PENDÊNCIAS RN-‘A política brasileira agora está com as vísceras expostas’


172658»ENTREVISTA » Moysés Pinto Neto

Porto Alegre – “O Brasil vive uma turbulência inacabável”. Essa é a situação do cenário político brasileiro conforme a avaliação do professor e pesquisador Moysés Pinto Neto, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Para ele, as circunstâncias são tão sérias que esse período de instabilidade tem chances de se estender ao longo do ano de 2016. Segundo ele, para se compreender o contexto político de 2015 é fundamental recuperar os acontecimentos mais marcantes dos anos de 2013 e 2014. O pesquisador aponta que “2013 gerou uma hiperpolitização para todos os lados da sociedade, liberou forças incontroláveis que até agora estão produzindo constantemente efeitos”. Já em 2014 destaca-se a neutralização das forças emergentes no ano anterior. “Aquilo que era múltiplo, caótico, selvagem em 2013, foi gradualmente domesticado na bipolarização tradicional. Essa polarização neutralizou o aspecto caótico e as composições heterogêneas de 2013, formando duas zonas demarcadas pelas identidades convencionais de esquerda e direita, PT e PSDB”, ressalta.

Lula MarquesMobilizações nas ruas, investigação sobre corrupção e processo de impeachment mudam rumo da política brasileiraMobilizações nas ruas, investigação sobre corrupção e processo de impeachment mudam rumo da política brasileira

O pesquisador também chama a atenção para o crescente desequilíbrio do sistema político, provocado pela intervenção independente do Ministério Público e do Poder Judiciário, com o apoio popular dos protestos contra a corrupção. Essa fragilidade é um aspecto importante da cena política brasileira, a qual poderá mudar seus arranjos daqui em diante. “A Operação Lava Jato atingiu o coração de boa parte do financiamento eleitoral e da maneira mafiosa com que estavam operando os partidos políticos e desestabilizou os arranjos da “governabilidade” montados nos últimos 20 anos, fazendo com que as vísceras (negociatas, favores, desvios etc.) se fizessem expostas a olho nu”, explica.

De que forma você avalia o contexto político brasileiro com a instalação do processo de impeachment da presidente Dilma?
O Brasil vive uma turbulência inacabável. Não acreditava ser possível que esse momento pudesse ser prorrogado por tanto tempo, mas agora já ameaça com muita plausibilidade levar junto consigo 2016. Nesse cenário, é possível perceber que a política brasileira passou por dois acontecimentos fundamentais, 2013 e 2014. Já 2013 representou o ano em que a rua ingressou na cena, em que os atores perceberam que podiam pressionar o sistema político desde fora e causar ruído na sua operacionalidade. A vitória em torno da redução do preço da passagem e as multidões nas ruas provocaram um efeito de contágio e integração inédita entre rua e redes digitais. As táticas dos movimentos como ocupações, mobilização com hashtags, autogestão, registro disseminado na web, liderança distribuída, entre outras, se tornaram praticamente uma nova gramática, sendo apropriadas inclusive por movimentos situados mais à direita. A apatia e passividade com que se costumava descrever a sociedade brasileira já não faz mais sentido. O ano de 2013 gerou uma hiperpolitização para todos os lados da sociedade, liberou forças incontroláveis que até agora estão produzindo constantemente efeitos.

O ano de 2014, por sua vez, foi uma operação “ortopédica” que tratou de neutralizar essas energias. Aquilo que era múltiplo, caótico, selvagem em 2013, mesclando luta contra corrupção com ocupação das Casas Legislativas, crítica da Copa com defesa da educação pública, ou seja, criando um espaço intersticial entre os diversos segmentos da sociedade que envolvia demandas por serviço público e qualidade de vida, foi gradualmente domesticado na bipolarização tradicional. Essa polarização neutralizou o aspecto caótico e as composições heterogêneas de 2013, formando duas zonas demarcadas pelas identidades convencionais de esquerda e direita, PT e PSDB.

E o embate entre ‘Petralhas” de um lado e  “Coxinhas” de outro?
A demarcação mais estrita, definida especialmente após as eleições, tem como caricatura a luta entre “petralhas e coxinhas”, segundo os apelidos negativos que os próprios campos atribuem ao seu rival. Trata-se do campo governista e petista, de um lado, e da oposição de direita afinada com o liberalismo e o conservadorismo, representada de maneira mais ou menos caricata pelos ideólogos da revista Veja, de outro. Mas essa bipolaridade arrasta consigo um campo auxiliar, que fica no espectro das bordas a separar um e outro polo, tornando esses dois extremos zonas que abrangem também uma periferia, em especial do lado dos governistas. Essa periferia, na esquerda, é a do “apoio crítico”, composto de pessoas que veem de maneira negativa o Governo Federal, mas não estão suficientemente convictas para aderir a uma ruptura total. Assim, sempre que o Governo é emparedado de maneira realmente ameaçadora, a condição de oposição é substituída pelo apoio, operando com a lógica do “menos pior”. Esses foram os segmentos da disputa política construídos a partir das eleições de 2014 e que permanecem em plena ação. Por isso, sem conversarmos claramente sobre o que aconteceu em 2014, é impossível entender o Brasil de 2015. Como as manobras produzidas nas eleições foram realmente desonestas em muitos aspectos, muitos têm tentado fingir que nada aconteceu, recalcando esse acontecimento. Mas sabemos que as coisas não estão iguais desde então.

Uma das características estranhas – para não dizer monstruosas – do cenário de 2015 é repetir 2013 e 2014 ao mesmo tempo. Temos, de um lado, as ocupações das escolas paulistas com milhares de elementos em comum com 2013, desde a resistência à violência policial até a auto-organização, a pauta genérica e transversal da educação no lugar que ocupou o transporte público, a virada na cobertura midiática e o apoio nas redes sociais, entre outras coisas. Essa disputa teria condições de ocupar o mesmo espaço que 2013 manteve, por sua generalidade, plasticidade e capacidade de mobilização de afetos políticos. De outro lado, a tentativa de mais uma vez neutralizar isso na bipolaridade, agora com a pauta do golpe, revalidando o apoio crítico, a identidade de esquerda e o fantasma do golpe de 64 enquanto lembrança de uma direita que não aceita governos populares. Assim, temos uma diagonal entre 2013 e 2014 ocupando um espaço que se curva em três possibilidades: 1) manutenção das lutas entre linhas paralelas; 2) neutralização de 2013 por 2014 na mesma operação eleitoral, com a bipolarização transformando os polos de 2013; 3) devoração recíproca das lutas, numa espécie de destituinte geral brasileira.

Nenhuma delas está isenta de aporias. A destituinte geral, por exemplo, passa por uma espécie de golpe de Estado que pode ser simplesmente restauração de um velho núcleo político, substituindo a nova oligarquia que se formou a partir de 2002. As linhas paralelas podem manter a luta dos estudantes como paroquial, perdendo a oportunidade de ressurgimento de uma energia política fundamental para a democracia brasileira. A bipolarização, por fim, faz ressurgir o “apoio crítico” enquanto defesa do “menos pior”, movendo-se a partir de uma pauta quase totalmente reduzida a um fantasma identitário (a esquerda, o vermelho) enquanto, na prática, temos um governo totalmente entregue a forças conservadoras e que, quando teve capital político, o usou para um projeto hoje fortemente rechaçado por boa parte da esquerda (o “neodesenvolvimentismo”).

E a intervenção do Ministério Público e do Poder Judiciário no cenário atual?
Outra característica do momento é que, depois de 2013, o sistema gradualmente foi caindo aos poucos em um desequilíbrio estrutural e jogando suas “vísceras” para fora. A intervenção independente do Ministério Público e Poder Judiciário, politicamente amparada pelos protestos contra a corrupção, provocou um efeito desestabilizador sobre o sistema. Tudo aquilo que ficava escondido nos bastidores passa ao palco principal. A figura de Eduardo Cunha é o emblema dessa mudança. Ele representa o quadro mais espúrio, medíocre, tacanho e aproveitador da política. É uma típica figura que se alimentava de bastidores, vampirizando cargos de segundo escalão a partir das “porteiras fechadas” nos ministérios e dos grandes acordões do “Centrão”. Ou seja, alguém que se beneficiava do que Marcos Nobre chama “cultura peemedebista”, a fisiologia escancarada que neutraliza a política. Ao se expor, Cunha trouxe à tona um setor muito forte, mas que operava por baixo dos panos no Congresso Nacional, o que paradoxalmente mostra que, ao revelar sua força, ele estava na realidade a perdendo.

A Operação Lava Jato atingiu o coração de boa parte do financiamento eleitoral e da maneira mafiosa com que estavam operando os partidos políticos e desestabilizou os arranjos da “governabilidade” montados nos últimos 20 anos, fazendo com que as vísceras (negociatas, favores, desvios etc.) se fizessem expostas a olho nu.

De que maneira avalia o embasamento jurídico do pedido de impeachment ?

O impeachment não tem fundamentação jurídica consistente e, por isso, configura um golpe sobre a mandatária. Todas as alegações não passam de construções ad hoc com o intuito de fundamentar a decisão – tomada a priori – de derrubar o governo. É um golpismo crasso. É preciso, contudo, desmitificar um pouco essa questão jurídica. O Direito é uma atividade interpretativa e por isso raramente estamos diante de “casos fáceis” com soluções simples e unívocas. A maior parte dos problemas jurídicos apresenta divergências interpretativas e por isso proliferam decisões diferentes sobre o mesmo tema baseadas em fundamentos diversos. Portanto, a construção de uma peça jurídica com uma fundamentação mínima pró-impeachment não chega a ser algo impossível, pois sempre haverá formas de construir argumentos a partir da vagueza e ambiguidade da lei. E haverá advogados para os dois lados, como em geral acontece na quase totalidade dos casos jurídicos. Não há, portanto, como apresentar uma solução definitiva, ninguém vai pura e simplesmente fechar a questão. O jurídico tem padrões mais estáveis que o político, mas isso não significa que esteja além das divergências.

O efeito dessa disputa jurídica provavelmente cairá no grau máximo de judicialização da política, com o Supremo Tribunal Federal resolvendo o imbróglio da crise política. Veja-se que nesse sentido o STF tem decidido vários casos polêmicos com uma base mais ou menos solta, apontando uma direção política voltada para a efetividade da Constituição ou os direitos humanos, mas sem a estrutura silogística que teoricamente garantiria uma mínima certeza em torno do Direito. Esse fenômeno foi construído nos últimos 15 anos, a partir da mudança na composição do colegiado, mas fundamentalmente pela recepção do discurso constitucionalista maturado por uma década nas faculdades e livros até atingir a aplicação nos tribunais. A posição central do Supremo Tribunal Federal hoje em dia reflete esse novo ethos de juridificação da política que caracterizou o pós-Segunda Guerra Mundial na Europa e se introduziu no Brasil a partir da Constituição de 1988, capilarizando-se do direito constitucional para a legislação infraconstitucional até finalmente chegar ao STF.

Infelizmente, o debate em torno dessa judicialização tem sido infantil no Brasil. O caso de Joaquim Barbosa é um exemplo disso. No primeiro momento, ao confrontar o Ministro Gilmar Mendes, Barbosa tornou-se um ídolo dos governistas. Mais tarde, durante o processo do Mensalão, passou a ser demonizado e acusado de oportunismo político, tendo sido lançadas suspeitas de que iria concorrer a cargo eletivo e por isso conduzia de forma equivocada o processo. A análise é lamentavelmente partidária e não reflete o que aconteceu.

O mesmo acontece agora com o Juiz Moro na Operação Lava-Jato. A leitura partidária esconde a disputa que realmente está por trás entre esquerda punitiva e garantismo, travada já no âmbito da política criminal e com suas especificidades em relação à disputa entre petistas e tucanos. É necessário que a análise política passe por uma transposição de questões quando a disputa se dá no cenário judiciário, entendendo que não se trata do mesmo campo ou sistema que o político-partidário. Outra opção é que o Senado arquive o processo e encerre a questão.

É possível ter algum prognóstico sobre como ficará a agenda política do governo durante o andamento do processo de impeachment? Quais seriam os pontos principais?

O impeachment é a pior e melhor notícia possível para o Governo. A pior, por razões óbvias: escancara sua insustentabilidade, exige esforço em momento de fragilidade e ameaça a continuidade do projeto. Mas também é a melhor, porque desde o início de 2015 o processo político está totalmente paralisado e não há qualquer indício de que irá se resolver. Dessa maneira, ao colocar para fora o impeachment finalmente Cunha livra o Governo de enfrentá-lo da forma fantasmática, que é a mais difícil, para transformar em uma luta clara e frontal que poderá escancarar o PSDB, por exemplo, como golpista.

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Levany Júnior

Levany Júnior é Advogado e diretor do Blog do Levany Júnior. Blog aborda notícias principalmente de todo estado do Rio Grande do Norte, grande Natal, Alto do Rodrigues, Pendências, Macau, Assú, Mossoró e todo interior do RN. E-mail: [email protected]

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