GUAMARÉ RN-Modelo hospitalar no Brasil facilita a violência obstétrica, por Danielle Valle


Por Danielle Valle

Meu corpo, minhas regras?

No Justificando

Nascer hoje no Brasil significa, em 98,4% dos casos, passar por uma vivência médico-hospitalar, na maior parte dos casos (52%, aproximadamente) com intervenção cirúrgica (cesárea) e, nos demais, através de parto vaginal repleto de intervenções e procedimentos clínicos invasivos, em regra praticados como rotina e sem o consentimento da mulher.

Esse modelo de assistência é conhecido como tecnocrático, caracteriza-se pela primazia da tecnologia sobre as relações humanas, e se apresenta como neutro em relação aos valores, mascarado sob um discurso de que é adotado por decorrer puramente de conhecimento científico. Na sociedade em que a maioria quase absoluta de partos ocorre em ambiente hospitalar, o nascimento é encarado como um procedimento eminentemente técnico, comandado e conduzido exclusivamente pelo médico e sua equipe, seguindo suas regras e procedimentos.

Seguindo essa premissa, ao ingressar no estabelecimento onde o parto é realizado, a mulher passa a cumprir as decisões ditas “técnicas” da equipe médica, responsável pelo seu atendimento, e perde a autonomia da vontade, especialmente sobre o próprio corpo,  embora se trate de direito básico e fundamental garantido a qualquer pessoa pela Constituição Federal [1].

Mas será que existe justificativa para isso? Será a gestante um perigo para si mesma e para o seu bebê, a ponto de ver tolhida e até negada sua autonomia e protagonismo no processo de gestação e parto? E os procedimentos médicos, estão de acordo com as evidências científicas? São realmente necessários e convenientes? Para quem?

Pode parecer incrível, mas a mulher, na qualidade de fêmea mamífera, tem capacidade fisiológica para gestação e parto natural sem nenhuma assistência ou intervenção, salvo raras exceções. Embora hoje em dia isso pareça muito distante da realidade, até um século atrás a regra era o nascimento através de parto espontâneo e natural, no ambiente domiciliar.

Durante muitos e muitos séculos, parir era um ato eminentemente feminino e privado, realizado em domicílio com auxílio das parteiras, aparadeiras ou comadres, que eram mulheres de confiança da gestante e reconhecidas pela comunidade por sua experiência na realização do parto e no acompanhamento durante o trabalho de parto e pós-parto. O parto era uma atividade desvalorizada, suas dores consideradas como consequência do pecado original e, portanto, não era digno de atenção por parte da medicina formal, que relegava seu acompanhamento a mulheres que nada ou pouco recebiam por isso.

Paradoxalmente, essa realidade permitiu uma forte união entre as mulheres que, juntas, vivenciavam o parto com ajuda mútua, compartilhavam conhecimentos extraídos da observação e compreensão dos processos fisiológicos próprios do nascimento, pela troca de informações, de suas experiências e pela alteridade entre elas. Desse modo a solidariedade supria a precariedade de recursos tecnológicos. A saída era respeitar e ouvir os corpos femininos e os partos eram tão diversos quanto são os serem humanos, podendo-se afirmar que o nascimento era um momento e um espaço de pura sororidade[2] e desse modo, durante séculos, foi gerado o conhecimento sobre o nascimento humano.

A mulher deixa, então, de ser vista como culpada e passa ser vista como vítima da própria natureza e o parto é encarado como um fenômeno fisiologicamente patogênico, por implicar danos, riscos e sofrimento, o que justificaria a intensa intervenção médica.

Seguindo essa ótica, há uma profunda transformação no local e no modo de parir. “Oferecendo solidariedade humanitária e científica diante do sofrimento, a obstetrícia cirúrgica, masculina, reivindica sua superioridade sobre o ofício feminino de partejar, leigo ou culto”[3] e a atividade das parteiras passa a ser indesejável ou proibida em diversas culturas e países, inclusive no Brasil.

Na metade do século XX o processo de hospitalização do parto estava instalado e passou a ser a regra, mesmo sem nenhuma evidencia científica consistente de que fosse mais seguro que o parto domiciliar. As mulheres passaram a ter seus filhos longe de suas referências afetivas, de suas roupas, de seus pertences, dos seus lares, vizinhas e parentes, e passaram a ser assistidas por pessoas desconhecidas e submetidas ao tratamento imposto na unidade onde é “internada” para ter o filho, onde dificilmente é ouvida, considerada e respeitada no processo de nascimento.

Apesar de diversos estudos apontarem desde o decênio de 1980 o risco do modelo de parto hospitalar hoje adotado, tanto para a mulher quanto para a criança, as práticas intervencionistas se perpetuam, sem base em evidencias científicas, mas com profundas raízes culturais, onde o processo natural de nascer é tido como medonho, um agravo à saúde e, por isso mesmo, deve ser prevenido por um evento médico cirúrgico, oferecido como moderno, indolor, conveniente em horários e datas, racional, sem gemidos e, se possível, sem genitais expostos e destroçados, dando-se mais “decência” ao procedimento de vir ao Mundo e dele afastando sua dimensão sexual.

Parte-se do pressuposto de que a mulher precisa de intervenção médica para parir, de que a vida contemporânea retirou dela tal capacidade fisiológica e, portanto, deve-se lançar mão da tecnologia disponível nas clínicas, maternidades e hospitais independentemente da vontade, da percepção, do estado de saúde da parturiente e do desenvolvimento daquela gestação. O procedimento é padronizado, retirando dele as peculiaridades próprias de cada parto, de cada indivíduo, de cada história.

Apesar das promessas de superação na natureza pelo conhecimento técnico, o modelo de parto hospitalar, praticado tanto no sistema público quanto nas unidades particulares, revela reiterados e graves desrespeitos às mulheres, prática conhecida como violência obstétrica e pode ser definida como: “a violência cometida contra a mulher grávida e sua família em serviços de saúde durante a assistência ao pré-natal, parto, pós-parto, cesárea e abortamento. Pode ser verbal, física, psicológica ou mesmo sexual e se expressa de diversas maneiras explícitas ou veladas. Como outras formas de violência contra a mulher, a violência obstétrica é fortemente condicionada por preconceitos de gênero”.[4]

O modelo de assistência hospitalar praticado no Brasil facilita esse tipo de violência, na medida em que os atos do médico são considerados como concernentes a sua autoridade e atuação profissional, sem que precise justificá-los à mulher, ali submetida às decisões ditas “técnicas” da equipe médica, às quais não pode se opor, questionar ou mesmo saber das razões que levaram aos procedimentos que atravessam seu corpo.

O parto hospitalar, apresentado como seguro, decente e avançado, revela uma realidade diferente e, ao contrário do que se vende, não representou efetiva diminuição da morbimortalidade materna e perinatal, ao contrário, muitas vezes as rotinas hospitalares se apresentam como dificuldade da sua redução. Para além dos óbitos, as rotinas obstétricas hospitalares vêm deixando marcas profundas no corpo e na alma das parturientes, como revela a pesquisa da Fundação Perseu Abramo, realizada em 2005, onde se constatou que 25% delas já foi vitima de violência obstétrica [5].

A violência obstétrica atinge todas as classes sociais, embora se dê maior destaque ao desrespeito sofrido pelas mulheres na rede pública, onde o parto “normal” implica falta de amparo, orientação e informação sobre seu estado de saúde, obstrução ao direito de ter acompanhantes, tratamento grosseiro, falta de acesso à anestesia e recursos para minimizar as dores de parto e mesmo do corte, realizado como rotina e muitas vezes sem o devido cuidado.

As notícias sobre mulheres parindo em macas pelos corredores dos hospitais públicos, sem anestesia, ouvindo insultos são divulgadas com certa frequência e ajudam a alimentar o medo tanto do parto em si, principalmente o vaginal, quanto do atendimento oferecido na rede pública[6].

Embora na rede particular a mulher tenha mais acesso à tecnologia e aos métodos que aliviam a dor do parto, também ali é rotineiramente submetida a procedimentos invasivos e questionáveis, como a imposição da posição para o parto e imobilização da parturiente, utilização ostensiva da ocitocina [7] da episiotomia [8] de rotina, que fazem parte do “pacote do parto normal”, realidade que acaba tornando atraente a cesárea eletiva, oferecida como alternativa mais sedutora e conveniente a todos, nesse sentido:

Considera que, no parto vaginal a violência da imposição de rotinas, da posição de parto e das interferências obstétricas desnecessárias perturbam e inibem o desencadeamento natural dos mecanismos fisiológicos do parto, que passa a ser sinônimo de patologia e de intervenção médica, transformando-se em uma experiência de terror, impotência, alienação e dor. Desta forma, não surpreende que as mulheres introjetem a cesárea como melhor forma de dar à luz, sem medo, sem risco e sem dor (Rehuna, 1993) [9].

O resultado é um número alarmante de partos cirúrgicos (cesárea) com todos os riscos e as restrições relacionadas ao procedimento, desde a anestesia até a cicatrização do corte profundo, que rompe diversas camadas epiteliais, o músculo abdominal e o próprio útero, e ainda, as consequências do procedimento no pós-parto, onde a mulher tem que se recuperar da cirurgia ao mesmo tempo em que cuida de um recém nascido.
Na experiência do parto hospitalar atual a mulher acaba escolhendo, melancolicamente, entre ser “cortada embaixo” ou “cortada em cima”, e com sorte conseguirá acesso a (alguma) informação confiável, anestesia e melhores condições cirúrgicas.

A origem das intervenções hospitalares encontra-se muito mais na nossa cultura do que em evidencias científicas. Exemplo disso são os cortes realizados na mulher durante o parto e que estão relacionados à crença de que são necessários para preservar o estado genital da parturiente, preservando a vagina do “alargamento” causado pela passagem do bebê e que a deixaria inapta para estímulos sexuais.

Com base nessa crença, a episiotomia (corte cirúrgico da vulva) é a única cirurgia realizada no Brasil sem o consentimento da paciente e sem que ela seja informada da sua necessidade. No momento da sutura também é usual a  realização do “ponto do marido” que consiste em um ponto mais apertado, que tem a finalidade de deixar a vagina bem apertada para “preservar” o prazer masculino nas relações sexuais, depois do parto [10], o que na maioria das vezes acarreta desconforto e dor para a mulher nas relações sexuais [11]. Muitas vezes realizada sem o devido cuidado, a episiotomia é responsável pela deformação genital de diversas mulheres [12].

Na prática ocorre o contrário do que se promete, que seria a preservação da vagina, e a prática ostensiva do “ponto do marido” revela que as rotinas hospitalares estão impregnadas de valores sociais, escondido por trás de condutas “técnicas”.

Na escolha por ser “cortada em cima”, muitas vezes pesa na decisão da mulher a preocupação de preservar a vagina da passagem do bebê, de modo a não “estragar o play ground”, expressão popular bastante reveladora da visão de que o corpo feminino é destinado, apenas, à satisfação masculina, não tendo valor em si mesmo. Simone Diniz mais uma vez é precisa ao pontuar que:

“A imagem que o discurso médico sugere é que, depois da passagem de um “falo” enorme – que seria o bebê – o pênis do parceiro seria proporcionalmente muito pequeno para estimular ou ser estimulado pela vagina. Isso poderia implicar numa autorização para que o homem procure uma mulher “menos usada” ou demande como alternativa o coito anal.

A necessidade masculina de um orifício devidamente continente e estimulante para a penetração seria então prevenida ou resolvida pela episiotomia, ou mesmo pela cesárea, preservando-se o estatuto da vagina como órgão receptor do pênis. No Brasil, prevalece um “sistema erótico” baseado nas noções de atividade-masculino e passividade-feminino. Essa idéia ratifica a teoria da vagina apertada ou frouxa (passiva, diante do falo que a estimula e é estimulado), em oposição à compreensão de vagina e vulva como órgãos ativos, capazes de se contrair e relaxar, de acordo com a vontade feminina, pois são músculos voluntários.” [13]

Percebemos, assim, que a violência obstétrica está impregnada de crenças culturais, com raízes profundas na visão submissa e serviçal da mulher, que foi destituída de seu espaço de construção coletiva de conhecimento empírico, quebrando os elos da sororidade do parto enquanto evento feminino e de reapropriação do corpo, em nome do discurso técnico que nada mais é do que a máscara que cobre a indústria da saúde e a perpetuação da cultura machista, que vê mulher como objeto.

O tema é vasto e suscita vários questionamentos e, por isso mesmo, será novamente abordado por aqui, então, até o próximo!

Daniela Valle da Rocha Müller é membra da AJD (Associação Juízes para a Democracia). Foi advogada na área de Direitos Humanos e também trabalhista, já foi Juíza do Trabalho na 10ª Região e desde 2001 é Juíza do Trabalho da 01ª Região, Rio de Janeiro. Atualmente é diretora de Direitos Humanos da AMATRA-1, vegetariana, mas não todos os dias, mãe, cozinheira e entusiasta da produção orgânica, vai se virando no meio da luta de classes e sonha com a eficácia plena da legislação social.

[1] – Constituição Federal, art. 5º, inc. II, III, X, XIV, XXXII, XXXIII.
[2] – O que é Sororidade e por que precisamos falar sobre. http://justificando.com/2016/06/02/o-que-e-sororidade-e-por-que-precisam…
[3] e [9]– “Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento” (DINIZ, Carmem Simone Grilo in Ciência & Saúde Coletiva 10 (3):627-637, 2005).
[4] – Violência Obstétrica é Violência Contra a Mulher – Parto do Princípio e Fórum de Mulheres do Espírito Santo – 2014, (KONDO, Cristiane Yukiko – coord.)
[5] [10] [13] – “Violência Obstétrica – Parirás com Dor” – Dossiê elaborado pela Rede Parto do Princípio para a CPMI da Violência Contra as Mulheres, 2012.
[6] – relatos de tratamentos recebido por parturientes no atendimento público: “Cala a boca e faz força direito! Você quer matar o seu filho?” Juliana, Vitória (ES)/“Falaram pra mim: ‘Na hora de fazer tava bom, né?’.”Ana Paula, 17 anos, Telêmaco Borba (PR)/ “Eu lembro que falavam assim pra mim: ‘Na hora de fazer, você tava gostando, não é?’ É muita humilhação. Você tá lá sozinha, com dor, com medo, e as pessoas ainda ficam falando desse jeito.” Silvana, Rio de Janeiro (RJ)
[7] – ocitocina é um hormônio sintético utilizado para aumentar a intensidade das contrações, normalmente usado abusiva e excessivamente, aumentando demais a dor do parto, a ponto de algumas mulheres desmaiarem no processo.
[8] – episiotomia é uma cirurgia realizada na vulva, cortando a entrada da vagina
Com uma tesoura ou bisturi, algumas vezes sem anestesia, e que afeta a estrutura do períneo, como músculos e tendões, responsáveis pela sustentação de algum órgãos, pela continência urinária e fecal e ainda tem ligações importantes com o clitóris.
[11] – “Num determinado momento da sutura, ele disse que ia dar dois pontos que iam doer um pouco mais, depois comentou que era o “ponto do marido”. Perguntei a ele o que era isso e ele disse que era um ponto que era dado para que “as coisas voltassem a ser parecidas com o que era antes” e que, se eles não fizessem isso, depois o marido voltava para reclamar. Como a referência ao marido é uma constante, perguntamos se
eles já viram um marido reclamar, ao que responderam que não, uma vez que esse
ponto era sempre feito. (DINIZ)
“E o médico, depois de ter cortado a minha vagina, e depois do bebê ter nascido, ele foi me costurar. E disse: ‘Pode ficar tranquila que vou costurar a senhora para ficar igual a uma mocinha!’. Agora sinto dores insuportáveis para ter relação sexual.” J. atendida através de plano de saúde em São Paulo-SP (relatos extraídos do Dossiê elaborado pela Rede Parto do Princípio para a CPMI da Violência Contra as Mulheres, 2012)
[12] – “… temos colegas que aleijam mulheres. Chamamos algumas episiotomias de ‘hemibundectomia lateral direita’, tamanha é a episiorrafia, entrando pela nádega da paciente, que parece ter três nádegas. Sem falar das episiotomias que fazem a vulva e a vagina ficarem tortas, que chamam de ‘AVC vulvar’, sabe, como quando alguém tem um AVC e a boca e as feições ficam assimétricas?” fala atribuída a um diretor de hospital em DINIZ, 2006. (relatos extraídos do Dossiê elaborado pela Rede Parto do Princípio para a CPMI da Violência Contra as Mulheres, 2012)

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Levany Júnior

Levany Júnior é Advogado e diretor do Blog do Levany Júnior. Blog aborda notícias principalmente de todo estado do Rio Grande do Norte, grande Natal, Alto do Rodrigues, Pendências, Macau, Assú, Mossoró e todo interior do RN. E-mail: [email protected]

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