AMAZONIA-BRASIL-Por que a Amazônia é o pior lugar do Brasil para ser criança


Por Ligia Guimarães, BBC

 


Moradores das comunidades ribeirinhas da região do Médio Solimões, na Amazônia Central, onde atua o Instituto Mamirauá — Foto: Bruno Barreto/Instituto Mamirauá/BBCMoradores das comunidades ribeirinhas da região do Médio Solimões, na Amazônia Central, onde atua o Instituto Mamirauá — Foto: Bruno Barreto/Instituto Mamirauá/BBC

Moradores das comunidades ribeirinhas da região do Médio Solimões, na Amazônia Central, onde atua o Instituto Mamirauá — Foto: Bruno Barreto/Instituto Mamirauá/BBC

“Muita gente se importa com a Amazônia. O gringo se importa, o governo diz que se importa, mas será que eles sabem que a gente existe? Que aqui não é só mato e água doce?”, questiona a assistente social Glinda Sousa Farias, de 25 anos. Ela nasceu e cresceu em Breves (PA), cidade de 92 mil habitantes considerada a “capital” da Ilha do Marajó. Essa região, cercada por praias e belezas naturais, tem um dos Índices de Desenvolvimento Humano (IDHs) mais baixos do país.

Dias antes, a assistente social havia sido 1 dos 11 profissionais que resgataram uma criança na zona rural de Breves após denúncia de abuso. Uma menina teria sido violentada pelo próprio avô e mais um familiar, na casa dele. Depois de viajar horas pelo rio em uma embarcação a motor, encontraram a menina Sandra*, 13 anos, chorando sem parar em frente à casa de palafita. O irmão da adolescente, também menor de idade, teria presenciado a cena.

As crianças estavam na casa do avô enquanto o padrasto trabalhava e a mãe acompanhava a outra filha em Belém, a 220 quilômetros dali, em um tratamento de saúde. A equipe volante, formada por por representantes do Conselho Tutelar, Polícia Civil, secretaria de Saúde, Educação e Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), no qual Glinda trabalha como técnica, levou a adolescente e o irmão para a cidade para serem atendidos.

Em outro dia de trabalho, a assistente social conta que a equipe socorreu uma criança de quatro anos, também da zona rural, que foi abusada pelo pai. A suspeita veio de familiares e professores, que comunicaram o Conselho Tutelar. A criança recebeu atendimento especializado e passou por exames sexológicos. O crime foi confirmado.

“Casos como estes são recorrentes no município”, lamenta a assistente social, cuja infância também foi marcada pela pobreza. Em Breves, de acordo com dados do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan), 37,7% das crianças de até cinco anos de idade sofriam de desnutrição crônica em 2018 — percentual bem maior que a média brasileira, de 13,1%.

No Pará, 85% dos domicílios não possuem acesso adequado à rede de esgoto, e 2.157 crianças morreram antes de completar um ano em 2016. “Depois da escola brincava na rua mesmo, no meio das poças d’água”, lembra Glinda. “Não senti falta de políticas voltadas à cultura, esporte e lazer. Não dá pra sentir falta daquilo que não vivenciei.”

Filha de pai madeireiro e mãe sacoleira em uma família de baixa renda com quatro filhos, ela viu o pai ficar desempregado depois que a madeireira em que ele trabalhava fechou as portas, em 2009. A família, que morava no centro da cidade, mudou-se para um bairro mais distante e passou a viver em um pequeno cômodo de madeira. Nesse período, sobreviveram basicamente da renda do Bolsa Família, que transfere R$ 89 por pessoa a famílias que vivem abaixo da linha de pobreza, mais R$ 41 por criança ou adolescente, limitado a R$ 205 (cinco benefícios).

“As madeireiras fecharam por completo ou parcialmente, mas não tínhamos um plano B. Não estou defendendo o desmatamento, só que ninguém disse para o meu pai o que ele deveria fazer quando fechassem. Isso aconteceu com muitas famílias. Papai depois conseguiu outro emprego, mas outros não tiveram a mesma sorte.”

Conseguiram, com muito esforço, manter os filhos na escola pública, e Glinda e os irmãos, quando adultos, estudaram também na Universidade Federal do Pará (UFPA). “Hoje, os filhos estão concluindo o ensino superior, outros formados, concursados, empregados. Todos da família têm renda própria”, afirma, reconhecendo que, nas estatísticas da região, histórias de sucesso como a dela são exceção.

4 em 10 crianças são de famílias sem renda para cesta básica

Ao todo, 9 milhões de crianças vivem na Amazônia Legal, região formada por Acre, Amapá, Pará, Amazonas, Rondônia, Roraima e parte dos Estados de Maranhão, Tocantins e Mato Grosso. Os indicadores apontam que, de todas as regiões do país, é ali o pior lugar do Brasil para ser criança, destaca relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). São de lá os mais altos níveis nacionais de mortalidade infantil.

Nos nove Estados da Amazônia Legal, cerca de 43% das crianças e dos adolescentes vivem em domicílios com renda per capita insuficiente para adquirir uma cesta básica de bens, contra 34,3% da média nacional. Além disso, muitas meninas e muitos meninos amazônicos não têm atendidos seus direitos a educação, água, saneamento, moradia, informação e proteção contra o trabalho infantil.

Em 2016, 1.225 crianças morreram antes de completar 1 ano no Estado do Amazonas. Além disso, desde 2010, os casos de sífilis congênita diagnosticados em crianças menores de um ano de idade cresceram 710%, segundo dados do ministério da Saúde reunidos pela Unicef. Foram 802 casos só em 2017. A proporção de mães com acesso ao pré-natal foi de 46% — ainda menos da metade —, registrando um aumento de 183% entre 2000 a 2016.

“A Amazônia é o pior lugar do Brasil para ser criança. Todos os indicadores sociais estão apresentando valores piores que a média brasileira e muitíssimo piores que os do sudeste do país. De criança fora da escola, vacinação, mortalidade infantil, acesso à água, saneamento”, resume a coordenadora do Unicef na Amazônia Legal, Anyoli Sanabria, que explica que as crianças vivem em um estado de “privação múltipla”, em que, além de viver na pobreza em termos financeiros, elas têm vários outros direitos violados que prejudicam não só sua qualidade de vida, mas comprometem seu futuro e limitam seu desenvolvimento.

As áreas rurais e dispersas ficam, em grande medida, sem acesso ou com acesso limitado aos serviços básicos como saúde, educação e proteção social. Vulneráveis e desassistidas, essas populações — principalmente, crianças e adolescentes — enfrentam uma série de riscos, alerta a entidade.

Distribuição de filtros d'água em comunidade do Rio Tabajós — Foto: Divulgação/ONG Saúde & Alegria/BBCDistribuição de filtros d'água em comunidade do Rio Tabajós — Foto: Divulgação/ONG Saúde & Alegria/BBC

Distribuição de filtros d’água em comunidade do Rio Tabajós — Foto: Divulgação/ONG Saúde & Alegria/BBC

‘Sem social, não há ambiental’

A visão de educadores, agentes de saúde, ONGs e instituições dedicadas à infância ouvidas pela BBC News Brasil é de que as crianças que vivem na Amazônia, nas cidades ou na zona rural, enfrentam uma quase que total escassez de serviços públicos — à exceção das que vivem nas capitais. Eles alertam: não vai dar para salvar o meio ambiente sem preservar a população local, cada vez mais vulnerável e dependendo de benefícios sociais.

“Sem social, não há ambiental”, resume Caetano Scannavino, coordenador da ONG Projeto Saúde & Alegria, que atua na Amazônia. “No mundo inteiro as questões da pobreza e do meio ambiente estão ligadas”, afirma Scannavino, que diz que famílias pobres e sem assistência e serviços de saúde são mais vulneráveis ao ilegalismo ambiental.

“Se eu tenho uma criança doente e eu preciso de dinheiro, de remédio, e tem um madeireiro pedindo uma autorização para tirar uma árvore do meu lote, muito provavelmente eu vou estabelecer um acordo com ele, porque a vida do meu filho está em jogo. Situações como essa se repetem e impactam o meio ambiente e favorecem a cultura do ilegalismo.”

Para serem efetivas, as políticas públicas para a infância na região precisam considerar as peculiaridades e desafios extras do chamado “fator amazônico”: as meninas e os meninos vivem com suas famílias em uma região muito extensa territorialmente, mas pouco povoada em comparação às demais regiões. Em média, cada quilômetro quadrado da Amazônia é habitado por apenas cinco pessoas, enquanto que em outras regiões do País essa taxa é de 48 habitantes por quilômetro quadrado.

Às vezes em comunidades de difícil acesso vivem crianças indígenas, quilombolas, ribeirinhos, mas também mais e mais em grandes cidades — juntamente com populações tradicionalmente urbanas, afirma a Unicef no relatório “Agenda pela Infância e Adolescência na Amazônia”.

A principal privação a que meninas e meninos amazônicos estão sujeitos é a falta de acesso a saneamento. Enquanto a média nacional de crianças e adolescentes sem esse direito está em 24,8%, na maioria dos Estados da Amazônia ela está próxima aos 50%, chegando a 89% no Amapá, em dado de 2017. A única exceção na região é Roraima, com 11,5% de crianças e adolescentes sem saneamento, segundo a Unicef.

“Os indicadores sociais mostram que as crianças na Amazônia têm maior risco de morrer antes de um ano de idade e de não completar o ensino fundamental. Além disso, a taxa de gravidez na adolescência é alta, e as meninas e os meninos na região estão vulneráveis às mais variadas formas de violência, incluindo o abuso, a exploração sexual, o trabalho infantil e o homicídio”, afirma relatório da Unicef divulgado em setembro e que analisa os principais desafios para a infância na região.

Também é na Amazônia Legal que o assassinato de jovens e adolescentes aumenta em ritmo mais acelerado no país. Entre 2007 e 2017, o número de homicídios de jovens cresceu acima da média nacional em quase todos os Estados que compõem a Amazônia Legal. Enquanto o homicídio de jovens de 15 a 19 anos aumentou 35,1% no Brasil na década, avançou muito mais no Acre (312,5%); Amapá (107%); Amazonas (117,8%); Maranhão (78,5%); Pará (94,1%); Roraima (112,8%); e Tocantins (222,3%). As exceções foram Mato Grosso (25,8%) e Rondônia (8,6%), segundo dados do Atlas da Violência, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

“As altas taxas de homicídio de adolescentes mostram que a vida de meninas e meninos das periferias é marcada por uma enorme falta de oportunidades que os torna cada vez mais vulneráveis à violência letal. Além de manter os investimentos na primeira infância, é necessário que o país invista igualmente na segunda década de vida”, defende a Unicef no relatório “Agenda pela infância e adolescência na Amazônia”.

No meio da água, sem água

A 1500 quilômetros de Breves (PA) no município de Tefé (AM), com cerca de 60 mil habitantes na região do Médio Solimões, na Amazônia Central, nenhum aluno pode beber água na escola, apesar de viverem na maior bacia hidrográfica do mundo. Coliformes fecais foram detectados na água de todas as 19 escolas do município, levando a frequentes casos de giárdia, lombriga e diarreias.

Também faltam banheiros e recursos para higiene pessoal, e qualquer tipo de saneamento básico é praticamente inexistente. Em 52% das escolas nota-se a presença ostensiva de moscas, segundo estudo realizado em 2015 pelo Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, organização social ligada ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações que atua em reservas na região da Amazônia central, e trabalha com uma comunidade estimada em 13 mil pessoas.

“A qualidade da água é uma questão relevante para as crianças, as pessoas que moram na várzea não têm água de qualidade para beber. Reflete principalmente a carência de serviços públicos, a falta de energia elétrica, que inibe tanto o bombeador de água quanto tratamento de água”, diz explica Maria Cecilia Gomes, engenheira ambiental e pesquisadora e coordenadora do programa qualidade de vida do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá.

Indicadores apontam que a Amazônia é o pior lugar do Brasil para ser criança — Foto: BBCIndicadores apontam que a Amazônia é o pior lugar do Brasil para ser criança — Foto: BBC

Indicadores apontam que a Amazônia é o pior lugar do Brasil para ser criança — Foto: BBC

“Praticamente não existem esses serviços nas áreas rurais da Amazônia. A gente pode dizer que as condições de saúde são bastante precárias, principalmente na disponibilidade e a qualidade da água. Às vezes a água está presente em quantidade, mas está contaminada”, afirma a pesquisadora, que cita que é comum a incidência na população de diarreia relacionada a lombriga, giárdia, ameba.

Maria Mercês Bezerra da Silva, técnica de enfermagem que atua no instituto há mais de 20 anos, diz que, apesar da precariedade, hoje nota-se mais consciência da população em relação a medidas de higiene pessoal, por exemplo, mas falta o reforço das políticas públicas que praticamente inexistem para muitas comunidades.

Mesmo quando estão na escola, a saúde das crianças está em risco. Pesquisa “Avaliação do cenário WASH (água, saneamento e higiene) em escolas urbanas e rurais de uma pequena cidade na Amazônia brasileira”, publicada em 2018 com dados referentes a 2015, mostrou que as escolas de Tefé não ofereciam condições sanitárias adequadas para seus alunos e não realizam manutenção periódica de suas instalações.

“As irregularidades documentadas incluem a falta de sabão para lavar as mãos em 84% das escolas, a presença de vetores de doenças e outros insetos, bebedouros e banheiros insuficientes e com manutenção insuficiente, inundações e entupimentos de banheiros, água potável contaminada com E. coli e falta de manutenção regular de fossas sépticas. Com base em nossos resultados, pode-se estimar que mais de 9.000 estudantes no município de Tefé estão expostos a riscos resultantes das más condições sanitárias em suas escolas”.

A situação é ainda mais grave para as crianças indígenas, segundo a Unicef. Do total da população autodeclarada indígena do país, 46,6% vivem na Amazônia Legal, representando 1,5% da população da região. Enquanto o Brasil registra 14 óbitos de menores de 1 ano por 1.000 nascidos vivos. Entre os indígenas, na Amazônia, morrem aproximadamente 31,3 crianças menores de um ano para cada 1.000 nascidas vivas. “É fundamental priorizar investimentos e esforços naqueles grupos de crianças e adolescentes em situação de maior vulnerabilidade”, defende a entidade.

Violência sexual e proposta de ‘fábrica de calcinhas’

“Gente, será que o Brasil não descobriu que o paraíso é aqui? Vocês têm uma ilha extraordinária. Eu vejo turista do mundo todo cruzando o mundo para ir para o Havaí, pra colocar um colarzinho e dançar hola. Vamos ver os turistas do mundo todo chegando aqui para dançar carimbó”, disse, em discurso no dia 18 de julho em Breves, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. Naquele dia, Damares lançou o programa Abrace o Marajó, com o objetivo de erradicar o abuso e a exploração sexual e a violência contra a mulher no país. Cogitou, na ocasião, até criar um gabinete próprio na cidade.

“O projeto é unir todos os ministérios pra agora. As crianças do Marajó têm pressa. Inclusive eu estava conversando com a minha assessoria se há a possibilidade de eu ter um gabinete aqui no Marajó. Eu sei o que é violência contra criança. Fui estuprada aos seis anos e fui barbaramente agredida por um homem hospedado na minha casa”, disse a ministra, ao participar de audiência pública sobre o tema na cidade.

“Por que os pais exploram [as crianças]? É por causa da fome? Vamos levar empreendimentos para a ilha do Marajó, vamos atender às necessidades daquele povo. Uns especialistas chegaram a falar para nós aqui no gabinete que as meninas lá são exploradas porque não têm calcinha. Não usam calcinha, são muito pobres. E perguntaram ‘por que o ministério não faz uma campanha para levar calcinhas para lá?'”, questionou. “Nós temos que levar uma fábrica de calcinhas para a ilha do Marajó, gerar emprego lá, e as calcinhas saírem baratinhas para as meninas”, disse a ministra, em discurso disponível no Youtube.

A ministra escolheu Marajó para lançar o programa nacional porque a região é emblemática quando se trata da exploração sexual infantil. A fama começou em 2006, quando denúncias revelaram uma rede de exploração sexual de crianças e tráfico de drogas no município de Portel (PA), vizinha de Breves, que envolvia vereadores, empresários, autoridades policiais, servidores públicos. Historicamente, os casos de exploração sexual comercial na região ocorrem com o consentimento ou não dos pais, seja na área urbana, rural ou nos rios, em balsas.

Procurado pela reportagem, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos afirmou que a Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente estará contribuindo com ações para a prevenção e o enfrentamento das violações aos direitos de crianças e adolescentes da região, com especial atenção ao abuso e a exploração sexual.

Além disso, informou que estão sendo firmadas parcerias com as prefeituras de Soures e Breves para a realização de capacitação dos atores do Sistema de Garantia de Direitos, de profissionais da educação, da saúde e da segurança, “ainda durante este mês de novembro”. Ainda de acordo com a pasta, “está prevista para dezembro uma grande ação em parceria com a iniciativa privada para a distribuição de brinquedos e material educativo para alertar pais, responsáveis, crianças e adolescentes acerca do abuso e da exploração sexual”.

“A exploração sexual infantil, infelizmente, é uma mazela social encontrada em diferentes municípios da região marajoara Ocidental, destacando-se em Portel, Melgaço, Curralinho, Chaves, Afuá, Muaná e no município de Breves que é considerado o mais bem estruturado e que concentra o maior número de habitantes”, explica estudo da pesquisadora Jacqueline Tatiane da Silva Guimarães, doutora em educação e mestre em Serviço Social pela Universidade Federal do Pará (UFPA).

Ela destaca que a exploração sexual, violência, educação precária, fome e dentre outros problemas fazem parte da vida dessas infâncias. “O quadro de pobreza atinge diretamente a infância marajoara, que se torna alvo de exploração, violência e assédios, tendo os seus corpos vistos como simples força de trabalho e mercadoria.”

Para além das calcinhas, vulnerabilidade econômica e a pobreza das famílias parecem ser os elementos mais determinantes para a falta de proteção das crianças contra este tipo de crime. A economia do Marajó é marcada historicamente por atividades predatórias de matérias-primas, que geraram renda concentrada na mão de poucos extraem riqueza sem gerar bem-estar para a população, como a exploração da borracha e da madeira, deixando um rastro de desemprego que perdura até hoje.

No Arquipélago do Marajó, estão concentrados os municípios mais pobres do Estado do Pará e do Brasil, com o menor PIB per capita do Estado. O rendimento mensal das famílias gira em torno das vendas do açaí e mandioca na feira do agricultor em Breves, juntamente com benefícios sociais, segundo estudo das pesquisadoras Avelina Oliveira de Castro e Maria Angelica Motta-Maués, da Universidade Federal do Pará (UFPA).

“Na cidade, só 6,1% de domicílios têm esgotamento sanitário adequado. A água é distribuída só quatro horas por dia, e não para todos os bairros. Por isso, uma cena comum é ver as crianças dedicando parte do dia a levar em baldes a água que tiram diretamente do Rio Parauaú, o principal da cidade, ou dos caminhões-pipa”, diz a pesquisadora Jacqueline Guimarães, da UFPA. “A realidade da infância está intimamente ligada à realidade das famílias marajoaras, que refletem nas crianças as condições de vida que estão sendo submetidas, a falta de emprego, baixa escolaridade”, diz, em artigo. “As crianças acabam por não ter seu desenvolvimento garantido, pois as crianças no Marajó têm seus direitos violados porque suas famílias estão sendo violadas, e sua luta diária acaba sendo pela própria sobrevivência.”

Por que a riqueza dos grandes empreendimentos não chega às crianças?

A exploração da riqueza da região e os grandes empreendimentos, diferentemente do que pode supor o senso comum, têm tornado mais pobres e desprotegidas as vidas das crianças da Amazônia.

Pesquisa realizada pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e pelo Centro de Pesquisa Aplicada em Direitos Humanos e Empresas da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV CeDHE), com o apoio financeiro do Fundo Nacional para Criança e o Adolescente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, aponta diversos impactos e violações nos direitos das crianças e adolescentes, analisando os casos das usinas de Belo Monte, em Altamira (PA), Jirau e Santo Antonio, em Porto Velho (RO), e faz uma associação direta das obras com o aumento dos casos de violação de direitos das crianças.

Um exemplo é o caso de Altamira, que em 2017 tornou-se o município com a maior taxa de homicídio do Brasil — 114 homicídios para 108.382 habitantes —, atestando um crescimento da violência social associado ao processo de implantação de Belo Monte e à expansão rápida, desordenada e mal planejada da cidade, aponta o estudo.

Dados da Polícia Civil apontam que Altamira tinha taxa por 100 mil habitantes de 52 homicídios em 2009, último ano antes do início das obras, explica um dos coordenadores do estudo, pesquisador Assis de Costa Oliveira, professor do campus Altamira da UFPA e doutorando pela Universidade de Brasília (UnB).

“Um fluxo de milhares de pessoas de fora da cidade, buscando emprego direto ou indireto nas obras com perfil majoritariamente masculino, e que reconfigurou as dinâmicas de convivência e de conflito social”, diz Oliveira. Quando as obras terminaram, muitos ex-trabalhadores permaneceram no município em situação de ociosidade e desemprego, levando, em alguns casos, que também entrassem no mercado do tráfico de drogas para conseguir renda. “Os danos sociais estão muito menosprezados na implantação das grandes obras e empreendimentos.”

Também atraiu moradores para Altamira o alagamento do rio Xingu, decorrente do barramento da Belo Monte no município. Enquanto todas essas pessoas se mudavam para lá, não houve nenhum reforço prévio ou contrapartida de investimento a mais em segurança pública, por exemplo, para proteger a população local.

O que se viu, no estudo dos casos de Belo Monte, Jirau e Santo Antônio, foi um aumento vertiginoso de casos de abuso e exploração sexual no período de implantação dos empreendimentos, que mantém patamar elevado, ainda que menor, quando os empreendimentos começaram a funcionar. “No caso do abuso sexual, constatou-se que existe um aumento de denúncias aos órgãos públicos, mas existiu uma demora/dificuldade de judicialização e punição dos acusados, muitas vezes decorrentes da inexistência de informações sobre a localização dos mesmos.”

Também houve um aumento de demanda por reconhecimento de paternidade e pensão alimentícia quando as obras terminaram e os funcionários começaram a ir embora, “diretamente ligada às relações afetivo-sexuais de funcionários das obras com adolescentes e mulheres da região, com correlato descompromisso em prover o sustento econômico aos seus filhos”.

Tanto a Constituição Federal quanto o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelecem que os direitos das crianças e adolescentes devem ser considerados prioridade absoluta, destaca o estudo. “O que significa que devem ter primazia na formulação de políticas sociais, de proteção e no atendimento de serviços públicos, conforme prevê o artigo 4, parágrafo único, do ECA”.

Enquanto integrantes da sociedade, as empresas também são responsáveis por fazer sua parte na responsabilidade pela proteção dos direitos de crianças e adolescentes, alerta o estudo. Mas, nos casos de Belo Monte, Jirau e Santo Antônio, a análise dos 891 documentos que compõem os processos de tomada de decisão mostrou que os direitos das crianças e adolescentes só foram considerados em 64 documentos, na etapa de licenciamento ambiental.

Quais são as soluções sugeridas?

Para melhorar a vida das crianças na Amazônia, destaca a pesquisadora Jacqueline Guimarães, da UFPA, é preciso que as entidades que trabalham com a criança e adolescente realizem um trabalho conjunto em forma de rede, tendo em mente que cada região tem suas peculiaridades.

“Não basta a simples existência de Escolas, Conselhos Tutelares, Conselho de Direito da Criança e adolescente, Centros de Referência de Assistência Social. É fundamental a realização de ações de diálogos e agendas que se comuniquem e articulem entre as diferentes instituições que pretendem proteger a infância”.

Na visão da Unicef, é fundamental identificar e acompanhar a dispersão das populações indígenas e ribeirinhas, que emigram de suas terras para as periferias das cidades. Em muitos casos, esses fluxos migratórios acontecem em razão da implantação de grandes obras de infraestrutura – que, por um lado, desalojam populações e, por outro, geram empregos, ou em busca de outras oportunidades de trabalho, por questões de saúde, por causa de conflitos fundiários ou em busca de educação. “A maioria da população indígena jovem já se encontra na periferia das médias e grandes cidades da região”.

Outro caminho, defende a Unicef, é fortalecer a capacidade dos municípios, que representa o poder público mais próximo da população, para atuar em contextos de grandes complexidades sociais, econômicas, sociais e geográficas, como a Amazônia. “Em muitos lugares, as instâncias municipais, estaduais e federal na Amazônia Legal não são capazes de garantir e realizar sozinhas os direitos, especialmente das populações vulneráveis. Por isso, União, Estados e municípios precisam investir na formação e qualificação permanente dos serviços e agentes públicos. Isso pode ser feito por meio de parcerias com universidades e escolas de governo e gestão, e demais instituições públicas de pesquisa e ensino”.

Para o coordenador da ONG Projeto Saúde & Alegria, que atua na Amazônia, Caetano Scannavino, é preciso discutir um modelo econômico e de desenvolvimento que, além de gerar riqueza, beneficie a população local de maneira sustentável.”

“Ao longo dessas décadas, desmatamos o equivalente a duas Alemanhas para que 63% dessas áreas fossem ocupadas por pastos de baixíssimas produtividade, níveis africanos. Estamos desmatando para ficar mais pobres? Não para substituir por algo eficiente, que poderia gerar inclusão e desenvolvimento para todos e não só para a geração atual, mas para a frente”, diz ele que, para isso, defende uma soma de esforços de todos os setores da sociedade: governo, academia, ONGs e movimentos sociais, seguindo modelos de iniciativas que já funcionam na região, em pequena escala. “Isso que precisa ser debatido. Há décadas se extrai recursos da Amazônia, e as pessoas não estão mais ricas. Estão mais pobres porque não melhorou o pé de meia, e a floresta não tem mais a riqueza que tinha antes”.

A assistência social Glinda, moradora de Breves, tem visão parecida sobre o futuro das riquezas naturais da região em que ela nasceu. “A floresta em pé gera lucros pra uns e prejuízos pra outros”, diz. “Esse é o nosso grande problema, eles a veem sob o olhar da ganância. Mas o aqui o povo existe e resiste”.

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