Em época de convulsão política por que ainda precisamos falar de futebol?, por Vinícius Canhoto


Em época de convulsão política por que ainda precisamos falar de futebol?

por Vinícius Canhoto

Resumo: este artigo pretende discutir alguns aspectos culturais e políticos presentes no futebol, mas que representam valores e a visão de mundo de uma determinada classe social.

A tese da “grande vitrine”

Há algumas semanas um dirigente do São Paulo F. C., ao responder de forma franca sobre a constante e ininterrupta venda de jogadores de sua agremiação para o mercado internacional, criou a tese da “grande vitrine”. O argumento do dirigente era simples: o SPCF é a maior vitrine do futebol brasileiro, por isso, vende mais e melhor seus jogadores.

As mesas-redondas da TV, dada sua saturação e atual superficialidade, se detiveram a discutir a veracidade ou não da afirmação do dirigente, fizeram cálculos, compararam com outros clubes, fustigaram rivalidades, porém em nenhum momento tocaram na natureza da pergunta e na concepção de mundo contida na resposta. As mesas-redondas não se perguntaram sobre as principais questões que o futebol tupiniquim precisa responder: Por que o Brasil precisa produzir jogadores como matéria-prima para o mercado internacional? Por que o futebol brasileiro precisa ser uma vitrine de venda e não um protagonista da promoção do espetáculo?

Deixemos as mesas-redondas de lado e vamos analisar a teoria da vitrine. Chega a ser simbólico e não casual que esta tese tenha vindo do dirigente de um clube cujas origens e representação remete à elite paulistana, formada a partir da economia agro-exportadora. Portanto, a concepção de mundo contida nas palavras do dirigente apenas expõe a visão de economia política do pacto colonial, que promove o enriquecimento particular (as finanças do clube) por meio da produção primária para a exportação em detrimento do empobrecimento geral (toda a sociedade esportiva).

O atleta como commodities

Neste contexto, o atleta de futebol, que é o pé-de-obra, se converte em comódite, ou seja, matéria-prima em estado bruto e sem valor agregado. Não é por acaso que clubes europeus contratam jogadores cada vez mais jovens e menos formados. Um jogador jovem e talentoso é um diamante bruto a ser lapidado e convertido em brilhante a ser comercializado no mercado com valor agregado. O jogador jovem e talentoso não é só o diamante bruto, é o minério de ferro, a soja, o petróleo bruto. Um produto capaz de enriquecer pequenas parcelas da sociedade apesar do empobrecimento generalizado. Um jogador maduro, formado, agrega valor de mercado.

Clube barriga de aluguel ou clube motel?

O resultado desta economia política e desta cultura econômica se reflete dentro de campo. Os jogadores que se mantém no futebol brasileiro ou são a xepa da feira global ou jogadores em final de carreira que querem acumular mais alguns milhões apesar da decadência física ou jogadores malogrados no mercado internacional por problemas de adaptação às culturas estrangeiras. Geralmente estes dois últimos casos (por ausência de empregador no exterior) voltam ao futebol brasileiro como astros e com salários astronômicos e, dado o baixo nivelamento técnico local, ainda conseguem promover algum comemorado crepúsculo de carreira.

Mantida a atual ordem, visão de mundo, economia política e o pacto de natureza colonial, que condena o Brasil à vocação de eterno produtor de gêneros primários, o futebol nacional nunca mais verá seus craques jogarem no auge de suas carreiras com as camisas de clubes brasileiros. A seleção brasileira cada vez mais será formada por jogadores desconhecidos da massa de torcedores, os antigamente e ironicamente chamados de “jogadores estrangeiros”. Não é por acaso que os ídolos recentes da “vitrine” SPFC e do Palmeiras sejam longevos e talentosos goleiros. Não é por acaso que o atualmente o SPFC flerta com a possibilidade do rebaixamento e jogar a segunda divisão apesar de ser o campeão de vendas. Mais que trágica a situação do futebol brasileiro chega a ser absurda porque nosso futebol perde jogadores até para economias menores que a brasileira.

Elitização e higienização dos estádios

“Futebol não é coisa para pobre!” ⎯ Esta frase simples e direta saiu da boca do ex-presidente do Atlético-MG Alexandre Kalil em entrevista ao jornal El País. O mesmo indivíduo que é atual prefeito de Belo Horizonte e só foi eleito porque pediu voto e teve voto dos pobres em sua eleição, como chefe do Executivo da capital, vetou um projeto de lei que previa a venda de 30% da carga total de bilhetes a preços populares nos estádios de BH, com o seguinte argumento: “No mundo inteiro, futebol não é coisa para pobre. Doa a quem doer. Ingresso é caro em todo lugar. Torcida dividida e entrada a preço de banana estragada só existem no Brasil. O Atlético coloca ingresso a 20 reais e não lota o estádio. Futebol não é publico, não é forma de ajuda social”. Tudo isso está no brilhante artigo de Breiller Pires no jornal (El País 17/07/17), que vale muito a pena ser lido. Ainda mais que o jornalista traz o comentário desmistificador o professor Mauricio Murad, doutor em sociologia do esporte, que afirma: “Excluir do espetáculo o torcedor das camadas mais pobres, que sempre esteve vinculado ao futebol, já é por si só uma forma de violência” ⎯ e acrescenta: “Há a falsa ideia de que a elitização diminui a violência no futebol. Pelo contrário. Como a violência não escolhe renda ou classe social, levar para dentro do estádio um público restrito, pasteurizado, significa espalhar a maioria pelo resto da cidade. E é justamente isso que dificulta o combate a grupos violentos.”

Este fenômeno não é novo, aconteceu com o jazz, o blues e o rock nos EUA, com o Carnaval (especialmente no Rio e em Salvador), agora o futebol. Manifestações culturais genuinamente populares que com o passar do tempo saem do underground para o mainstream, da marginalidade para a moda. Tais manifestações na medida em que são compreendidas e assimiladas pelas elites, além da aceitação e legitimação, passam por um processo de elitização, branqueamento, higienização e segregação da camada pobre, principalmente a negra.

O primeiro passo é transformar o espetáculo em negócio, a produção cultural em mercadoria de luxo. Aquilo que era de consumo popular gratuito ou por preço módico sai do preço razoável para patamares extorsivos e excludentes. Deste modo, a produção cultural sai da esfera do grande público e passa a ser gerida como negócio privado.

Este processo ocorre atualmente nos estádios brasileiros. Clubes populares como Corinthians, Palmeiras, Atlético MG e Flamengo hoje se vangloriam dos altos preços cobrados em seus ingressos. Estádios como o do Maracanã foram reformados ou construídos a partir da lógica de segregação e exclusão dos pobres, da camada social que transformou o esporte em paixão e potência.

Fora das quatro linhas as elites, com a cumplicidade e complacência da classe média, comercializam o ingresso para um espetáculo empobrecido de seus melhores protagonistas, que o torna apresentação de quinta categoria, mas cobram preços de primeira classe. Infelizmente são poucas as vozes de alguns poucos jornalistas que se manifestam contra este processo, típico da elite brasileira, que finge defender o interesse nacional, mas que de fato joga a favor dos próprios interesses e do adversário.

Vinícius Canhoto é escritor, professor, doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo

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Levany Júnior

Levany Júnior é Advogado e diretor do Blog do Levany Júnior. Blog aborda notícias principalmente de todo estado do Rio Grande do Norte, grande Natal, Alto do Rodrigues, Pendências, Macau, Assú, Mossoró e todo interior do RN. E-mail: [email protected]

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