  Os cearenses Fagner, Ednardo e Amelinha, além de Elis, Roberto, Erasmo, Vanusa, Antonio Marcos, Jessé, Zé Ramalho, Elba, João Bosco, Zélia Duncan, Ivan Lins, Margareth, Daniela, Cidade Negra, Engenheiros do Hawaii, Los Hermanos, Jair Rodrigues, Ana Carolina, Sergio Mendes, Nelson Gonçalves, Simonal, Oswaldo Montenegro, Ney Matogrosso, Guinga e Leila Pinheiro, Anna Ratto, Renata Arruda, Zé Geraldo, Djavan, Emílio Santiago, Guadalupe, Chitãozinho & Xororó, Carol Saboya, Luli e Lucina, Trio Esperança… é uma imensidão de cantores e cantoras que registraram músicas como “A palo seco”, “Na hora do almoço”, “Mucuripe”, “Como nossos pais”, “Velha roupa colorida”, “Comentário a respeito de John”, “Paralelas”, “Senhoras do Amazonas”, “Todo sujo de batom”, “Notícias de terra civilizada”, “Alucinação”, “Coração selvagem”, “Galos, noites e quintais”, “Espacial”, “Incêndio”, “Noves fora”, “Sensual”, “Do mar, do céu, do campo” etc.

Um capítulo especial, no quesito parcerias, é o encontro de Belchior com Toquinho. Saíram dali sete composições, seis das quais gravadas pelo eterno parceiro de Vinícius de Moraes, em seu disco de 1978, Toquinho Cantando – Pequeno perfil de um cidadão comum. Em seu sítio oficial, Toquinho demonstra profundo respeito pelo autor de “Tudo outra vez”, mas deixa claro que a parceria não deu certo. Para ele, as letras muito elaboradas e cheias de mensagens filosóficas não fizeram um bom casamento com sua música. “Meu cordial brasileiro” e “Pequeno perfil de um cidadão comum” foram registradas por Belchior em seu disco “Era uma vez o homem e o seu tempo”, de 1979.

Andava recluso, nos últimos anos. O cansaço do convívio com o incômodo civilizacional pareceu preceder a autorreclusão. Sabia e avisou: “Eu estou sempre em perigo e a minha vida sempre está por um triz” (em “Brincando com a vida”).

Contou, em já distante aparição pública, por volta de 2009, que estava traduzindo para o português A Divina Comédia, de Dante D’Alliguieri. Em sua “Divina Comédia Humana”, revelava-se um ser angustiado “como um goleiro na hora do gol”, pouco depois de reconhecer ser um “sujeito de sorte, porque, apesar de muito moço,”(sentia-se) “são e salvo e forte”: “Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro. Ano passado eu morri, mas este ano eu não morro.”

Também anunciou que estaria vertendo sua seleta obra para o espanhol. Em 1990, já gravara Eldorado, um álbum com os uruguaios Eduardo Larbanois e Mario Carrero. Algumas das pérolas de seu cancioneiro já se ouviam, ali, em castelhano, como “Na hora do almoço”, “Galos, noites e quintais”, “Como nossos pais” e “Quinhentos anos de quê?” – esta, uma ácida homenagem ao quinto centenário do descobrimento da América pelos espanhóis.

Antonio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes foi um escorpiano do Pós-guerra que viveu em conflito, que defendeu ser viver melhor que sonhar, mas que passou a vida sonhando de olhos abertos e mente ligada, sintonizada com o próprio umbigo, com sua oca original, com seu país e com o mapa mundi, cujo centro de preocupações sempre foi a Latino-América. “El Condor passa sobre os Andes e abre as asas sobre nós. Na fúria das cidades grandes, eu quero abrir a minha voz” (em “Voz da América”).

Sempre quis ser ouvido e assobiado pelo povão, sempre desejou tocar em rádio AM, nos alto-falantes das quermesses do interior do Brasil. Nunca curvou-se ao sucesso fácil, contudo, ressalvado o “Medo de Avião”, que mereceu críticas ásperas (e exageradas, convenhamos) de seu “alter guru” e parceiro de Robertinho do Recife em “Baby doll de nylon” Caetano Veloso. Ironicamente, “Medo..” ganhou uma versão-balada, com pequenas alterações na letra, e a parceria de… Gilberto Gil. Sim, existe “Medo de avião II”, insólita parceria do autor de “Conheço o meu lugar” e do compositor de “Pai e mãe”.

Belchior gravou 22 discos de carreira (além dos dois compactos simples – hoje, seriam “singles” – lá no início do início), alguns dos quais com regravações de sua obra e um deles em que interpretava canções de outros colegas de ofício.  Teve seu auge de público e crítica entre 1976 (ano do lançamento do cultuado “Alucinação” – um dos dez discos da minha vida) e 1980, período em que emplacou, em sequência, cinco discos espetaculares. A partir dali, os altos e baixos, vencendo finalmente estes, passaram a ser sua marca.

Em 2002, gravou Pessoal do Ceará, com Ednardo e Amelinha. Tirando os colecionadores, como eu, um disco dispensável, apesar das duas inéditas, uma dele e uma do criador de “Pavão mysteryozo”.

Em 2004, em parceria com a Editora Caras, o rapaz latino-americano fez publicar um combo com 31 retratos que ele mesmo pintara de Carlos Drummond de Andrade e 31 poemas musicados. “As várias caras de Drummond” foi o nome do projeto.

Particularmente, na condição de estudioso da produção discográfica de Belchior, desenvolvi idêntico interesse com relação a seus CDs mais desconhecidos e de menor sucesso. Coincidem com parcerias mais frequentes e gravações de canções alheias. Escassearam, neste período, as obras-primas, embora as haja, a exemplo de “Senhoras do Amazonas”, esplêndida parceria com João Bosco.

Tomara que Belchior vire moda, ao menos neste período. É uma figura cult da nossa música. Uma figura “Brasileiramente linda”.

Mas a imensa maioria das pessoas está muito pouco, quase nada, nada mesmo preocupada com reflexões existenciais e já optou por manter “o ar condicionado no 15”, como vocifera um certo conterrâneo do autor de ”Princesa do meu lugar”, que, modestamente, se avalia “99% anjo, perfeito, mas aquele 1% é vagabundo.” “E que tudo o mais vá para o céu”. E, chegando lá, ouça, ainda, “Ipê”, “Aguapé”, “Dandy” e “Em resposta a carta de fã”, e, por último, e por quantas vezes for possível, “Pequeno mapa do tempo”.

Jorge Hélio Chaves de Oliveira é advogado e pesquisador musical. Estuda há alguns anos a obra de Belchior e trabalha em uma “não-biografia”

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corpo de Belchior chegou a Sobral, terra natal do cantor, no interior do Ceará, nesta segunda-feira (1°) para as primeiras homenagens. Na cidade, o corpo será velado até 10h no Teatro São João, no Bairro Centro. Em seguida, será levado para Fortaleza, onde haverá um velório de meio-dia às 7h da terça-feira (2) no Centro Cultural Dragão do Mar, Bairro Praia de Iracema. A missa de corpo presente ocorre a partir de 7h da terça, e o sepultado, a seguir, no Cemitério Parque da Paz, às 9h. O corpo partiu do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, por volta da 1h da madrugada, em um voo fretado pelo governo cearense, chegando a Sobral às 7h40.

Desde cedo fãs esperaram na praça em frente ao teatro, decorado com imagens do cantor na fachada. Moradores também foram receber o corpo no aeroporto da cidade e acompanharam o carro do Corpo de Bombeiros até o teatro. O velório será aberto ao público.

Teatro São José, no Centro de Sobral, preparado para homenagens ao cantor (Foto: João Pedro Ribeiro/TV Verdes Mares)Teatro São José, no Centro de Sobral, preparado para homenagens ao cantor (Foto: João Pedro Ribeiro/TV Verdes Mares)

Teatro São José, no Centro de Sobral, preparado para homenagens ao cantor (Foto: João Pedro Ribeiro/TV Verdes Mares)

Belchior foi encontrado morto em casa ontem, em Santa Cruz do Sul (RS), aos 70 anos. Ele vivia na cidade de 126 mil habitantes do Vale do Rio Pardo, a cerca de 150 km de Porto Alegre, com a esposa, Edna, que o encontrou morto. Ela disse à polícia que Belchior não tinha problemas nem tomava medicamentos. Ele se sentiu mal na noite de sábado, se queixou de muito frio à esposa e disse que ia descansar no sofá da sala, que ele usava para fazer suas composições, segundo vizinhos.

Fãs à espera pelo início do velório antes das 7h da manhã (Foto: João Pedro Ribeiro/TV Verdes Mares)Fãs à espera pelo início do velório antes das 7h da manhã (Foto: João Pedro Ribeiro/TV Verdes Mares)

Fãs à espera pelo início do velório antes das 7h da manhã (Foto: João Pedro Ribeiro/TV Verdes Mares)

Belchior continuava compondo, embora não tivesse planos de fazer shows ou gravar discos, e traduzia suas canções e obra de Dante Alighieri.

Segundo amigos, o artista vivia há quatro anos em Santa Cruz do Sul – dos quais cerca de dois anos na casa onde morreu, cedida por um amigo. O Governo do Ceará e a Prefeitura de Fortaleza decretaram luto oficial de três dias pela morte de Belchior.

Casa onde o cantor Belchior morava em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul (Foto: Muriel Porfio/RBS TV)Casa onde o cantor Belchior morava em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul (Foto: Muriel Porfio/RBS TV)

Casa onde o cantor Belchior morava em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul (Foto: Muriel Porfio/RBS TV)

Análise preliminar indica que o cantor cearense morreu em razão do rompimento da artéria aorta, segundo a delegada Raquel Schneider. Schneider falou com o médico do IML da cidade de Cachoeira do Sul, responsável pela necropsia em Belchior. De lá, seu corpo foi levado para Venâncio Aires para ser embalsamado.

Cantor e compositor, Belchior também pintava. Na foto, Belchior em seu ateliê em 1987 (Foto: Silvio Ricardo Ribeiro/Agência Estado)Cantor e compositor, Belchior também pintava. Na foto, Belchior em seu ateliê em 1987 (Foto: Silvio Ricardo Ribeiro/Agência Estado)

Cantor e compositor, Belchior também pintava. Na foto, Belchior em seu ateliê em 1987 (Foto: Silvio Ricardo Ribeiro/Agência Estado)

Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes – “um dos maiores nomes da música popular”, como brincava ao se apresentar – nasceu em 26 de outubro de 1946 e foi um dos ícones mais enigmáticos da música popular no Brasil, com quase 40 anos de carreira.

Teve o primeiro sucesso nos anos 70 ao lado de Fagner, com a faixa “Mucuripe”. Com o disco “Alucinação” (1976), lançou clássicos como as faixas “Apenas um rapaz latino-americano”, “Velha roupa colorida” e “Como nossos pais”, essa última que se tornou conhecida na voz da cantora Elis Regina.

Belchior passou últimos anos recluso, compondo e traduzindo obra de poeta

Belchior passou últimos anos recluso, compondo e traduzindo obra de poeta

Paradeiro

Segundo o colunista do G1 Mauro Ferreira, o cantor não tinha paradeiro certo desde 2008. Em 2007, a família reclamou do sumiço do artista, que abandonou a carreira, e nem mesmo seu produtor musical conseguia contato. A partir daí, foram surgindo boatos a respeito do paradeiro do cantor.

Segundo reportagem do Fantástico, Belchior abandonou ao menos dois carros, sem explicação. Um deles, deixado no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, acumulando milhares de reais em dívidas de estacionamento. Outro veículo, uma Mercedes-Benz do cantor, foi largado em um estacionamento também em São Paulo, onde ele morava antes de ir para o Uruguai.

Belchior chegou a ser procurado pela polícia em 2012, devido a uma dívida de US$ 15 mil em um hotel na cidade de Artigas, no Uruguai, por seis meses de diárias. No fim daquele ano, em meio à polêmica, foi visto em Porto Alegre, mas não quis gravar entrevista.

Trajetória

Na infância no Ceará, Belchior estudou piano e música coral, e trabalhou no rádio em sua cidade natal. Seu pai tocava flauta e saxofone, e sua mãe cantava em coro de igreja. Mudou-se em 1962 para Fortaleza, onde estudou Filosofia e Humanidades. Também chegou a estudar medicina, mas abandonou o curso em 1971 para se dedicar à música.

Começou apresentando-se em festivais pelo Nordeste. Depois do sucesso de “Mucuripe”, mudou-se para São Paulo, onde compôs trilhas sonoras para filmes e passou a fazer shows maiores e aparições em programas de televisão. Em 1974, lançou seu primeiro disco, “A palo seco”, cuja música título se tornou sucesso nacional e ganhou versões ao longo da história, como a de Oswaldo Montenegro e da banda Los Hermanos.

Outros artistas também regravaram sucessos de Belchior, entre eles Roberto Carlos (“Mucuripe”) e Erasmo Carlos (“Paralelas”), Engenheiros do Hawaii (“Alucinação”), Wanderléa (“Paralelas”) e Jair Rodrigues (“Galos, noites e quintais”). Elis Regina foi uma de suas maiores intérpretes: além de “Como nossos pais”, gravou “Mucuripe”, “Apenas um rapaz latino-americano” e “Velha roupa colorida”.

Em 1982, o cantor lançou “Paraíso”, que tem participações dos àquela época ainda jovens artistas Guilherme Arantes, Ednardo Nunes, Jorge Mautner e Arnaldo Antunes. Fundou sua própria gravadora e produtora, a Paraíso Discos, em 1983. Ao longo da carreira, Belchior teve mais de 20 discos lançados.

Discografia

  • 1971 – Na Hora do Almoço (Copacabana – Compacto)
  • 1973 – Sorry, Baby (Copacabana – Compacto)
  • 1974 – Mote e Glosa (Continental – LP/K7)
  • 1976 – Alucinação (Polygram – LP/CD/K7)
  • 1977 – Coração Selvagem (Warner – LP/CD/K7)
  • 1978 – Todos os Sentidos (Warner – LP/CD/K7)
  • 1978 – Pop Brasil (Warner Music / WEA)
  • 1979 – Era uma Vez um Homem e Seu Tempo (Warner – LP/CD/K7)
  • 1980 – Objeto Direto (Warner – LP)
  • 1982 – Paraíso (Warner – LP)
  • 1984 – Cenas do Próximo Capítulo (Paraíso/Odeon – LP)
  • 1986 – Um Show: 10 Anos de Sucesso (Continental – LP)
  • 1987 – Melodrama (Polygram – LP/K7)
  • 1988 – Elogio da Loucura (Polygram – LP/K7)
  • 1990 – Projeto Fanzine (Polygram – LP/K7)
  • 1991 – Divina Comédia Humana (MoviePlay – CD)
  • 1991 – Acústico (Arlequim Discos – CD)
  • 1993 – Baihuno (MoviePlay – CD)
  • 1995 – Um Concerto Bárbaro: Acústico ao Vivo (Universal Music – CD)
  • 1996 – Vício Elegante (Paraíso/GPA/Velas – CD)
  • 1999 – Autorretrato (BMG – CD)
  • 2002 – Pessoal do Ceará (Continental / Warner – CD)
  • 2008 – Sempre (Som Livre – CD)

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Levany Júnior

Levany Júnior é Advogado e diretor do Blog do Levany Júnior. Blog aborda notícias principalmente de todo estado do Rio Grande do Norte, grande Natal, Alto do Rodrigues, Pendências, Macau, Assú, Mossoró e todo interior do RN. E-mail: [email protected]

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