A PALAVRA DO DIA-O significado de Jerusalém na Bíblia e na tradição de Israel


Eu gostaria de iniciar nossa reflexão sobre Jerusalém citando uma frase de P. Bernard Dupuy, pronunciada por ocasião do Congresso Mundial Judeu na França, 1979: “Jerusalém é a Cidade onde a fé cristã nasceu. Este fato faz com que o cristianismo não possa definir-se sem uma relação profunda com o povo de Israel e com Jerusalém.” Isto é, o cristianismo está inserido no significado de que Jerusalém é portadora dentro do plano de Deus, da história e da experiência do povo judeu. Por conseguinte, a identidade do cristianismo depende da compreensão e da experiência vivida do povo judeu sobre Jerusalém: experiência concreta da presença de Deus (Shekiná) nesta cidade. Encontrar-se com o povo Judeu, conhecê-lo, descobrir o profundo significado de Jerusalém, é entrar em contato com as fontes do cristianismo. Ademais, Jerusalém nos fala de Deus Uno e Único; ela testemunha a escolha feita por Deus de um povo, em função de todos os povos e, como cidade, ela própria é o sinal da preferência de Deus por um lugar especial a fim de estar presente em todos os lugares.

Assim sendo, parto da ideia de Jerusalém como Cidade do encontro: Deus, o ser humano e o mundo. Na Tradição judaica, bíblica ou rabínica, a relação do povo judeu com Jerusalém é a afirmação de que o mundo retorna à sua pureza inicial, isto é, Deus, o ser humano e o mundo se encontram. Ela representa uma experiência concreta de uma realidade completa, de um estado puro e sagrado. Poder-se-ia dizer que Jerusalém historiciza o conto do Paraíso terrestre, onde Deus se fazia presente e era visível em sua obra criada, falando com o homem. Deus tinha um partner para o diálogo. Entretanto, a compreensão da ideia de recriação, que representa Jerusalém, é possível somente a partir da realização da promessa de Deus a Abraão, isto é, a constituição do povo e a possessão da terra. A relação rompida, entre Deus e Adão, foi refeita com Abraão. Porém Deus encontrou seu partner no povo formado de Abraão. O Jardim do Paraíso é representado pela Terra de Israel, e Jerusalém é o lugar do encontro com o homem, onde Deus se faz presente para sempre.

1- Jerusalém na Bíblia

a- uma visão histórica

A intenção não é esgotar a vasta literatura bíblica sobre Jerusalém, mas refletir a partir de alguns elementos que a Escritura nos oferece sobre ela e seguir seu desenvolvimento.

Encontramos a presença do povo de Israel em Jerusalém convivendo com os Jebuseus, já no período da partilha que fez Josué: Mas os Jebuseus que habitavam em Jerusalém, os filhos de Judá não puderam expulsá-los; assim os Jebuseus ainda hoje habitam em Jerusalém, ao lado dos filhos de Judá”.(Josué 15,63). Temos, portanto os primeiros contatos do povo com a cidade de Jerusalém, porém não de forma centralizadora. É somente com David que a cidade assume um caráter representativo para o povo judeu. David conquistará Jerusalém, será coroado Rei de Israel e fixará nela a sua morada. No 2Livro de Samuel 6,13 a arca do Senhor é introduzida em Jerusalém pelo Rei David, e ali ela permanecerá para sempre: “Contou-se ao rei Davi que Iahweh tinha abençoado a casa de Obed-Edom e tudo o que lhe pertencia, por causa da Arca de Deus. Então Davi foi e trouxe a Arca de Deus da casa de Obed-Edom para a Cidade de Davi com grande alegria.”

Após certa estabilidade e autonomia de Jerusalém (reinado de Salomão), a literatura profética testemunha a crise de identidade vivida no interior do povo, ao ver a possibilidade de destruição de Jerusalém e do Templo. Criou-se uma concepção de que tocar Jerusalém é atingir o próprio povo e vice-versa. No entanto a destruição da Cidade e do Templo aconteceu e foi seguida pelo exílio da Babilônia. Tomamos duas citações do livro de Jeremías que destaca primeiramente o anuncio do profeta antes da tomada de Jerusalem: Porque assim disse lahweh dos Exércitos, Deus de Israel, a respeito dos objetos que restaram na Casa de lahweh e no palácio do rei de Judá e em Jerusalém: 22 Eles serão levados para a Babilónia (e ali ficarão até o dia em que eu os visitar), oráculo de lahweh. (Eu os farei, então, subir e voltar para este lugar!)”(Jr. 27, 21-22). No final do livro o profeta descreve a realização do anúncio e a deportação do povo, e a única esperança que resta é que Deus um dia visite seu povo para que a profecia do retorno a Jerusalém seja também realizada: No quinto mês, no décimo dia do mês — era o décimo nono ano do reinado de Nabucodonosor, rei da Babilônia — Nabuzardã, chefe da guarda, funcionário do rei da Babilônia, veio a Jerusalém. Ele incendiou a Casa de Iahweh, a casa do rei e todas as casas de Jerusalém. Todo o exército dos caldeus que estava com o chefe da guarda derrubou todas as muralhas em torno de Jerusalém. Nabuzardã, chefe da guarda, deportou (uma parte dos pobres do povo e) o resto do povo que tinha ficado na cidade, os desertores que tinham passado ao rei da Babilônia e o resto dos artesãos”.(Jr. 52,12-15, cf. 2Re 25, 8-10).

O exílio, no entanto, não apaga da memória do povo a existência da cidade de Jerusalém com seu Templo. Um exemplo é o Salmo137. Foi a importância de Jerusalém como fator centralizador, significando o lugar da presença de Deus (Shekiná), presente naconsciência do povo, que o protegeu como povo no exílio e o sustentou na esperança do retorno. Retornar a Jerusalém, reconstruir acidade, é reconstruir a alma do povo, é como uma recriação do povo.

Após o retorno do exílio, seguido de um certo período de reestruturação da sociedade, a cidade de Jerusalém e o povo de Israel conheceram uma nova crise com a invasão helênica: o Deus de Israel, por decreto de Antioco Epífane (175 a.C.) não pode ser cultuado livremente, a circuncisão é proibida, e da mesma forma é proibida a leitura da Palavra de Deus e o repouso do Sábado…,

Jerusalém é invadida e o Templo é profanado ao ser entronizado nele um deus pagão para ser cultuado. Estes acontecimentos são a base da revolta dos Macabeus. Depois de alguns anos de autonomia conseguida por parte dos Macabeus, Jerusalém conhecerá a invasão dos Romanos que a destruirão completamente no ano 70 de nossa era, juntamente com o Templo.

 

b- uma visão espiritual

Além desta parte, sobremaneira histórica, que é marcada pelos dados cronológicos que nos dão uma visão de Jerusalém a partir de seu exterior e de sua evolução no tempo, nossa intenção agora é enfocar seu significado a partir de uma visão interna. Os textos bíblicos são unânimes em fundamentar sua importância a partir de sua dimensão espiritual: “Roboão, filho de Salomão, tornou-se rei de Judá; tinha quarenta e um anos quando subiu ao trono e reinou dezassete anos em Jerusalém, cidade que Iahweh escolhera entre todas as tribos de Israel para nela colocar seu Nome”. (1Rs 14,21). A razão de sua santidade, segundo o texto, não é somente por ela se tornar a habitação de Deus, mas porque Jerusalém foi escolhida pelo Senhor para ser o lugar de sua habitação, é a cidade de sua preferência e de sua permanência. Como nos diz Ezequiel: “E o nome da cidade, a partir deste dia será: “Iahweh está ali”(Ez 48, 35). Esta mesma ideia é desenvolvida nos Salmos, onde Jerusalém significa o lugar que Deus escolheu em definitivo como base de habitação, a fim de habitar todo o mundo: Deus é conhecido em Judá,em Israel grande é seu nome; sua tenda está em Salem e sua moradia em Sion”.(Sal 76, 2-3). No entanto, esta preferência de Deus por Jerusalém e sua presença (Shekhiná) no Templo, está condicionada pela presença, nela, do povo de Israel, isto é, o elemento primeiro da escolha da cidade é o seu povo, e é através dele que Ele se faz presente no mundo. Isaias nos diz: Mas agora que tenho a fazer aqui? – oráculo de Iahweh – porque o meu povo foi levado sem paga, os seus dominadores cantam vitória – oráculo de Iahweh – e continuamente, durante todo o tempo, o meu nome é vilipendiado.”(Is 52, 5). Desta maneira podemos dizer que a significação de Jerusalém é dada por Deus, Ele mesmo, pelo fato de Ele nela habitar, porém é a presença, nela, do povo de Israel, que assegura, de modo preferencial, a vocação da cidade, primeiramente como centro para o povo judeu e a Terra de Israel e em seguida para todo o mundo.

Assim sendo, a missão de Jerusalém para o mundo se completa na unidade dos três elementos: Deus, o povo de Israel e a terra da promessa. Cada um possui sua função distinta. No entanto, curiosamente na Bíblia, os atributos de Deus e de Jerusalém são intercambiáveis. Dado que a fonte de tudo (Deus) habita nela, Jerusalém, como Deus, torna-se a base e a mãe de todos. Assim lemos no Salmo 87: Cidade de Deus – Fonte – a Mãe de todos. E sua missão é universal. É a partir da terra de Israel que toda terra será repleta da presença de Deus, e é pelo povo de Israel que todos os povos serão escolhidos. Assim também, é por intermédio de Jerusalém que todos os homens serão consolados: Alegrai-vos com Jerusalém, exultai nela, todos os que a amais; regozijai-vos com ela, todos os que por ela estáveis de luto,  pois sereis amamentados e saciados pelo seu seio consolador, pois sugareis e vos deleitareis no seu peito fecundo. Com efeito, assim diz Iahweh: Eis que vou trazer a paz como um rio e a glória das nações como uma torrente transbordante. Sereis amamentados, sereis carregados sobre as ancas e acariciados sobre os joelhos. Como a uma pessoa que a sua mãe consola, assim eu vos consolarei; sim, em Jerusalém sereis consolados.” (Is 66, 10-13).

Da mesma maneira vemos que os Salmos 48, 122, assim como Is 26, 1-4; 33, 20-21; 66, 18b, etc., cantam Jerusalém utilizando os mesmos atributos que encontramos quando a Bíblia se dirige a Deus. Como por exemplo, em Dt 32,4.18.37; Sal 18, 3; 59, 17; 91,1-2; 144, etc.

Jerusalém constitui o lugar da Aliança, de onde sai a Palavra de Deus por excelência: ela é a fonte de sintonia com Deus. No momento presente ela representa o aspecto concreto, tangível entre Deus e o Homem; no futuro ela será a fonte de unidade entre as nações e a partir dela todos os homens conhecerão os caminhos do Senhor: Dias virão em que o monte da casa de Iahweh será estabelecido no mais alto das montanhas e se alçará acima de todos os outeiros. A ele acorrerão todas as nações,  muitos povos virão, dizendo: “Vinde, subamos ao monte de Iahweh, à casa do Deus de Jacó, para que ele nos instrua a respeito dos seus caminhos e assim andemos nas suas veredas”. Com efeito, de Sião sairá a Lei, e de Jerusalém, a palavra de Iahweh”.(Is 2, 2.3//Mi 4,1-2).

O Salmo 84,11 nos fala de Jerusalém como a concretização de uma realidade celeste – é o lugar onde o homem faz a experiência da eternidade. Pode-se dizer que Jerusalém é o ponto sobre o qual os céus e a terra se encontram e se abraçam: Sim, vale mais um dia em teus átriosque milhares a meu modo, ficar no umbral da casa do meu Deus que habitar nas tendas do ímpio”.Assim, a compreensão bíblica sobre Jerusalém, como lugar da habitação de Deus, não é de nenhuma forma uma visão de contemplação passiva, ao contrário, esta compreensão se concretiza pelo contato direto com a Cidade e com o Templo.

As festas judaicas, sobretudo as três festas de peregrinação, testemunham esta prática. Sublinhamos que a festa de Páscoa (Pesah), a festa das Semanas (Shevuot) e a festa das Cabanas (Sucot), no sentido profundo, fazem do povo de Israel, da terra de Israel, de Jerusalém e do Templo, uma unidade com Deus. Há entre eles uma comunicação sensível e harmoniosa.

Neste sentido, na festa de Páscoa faz-se a memória de um fato concreto da ação de Deus em favor do povo e ao mesmo tempo este ato de memorizar é sua própria atualização. Estabelece-se um diálogo com Deus como o Senhor da história: do passado, do presente e do futuro.

Na celebração da festa das Semanas, é a terra com suas sementes e o trabalho do homem que se encontram diante de Deus para lhe renderem graças pelo dom recebido. Na festa das Tendas, celebra-se a plenitude das bênçãos recebidas da parte de Deus. A família, os produtos da terra, os bens que são colocados à disposição do homem, testemunham a ação de Deus sobre a natureza criada e sobre o seu povo. Desta forma, a partir das festas e de sua participação, toda a realidade da promessa se torna única: Deus, povo e terra se encontram em Jerusalém. Este é o momento privilegiado no qual Israel-povo celebra sua plenitude: tudo é ofertado, tudo é pedido – tudo é recebido, tudo é dado. É a experiência da profunda relação entre Deus e o homem.

O Novo Testamento testemunha este hábito difundido entre o povo judeu: “Seus pais iam todos os anos a Jerusalém por ocasião da festa da Páscoa”  (Lc 2, 41). E no versículo 42 o texto nos fala da família que vem a Jerusalém: “Quando ele completou doze anos, eles foram para a festa como de costume…” Podemos dizer que Jerusalém é a Cidade-sacramento: nela Deus é visível, tangível, diretamente comunicável.

 

2- Jerusalém na Tradição de Israel

Após ter visto alguns aspectos sobre a importância de Jerusalém para o povo hebraico a partir de certos textos bíblicos, é necessário também dizer que ela não foi louvada, celebrada, vista e compreendida como lugar de Deus somente no período bíblico, mas esta experiência faz parte da alma do povo judeu. Continuamos a encontrá-la no período pós-bíblico e na literatura dos Sábios de Israel.

A consciência central de Jerusalém como lugar onde habita Deus será para sempre o coração do mundo judeu, seja para aqueles que vivem em Israel, seja para aqueles que estão no exílio (galut): Babilônia, Siria, Roma, Egito, etc. Jamais Jerusalém deixou de ser o centro de vida e de orientação para povo judeu. Quando era necessário clarificar ou explicar um fato da vida diária do povo na diáspora, a questão era dirigida a Jerusalém, como exemplifica o segundo livro dos Macabeus dirigindo-se à comunidade judaica que estava no Egito.

Como vimos acima: Nos últimos dias, acontecerá que o monte da Casa do Senhor será estabelecido no cimo dos montes e se elevará sobre os outeiros, e para ele afluirão todos os povos. Irão muitos povos, e dirão: Vinde, subamos ao monte do Senhor, à casa do Deus de Jacó, para que nos ensine os seus caminhos, e andemos nas suas veredas; porque de Sion sairá a lei, e de Jerusalém a Palavra do Senhor”. (Is 2, 2-3 //Mi 4, 1-2). Este ensinamento formou o povo e penetrou sua consciência através das gerações. A salvação passa por Jerusalém. É a partir da prática da Palavra que dela sai que se obtém a salvação. Portanto, Jerusalém e Salvação são inseparáveis. Assim sendo, os Mestres de Israel interpretaram e ensinaram que a parte que compete ao homem, na tarefa da salvação, é o reconhecimento da centralidade de Jerusalém (lugar onde habita a Shekiná) através do estudo e da prática da Palavra do Senhor que dela sai e é o próprio Deus que a pronuncia.

Alguns textos da literatura hebraica podem nos ajudar a entrar no pensamento da Tradição do judaísmo pós-bíblico e da importância vivida de Jerusalém na vida do povo:

Com a intenção de enfocar a importância do estudo da Torá, precisamente em Jerusalém, vemos um exemplo a partir de Midrash Tehilim119 sobre o Salmo 122, 2: “Os nossos pés estão dentro das tuas portas, ó Jerusalém.”  “Rabbi Yhoshua Ben Levi disse: O que nos fez vencer a guerra? Foram as portas de Jerusalém, pois os que nelas (nas portas de Jerusalém) chegavam se ocupavam (estudavam) da Torá.” E no t.b. Ktubot 105a é a grandiosidade de Jerusalém que se evidencia e vemos que é de igual proporção o número das casas de estudo: “Rabbi Pinhas disse, segundo Rabbi Oshayia, 394 tribunais havia em Jerusalém, um mesmo número de sinagogas, um mesmo número de casas de estudo (da Torá) e um mesmo número de escolas (estudo da mishná).”

Assim como na Bíblia, Jerusalém continua a ser a Cidade preferida na literatura rabínica. Desenvolveu-se mesmo a consciência de que a Jerusalém celeste depende da terra, da Jerusalém terrestre. No livro de Oseas 11, 9 lê-se: “Não executarei o furor da minha ira; não voltarei para destruir Efraim, porque eu sou Deus e não homem, o Santo no meio de ti; eu não entrarei na cidade.”

No tratado do t.b.Tanit 5a comenta-se: “Rabi Yohanan disse: disse o Santo, Bendito seja Ele: Eu não entrarei na Jerusalém do alto até que Eu não tenha entrado na Jerusalém de baixo. – Mas existe de verdade esta Jerusalém do alto? Certamente que sim, tanto é verdade que a Escritura diz: “Jerusalém, que estás construída como cidade compacta”,(Sl 122, 3). O texto quer dizer que Deus entrará na Jerusalém celeste somente depois de ter entrado na Jerusalém terrestre, pois a Jerusalém terrestre tem a precedência. Sobre isso dirá E. Levinas: “É necessário que se cumpra uma Jerusalém terrestre (pelo estudo e prática da Torá) para que seja completa a presença de Deus na Jerusalém celeste, isto é, não existe outra via para a salvação senão passar pela morada dos homens.”

Sua importância também se expressa pela sua beleza que é cantada entre todas as cidades existentes: “Não há para ti amor maior que o amor da Torá; não há para ti sabedoria maior que a sabedoria da Terra de Israel; não há para ti beleza maior que a beleza de Jerusalém. – Dez medidas de beleza existem no mundo, nove estão em Jerusalém e uma no resto do mundo; dez medidas de sofrimento existem no mundo, nove estão em Jerusalém e uma em todo o resto do mundo; dez medidas de sabedoria existem no mundo, nove estão em Jerusalém e uma no resto do mundo” (Avot de Rabi Natan b 48).

Sua particularidade se manifesta ainda no fato de que ela não foi dividida entre as tribos, ela pertence portanto a todo o povo. É a cidade de Deus por excelência e por isso não pode ser de nenhum em particular, mesmo de nenhuma parte do povo, mas, por ser a Cidade de Deus, todo o povo tem direito sobre ela.

O Novo Testamento testemunha este direito de uso de Jerusalém para o povo que nela chega, sobretudo para o período de festa: “Quando se aproximaram de Jerusalém e chegaram a Betfagé, ao monte das Oliveiras, enviou Jesus dois discípulos, dizendo-lhes:

 2 Ide à aldeia que aí está diante de vós e logo achareis presa uma jumenta e, com ela, um jumentinho. Desprendei-a e trazei-mos”.(Mt 21,1-2). O direito de obter o necessário para a preparação da festa, entre a população de Jerusalém, não está mesmo em discussão no Evangelho: é um costume adquirido por causa do significado de Jerusalém.

Este espírito particular, principalmente por ocasião das festas, produz uma identificação entre povo-terra-templo e Deus, em Jerusalém. Para os Mestres de Israel este é o momento da realização própria de sua vocação: Deus encontra seu povo e o povo encontra-se com seu Deus.

São mesmo previstas halachot para proteger o estatuto da cidade de Jerusalém. Como por exemplo: “Não se alugam casas em Jerusalém” (t.b. Yomá, 12a). Ou também o aspecto de espaço e de comodidade que ela pode oferecer: “Um homem não diz ao seu amigo: o lugar aonde passo a noite em Jerusalém é muito pequeno” (t.b. Yomá 21a). Jerusalém é na realidade a cidade de encontro. É a experiência de unidade e de sentir-se povo, pertencendo, juntos, a um e único Deus: “Jerusalém, cidade que faz todo os filhos de Israel amigos no momento em que todas as tribos vêm em peregrinação” (t.b. Haguigá 26a). O Midrash Tehilim sobre o Sl 122, 4 afirma: “não somente nos dias de festas, mas todos os dias do ano”.

Não apenas o lugar central para o povo porque Deus nela habita, mas é o lugar de oração por excelência, onde o próprio Deus reza. O Midrash ensina que esta importância se fundamenta no exemplo que Deus deu, ele mesmo: “ No início da criação do mundo, o Santo, Bendito seja, fez para Ele uma Sucá e rezava dentro dela” (Midrash Tehilim 76, 3). E o Midrash de Rabí Eliezer 35 diz: “Todos aqueles que rezam em Jerusalém é como se estivessem diante do Trono da Glória onde se encontra a porta dos Céus – (é o lugar onde se encontra uma abertura para ouvir os pedidos dos homens)”.

Desta forma podemos sentir, a partir de alguns textos, que a literatura rabínica não criou uma Jerusalém imaginária, distante da vida concreta do povo, mas ao contrário desenvolveu-se sobre ela (Cidade que Deus escolheu para sua morada) uma consciência sacramental profunda, sustentada pelo estudo e pela prática da Palavra de Deus encarnados no quotidiano da vida da comunidade de fé.

3- A Igreja Cristã e Jerusalém

a- A importância de Jerusalém para o Cristianismo

É a partir de toda a vitalidade que produz Jerusalém, como centro onde Deus fala e de onde faz propagar sua Palavra, lugar onde Ele dialoga com o homem, que analisaremos, brevemente, o nascimento e desenvolvimento do cristianismo e sua relação com Jerusalém.

No início não havia uma identidade exclusivamente cristã em confronto com o judaísmo. Mais tarde, quando a Igreja começa a se definir como uma expressão de fé própria, os Padres da Igreja descrevem, em nível pastoral, esta aparente confusão. É sabido que, nos primeiros séculos, o mundo da Sinagoga exerceu uma forte atração sobre as comunidades cristãs.

Certamente a ruptura entre Igreja e Sinagoga, que se deu paulatinamente no decorrer dos séculos, esconde uma influência profunda entre as duas formas de expressar a fé (judaica e cristã). De fato, o cristianismo testemunha a fé em Cristo morto e ressuscitado, porém a existência do povo hebraico revela também a veracidade da aliança feita por Deus e de seu amor permanente para com seu povo – evidências (muitas vezes ignoradas pela Igreja ao longo dos séculos) do projeto de Deus de que nós somos dependentes. Como diz São Paulo: Não te glories contra os ramos; e, se contra eles te gloriares, não és tu que sustentas a raiz, mas a raiz a ti”.

(Rm 11,18).

Curiosamente, nos primeiros séculos, a compreensão da Igreja sobre Jerusalém e sobre o Templo, mesmo sem ele, não se transforma fundamentalmente em confronto com o mundo hebraico. A vida da Igreja primitiva era basicamente centrada sobre o mundo do templo: “Perseverando unânimes todos os dias no templo, e partindo o pão em casa, comiam juntos com alegria e singeleza de coração”, (Hch 2, 46) No livro do Apocalipse a cidade de Jerusalém é presente a partir da experiência do Cristo ressuscitado. Ela permanece a morada de Deus com os homens; o templo não existe mais (certamente já estamos depois do ano 70),mas Cristo é o seu templo: por isso, mesmo na Jerusalém renovada sua estrutura fundamental permanece. Mesmo se, por ocasião da destruição da Cidade e do Templo pelos romanos (ano 70), grande parte da comunidade cristã deixou Jerusalém, refugiando-se em Pela, sempre permaneceram nela cristãos, e sua centralidade para o cristianismo foi conservada.

Seguindo as citações do Novo Testamento e da tradição oral que foi se formando, sobre os lugares memoráveis de Cristo e das primeiras comunidades cristãs, em Jerusalém começou-se a construir sobre esses pontos, verdadeiros centros de vida cristã. Desta forma Jerusalém se tornou, também para a consciência cristã, o lugar sagrado – concreto – ao longo de sua história.

 

b- Jerusalém terrestre na consciência da Igreja nos primeiros séculos

Não possuímos muito material sobre os dois primeiros séculos, senão a partir da metade do segundo. A Igreja estava ainda em dificuldade para a definição de sua fé – são tantas as afirmações, cada um tenta definir à sua maneira, é o momento em que as heresias proliferam. Exemplificamos com os dois personagens da Igreja mais importantes do segundo século: Justino e Irineu. São eles os defensores genuínos da ortodoxia da Igreja

Justino nasceu em Israel (Sichem), no início do segundo século e morreu em Roma no ano 165/7. Irineu nasceu em Esmirna, no ano 130 e morreu no ano 200. Ele trabalhou sobretudo em Lion (França); teve contato com Policarpo o qual foi testemunha do período dos Apóstolos.

A Igreja então saía da sua crise inicial com respeito à segunda volta de Cristo, que não seria imediata. Com esses autores se desenvolve a teologia do milenarismo, isto é, o final dos tempos que viria em mil anos. Não se pode afirmar com exatidão o significado dos mil anos: se é uma contagem matemática ou uma maneira simbólica para dizer um número indefinido. No entanto a afirmação é de que este final será no tempo, na história, e a Jerusalém terrestre será palco central onde este período glorioso se concretizará.

Justino vê Jerusalém como o lugar da Ressurreição final, constituindo desta forma a Cidade-coração da vida cristã. Ele foi o primeiro que abriu o diálogo com o mundo hebraico na sua obra Diálogo com Trifon. Para ele Jerusalém terrestre é a base da redenção final e a história terminará exatamente nela. No cap. 51, 2 Justino interpreta Mt. 26,29: “E digo-vos que, desta hora em diante, não beberei deste fruto da videira, até aquele dia em que o hei de beber, novo, convosco no reino de meu Pai.” não como um banquete escatológico, ao que parece afirmar o texto, mas afirma Justino: “Jesus retornará em seguida a Jerusalém (terrestre), e participará do banquete”.

No cap. 80,1 Justino propõe a discussão de como será o final dos tempos: para ele a Redenção acontecerá na Jerusalém terrestre. Perguntou Trifon a Justino: “ Dize-me, professas tu realmente que Jerusalém será reconstruída? Que teu povo se reunirá e se regozijará nela com Cristo e ao mesmo tempo com os Patriarcas, os Profetas, os Santos de nossa raça, ou mesmo com os Santos que se encontram entre eles, que se fizeram prosélitos antes da vinda do Cristo? … Eu disse (responde Justino): não sou miserável, Trifon, para falar contrariamente ao que penso. Eu te declaro, e comigo muitos outros temos essas ideias, ao ponto que nós sabemos perfeitamente que tudo isso acontecerá”. – Esta mesma ideia é confirmada no cap. 81,4: “… De outra parte, entre nós, um homem, de nome João, um dos apóstolos de Cristo, profetizou, no Apocalipse (20, 4-6) o que lhe foi dito, que aqueles que acreditaram em Cristo passarão mil anos em Jerusalém; depois disso chegará a ressurreição total, em uma palavra, a eternidade…”

Ireneu segue mais ou menos o mesmo ponto de vista de Justino. Na sua obra Adversus Haereses cap. V, 35, 1-2, afirmará que tudo quanto disseram os profetas acontecerá na Jerusalém terrestre e não nos Céus.

Poderíamos continuar as citações sobre o tema, mas a intenção é somente mostrar a centralidade e a necessidade da Jerusalém terrestre na consciência da Igreja primitiva, em paralelo à compreensão judaica.

 

c- Jerusalém celeste na teologia dos Padres da Igreja, a partir do 3º século

Progressivamente a Igreja vai se tornando universal entre os povos e vai perdendo sua particularidade. No seu discurso teológico a memória histórica da Jerusalém terrestre se torna frágil. Doravante para o povo que se torna cristão a Jerusalém terrestre não faz parte da sua cultura e sentimos por conseguinte a mudança: a Jerusalém terrestre não será mais um lugar concreto, mas sobretudo um conceito universal, celeste, está em todos os lugares.

Já no início do terceiro século vemos mudar o discurso sobre Jerusalém. Orígenes, que nasceu no ano 185 e morreu em 254, representa esta mudança. Após ser formado em Alexandria, vem a Cesaréia marítima e desenvolve seu enorme trabalho como escritor, tradutor e comentador da Bíblia. Na sua homilia sobre o Cântico dos Cânticos 1,5, Orígenes faz um longo comentário alegórico para dizer que não se trata das “filhas de Jerusalém” no sentido concreto. Da mesma forma na sua obra Dei Principi IV, 3,8, Orígenes afirma que se trata sempre da Jerusalém celeste. Portanto, a Jerusalém terrestre é deixada de lado ou talvez intencionalmente evitada, para poder assim marcar a diferença em relação judaísmo, que a tinha muito concreta no seu ensinamento e vida litúrgica.

Um século depois Orígenes, encontramos Jerônimo, que nasceu no ano 342 e morreu em 420. Fugindo das intrigas, romanas veio refugiar-se perto de Jerusalém; querendo ou não, permaneceu junto a cidade até sua morte e produziu um fabuloso trabalho para a Igreja. Como para Orígenes, Eusébio, Agostinho, etc., para Jerônimo, Jerusalém é significativa somente como símbolo da “cidade celeste” ou quando ela expressa a nova realidade espiritual da Igreja. Na sua Carta 14 dedicada a Heliodoros o Monge ele diz: “Quando retornares ao teu país, caminharas sobre a Jerusalém celeste.” Parece que Jerônimo tinha o cuidado de não mencionar Jerusalém sem precisar que deveria ser sempre a celeste, mesmo quando o contexto falava da Jerusalém terrestre. Na sua Homilia sobre o ingresso de Jesus em Jerusalém, em Lc. 19,29-38 e paralelos, ele diz: “Jesus entrou na Jerusalém celeste.”

No entanto, vemos que a presença de Jerônimo em Belém, servindo-se da riqueza cultural e espiritual de Jerusalém, é o sinal paradoxal da relação vivida pela Igreja em relação a Jerusalém. É de se pensar que o fato de o cristianismo estar ligado, como fundação e desenvolvimento à Jerusalém terrestre, condiciona a Igreja, mesmo sem querer, a buscar nela, permanentemente, o seu sustento. A leitura da Bíblia, a realidade histórica de Cristo e da Igreja, seu mundo litúrgico, etc., não permitem, na prática, um distanciamento da Jerusalém terrestre. E na verdade a história vai mostrar que os cristãos sempre tentaram estar em Jerusalém, mesmo pela violência, como sabemos pela história das Cruzadas.

4- Jerusalém reconstruída na memória do povo judeu

Se por um lado, como podemos ver na história, a Igreja pode estar em Jerusalém e de fato esteve sempre, desenvolveu-se sobremaneira, como teologia, uma compreensão da Jerusalém espiritual e não da Jerusalém terrestre. Movimento contrário presenciamos no mundo judaico. Após o ano 70, com a tomada de Jerusalém e a destruição do Templo, e mais tarde, com Adriano (131-154), foi proibida a presença dos judeus na cidade. Mesmo se dois séculos depois esta lei foi cancelada, a condição de retorno jamais foi facilitada. Sucessivamente Jerusalém foi dominada por governos estrangeiros: romanos, cristãos, muçulmanos, mamelucos, turcos, ingleses, e no entanto, para o mundo judaico, esta cidade jamais perdeu seu aspecto terrestre e jamais se transformou em uma cidade celeste.

A firme esperança de retornar a Jerusalém e de reconstruí-la foi uma constante na história do povo judeu, seja para aqueles que estavam em Israel como para aqueles que viviam na diáspora, o coração do povo estando sempre voltado para ela. Na consciência do povo, Jerusalém permaneceu uma cidade sobre a terra, com dimensões imensuráveis: “As portas da Jerusalém futura chegarão até Damasco” (Sifrei Devarim,1). Sua particularidade: ser a escolhida de Deus no coração da terra de Israel e de estar no seu coração a morada de Deus, o Templo, caracterizando-a com uma vocação especial – ser referência universal, pois Deus nela habita. Isso não quer dizer que todas as cidades podem ser compreendidas como sendo Jerusalém, mas é Jerusalém que atinge todas as cidades.

O salmo 137 será a bandeira do povo de Israel durante a história. O Talmud dirá: “ todo aquele pinta a sua própria casa, não deve terminar seu trabalho, mas deve deixar uma parte incompleta afim de se recordar da destruição do Templo” (t.b. Baba batra 60b).

Portanto Jerusalém será viva na memória do povo que a memoriza a cada dia. Quando não será mais possível nela habitar,    Jerusalém se tornará o ponto de orientação da vida para todos. Este fato será mais expressivo e profundamente vivido na prática da  vida litúrgica. Por isso, a posição da oração ultrapassa o ato físico de rezar, pois requer uma unidade de coração com Jerusalém e contudo o que ela significa. No tratado Berachot 30a se diz: “Na oração orienta teu coração na direção de Jerusalém”. A oração em Jerusalém, ou voltado para ela, faz do homem orante senhor do tempo, pois a estrutura da oração segue uma disciplina de tempo e da mesma forma senhor do espaço, dado que ele comunga com Jerusalém mesmo distante. Assim sendo, o ato de rezar e a comunhão criada por ela não são temporais, mas atemporais, e no entanto o homem não perde sua relação com o seu tempo e com o espaço; no ato de rezar é sua vida que se faz presente, é sua história que é atualizada.

Não havendo mais o Templo, e Jerusalém tendo passado para o poder de outros governos e religiões, e não podendo mais nela entrar, os Sábios de Israel estruturaram a vida da comunidade de tal modo que estes elementos são retomados e passam a fazer parte da vida do povo cada dia e em cada momento. A base desta estrutura é a esperança de que tudo será reconstruído; pede-se a Deus para que tudo seja realizado aqui na terra: que o povo retorne à terra de Israel e que seja reconstruída a Jerusalém terrestre. Neste espírito parece mesmo que a consciência hebraica compreendeu que, quando se reza a Deus é como se tudo dependesse d’Ele, é Ele que tudo pode, enquanto que de fato compete ao homem trabalhar e não a Deus.

Encontramos, em todas as épocas tentativas por parte dos judeus de estarem em Jerusalém. Entretanto, na impossibilidade desta realização, ela será presente na memória do homem judeu em todas as etapas de sua vida. No primeiro ato da vida de um recém-nascido judeu, há já a necessidade de se recordar Jerusalém e pedir para que ela seja reconstruída. Na oração que se faz no momento da circuncisão (berit milá) diz-se: “Admite-se que o sangue do pacto seja aceito, no meio da congregação, como sacrifício agradável oferecido ao Senhor. Que chegue o dia em que o trono de Deus retorne a Jerusalém e se ofereçam sacrifícios lá novamente …”. No matrimônio (hatuná), que é a expressão maior de alegria, Jerusalém é recordada como parte integral do contentamento: “Bendito és tu ó Senhor, que criou o prazer e alegria, o noivo e noiva, o gozo e a música, alegria e boas novas, o amor e a fraternidade, a paz e a amizade. Nas cidades de Judá, e nas ruas de Jerusalém, ó Senhor, nosso Deus, vozes de júbilo e alegria, as vozes do noivo e da noiva, exclamações de júbilo, namorados deixando seu dossel do casamento e o jovem retirando se da festa com sua música. Bendito és tu, ó Senhor,  pois o noivo se alegra com a noiva”.

Estes duas orações marcam dois eventos importantes na vida de um judeu, mas pode acontecer somente uma vez para cada indivíduo. A tradição sabiamente guardou outros momentos que representam fortemente a história do povo, onde Jerusalém é lembrada não uma vez, mas todos os anos, para cada um da comunidade. Na festa de Páscoa (Pesah), quando se celebra a formação do povo judeu e a liberdade de ser povo, diz-se a oração: “Tem compaixão ó Senhor, nosso Deus, com teu podo Israel e com a tua cidade, Jerusalém, e com Sion, a morada da Tua glória, como também com Teu altar e com teu Templo. Reconstrua Jerusalém rapidamente, tua cidade sagrada, ainda nos nossos dias; faça nos subir a ela para que nos regozijemos em seu estabelecimento, comamos dos seus frutos e nos saciemos de sua opulência…”. Rashi126 comenta esta oração dizendo: “A santidade dos filhos de Israel depende de sua fé na santidade de Jerusalém. Esta cidade Santa, de fato, mesmo se se encontra em estado de desolação, goza sempre da presença do Rei dos Céus, que se faz presente sobre os muros do Templo destruído, percebíveis nas pedras do muro ocidental.” Embora Rashi está a uma distância de onze séculos da destruição do Templo, este comentário testemunha o quanto é forte a consciência judaica da presença de Deus em Jerusalém. Como na Bíblia a presença de Deus se mistura com os objetos concretos da construção, com as pedras e seus muros.

É possível que todos esses três fatos acima citados (matrimônio, circuncisão e Páscoa) não possam realizar de forma concreta, por circunstâncias políticas existentes ou por outros fatores que possam interferir. Por isso, de maneira mais intensa, o judaísmo estabeleceu que Jerusalém deve também fazer-se presente na memória do povo a cada dia. Na oração que se faz à mesa (birkat hamazon) diz-se: “Tenha compaixão ó Senhor, nosso Deus, com teu povo Israel, com Jerusalem tua cidade, com Sion, a morada de tua glória, com o reino da dinastia de Davi ungido por ti e com o santuário que leva teu nome”.

Da mesma forma, na oração diária que o judeu deve recitar três vezes (Shemone Eshre), a oração por excelência, na 14ª bênção reza-se: “E Jerusalém, sua cidade, retorna a ela com misericórdia, habitando nela como prometeste; reconstrói-a em breve em nossos dias como um edifício eterno restabelecendo nela o trono de Davi. Bendito és tu, ó Eterno, que reconstrói Jerusalém.”

Todas essas orações atravessaram a história, formando a consciência do povo que vivia longe de Israel e de Jerusalém. Isto fez com que Jerusalém fosse lembrada, fosse vivida e, ao mesmo tempo, essa intencional insistência alimentou a esperança do retorno do povo. Os diferentes momentos em que ela é lembrada não são apenas um exercício mental ou parte disciplinar de uma liturgia divorciada da realidade, mas ao contrario, esses momentos são concretos na existência de cada indivíduo. Desta forma, Jerusalém é parte integral da vida inteira do homem judeu como sua fonte de geração em geração.

Com a formação do estado de Israel poder-se-ia dizer que uma grande parte da ausência concreta de Jerusalém chegou ao fim e algumas coisas deveriam ser deixadas de lado. Mas não, tudo tomou uma dimensão nova. Falta ainda sua plenitude. Para o dia da Independência do Estado de Israel (iom ha-atsmaut ), o rabinato compôs uma oração para a nação e o nome de Jerusalém vem citado, não sob uma visão política simplesmente, mas assumiu sua posição de relação entre Deus e o povo: “E a nossos irmãos, a toda a família de Israel, Te pedimos que nos reúna de todos os países onde estão dispersados e nos restabeleça logo em Sion, Tua cidade e em Jerusalém, Teu Santuário, como está escrito na Lei de Moisés Teu servo; ‘Se fostes dispersados até a extremidade dos céus, dali o Senhor, vosso Deus os recolherá e reunira na terra de vossos pais para que tomeis posse e estareis melhor e sereis mais numerosos que vossos pais”.

Essa oração feita hoje no Estado de Israel pelo povo judeu, em sua terra, assume um significado espiritual e histórico profundo.

Como vimos, durante gerações e gerações este povo rezou e acreditou na sua volta à terra de Israel e na reconstrução de Jerusalém. O momento preciso que este fato deveria acontecer não era importante saber, o fundamental foi acreditar que esta esperança se concretizaria. As gerações que precederam não conseguiram ver o que a geração atual recebeu: o povo retornou à sua terra e Jerusalém foi reconstruída.

Curiosamente a esperança não terminou. Retornar à terra e reconstruir Jerusalém ocupa a mesma centralidade na vida quotidiana do homem judeu de hoje como no passado. Deus nela habita para sempre e sua missão é fazer com que todos os seus habitantes experimentem esta presença. E é através de Jerusalém e do povo de Israel que todo o mundo será habitado por Deus, pois sua essência é irradiar a presença de Deus ao mundo. Assim sendo, Jerusalém deve ser reconstruída no sentido pleno do termo, isto é, como cidade-morada de Deus, onde todos os homens experimentem sua presença – Cidade que permite a visibilidade de Deus. Por isso, sua reconstrução é dinâmica, ela deve ser reconstruída e Santa, para poder assim cumprir sua missão que é de fazer transparecer a presença de Deus no mundo.

Concluindo, podemos dizer com o Talmud afirma que rezar por Jerusalém é um dever perene do homem judeu. Reconstruí-la é ir além do seu aspecto material, mas criar a harmonia entre Deus e o homem. Primeiramente para aqueles que nela vivem e depois irradiá-la ao mundo. Na prática, isso implica uma disposição interior para encontrar-se com Deus e construir a paz com o outro, pois a paz sobre Jerusalém é a experiência de Deus entre os homens, em outras palavras é o mandamento de procurar ser santo: “Rabí Yehoshua bem Levi diz: Está escrito: ”Pedi a paz para Jerusalém” (Sl 122, 6-7) e possam gozar dela aqueles que te amam. Que a paz reine entre teus muros e nas tuas casas. Um grande mandamento deixou o Santo, Bendito seja Ele, aos filhos de Israel: lutar pela paz em Jerusalém” (t.b. Baba Kama 31b).

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Levany Júnior

Levany Júnior é Advogado e diretor do Blog do Levany Júnior. Blog aborda notícias principalmente de todo estado do Rio Grande do Norte, grande Natal, Alto do Rodrigues, Pendências, Macau, Assú, Mossoró e todo interior do RN. E-mail: [email protected]

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